ANDERSON, Perry. Duas revoluções: Rússia e China. São Paulo: Boitempo, 2019.
Por Fernando Cauduro Pureza
ACESSE AQUI O PDFNo momento em que escrevo esta resenha, posso afirmar que temos uma carência, no mercado editorial brasileiro, de livros acerca da história e da historiografia chinesa. Mesmo alguns dos sinólogos mais famosos do mundo atual possuem poucas peças traduzidas que chegaram até o Brasil. Alguns manuais importantes, como o livro de Jonathan Spence, Em busca da China Moderna, já não é reeditado há alguns anos. O compêndio China, uma nova História, de John King Fairbank e Merle Goldman, também segue esgotado e de difícil acesso. O livro do historiador sino-americano, Immanuel Hsu, The rise of Modern China, sequer adentrou no mercado editorial brasileiro e mesmo sinólogos mais contemporâneos, como Elizabeth J. Perry ou Merle Goldman, são praticamente desconhecidos em nossas universidades. No próprio campo das esquerdas, o famoso artigo de Isaac Deutscher, “Maoism: Its origins and outlooks”, publicado em 1964, nunca foi traduzido para o português. Essa lacuna, por si só, já torna o livro de Perry Anderson, Duas revoluções: Rússia e China, um verdadeiro marco para futuras reflexões sobre a China, ampliando o leque de leituras para historiadores e para a própria esquerda refletir sobre o passado recente chinês.
Apesar do título fazer referência a Rússia e China, a edição do livro não deve deixar dúvidas: o foco central de análise é a experiência do socialismo chinês contemporâneo. O prefácio de Luiz Gonzaga Belluzzo, a réplica de Wang Chaohua e o posfácio de Rosana Pinehiro-Machado são reflexões sobre a questão chinesa, no qual a experiência soviética e o seu colapso são dados laterais para considerações mais profundas. Dessa forma, se o leitor espera uma reflexão comparativa em todos os textos da edição, ele irá encontrá-la apenas no texto de Perry Anderson, que dá título ao livro. Para fins dessa resenha, pretendo deixar de lado os textos de Luiz Gonzaga Belluzzo e Rosana Pinheiro-Machado. Não obstante sejam interessantíssimos, eles abrem e fecham a discussão apontando para possibilidades analíticas oriundas tanto do ensaio de Anderson como da resposta de Chaohua. Permito-me aqui, contudo, concentrar-me nesses dois autores e problematizar inicialmente a comparação que Perry Anderson sugere e dá título ao livro.
Talvez se possa questionar, de fato, até que ponto essa reflexão é encontrada. Para Anderson, a questão de fundo é o contraste entre o desfecho da Revolução Chinesa e o desfecho da Revolução Russa. E, se por um lado, a história da primeira segue seu curso ainda nos dias de hoje, a segunda, com a dissolução da União Soviética, tornou-se a história de uma debacle. E para poder pensar sobre o que ele chama de “impressionante contraste” entre ambas, Anderson subdivide a sua reflexão em quatro pontos: as diferenças entre os agentes políticos das duas revoluções, as condições objetivas que os partidos encararam no curso das reformas, as consequências concretas das políticas que adotaram e, por fim, quais legados de longa duração que eventualmente condicionaram os desfechos dos processos revolucionários. De cada subdivisão, Anderson constrói um subcapítulo e procura trabalhar com uma perspectiva comparada.
Seria enfadonho reproduzir ipsis litterisos argumentos do autor, mas em linhas gerais pode se apontar algumas questões importantes para uma reflexão comparada dos processos revolucionários. Um exemplo disso é que Anderson afirma que, enquanto o PCCh teria maior penetração social na comunidade camponesa chinesa durante os anos de guerra civil, a guerra civil russa viu uma consolidação mais violenta do partido bolchevique. A partir dessa consideração, se subentende uma lógica que, enquanto no caso soviético a revolução precedeu a guerra civil, no caso chinês, a guerra civil precedeu a revolução. O resultado é que no processo revolucionário chinês haveria uma penetração e uma coesão muito mais profunda do que o caso russo – e nesse aspecto, o discurso da identidade nacional é um fator crucial, ainda mais considerando a pluralidade de identidades nacionais que coexistiram durante a experiência soviética. Disso resultam outras experiências contrastantes como a Revolução Cultural chinesa e a coletivização dos campos na União Soviética stalinista que, não obstante o alto custo humano de ambas, estariam em dissonância quanto aos seus objetivos e os meios. Nesse sentido, o texto de Anderson ecoa diretamente algumas das concepções de Isaac Deutscher, em especial naquilo que ele apontava como impasse do maoísmo ao não aderir o internacionalismo revolucionário.
Todavia, a partir do segundo subcapítulo, Anderson passa a concentrar esforços nas mutações e aqui os saltos temporais talvez fiquem mais evidentes. As eras Kruschev e Brejnev passam a ser comparada com o governo de Deng Xiaoping. As mutações tornam-se fenômenos de conjunturas históricas diferentes e que se aproximam após a morte de Mao Zedong. Dessa aproximação, Anderson destaca que as distâncias geracionais em relação aos jovens e as revoluções que seus pais e até mesmo os avós participaram, se acentuam durante os anos 1970 e 1980. É o momento em que as intelligentsias dos partidos comunistas e ao corpo burocrático do Estado tiveram que dar uma narrativa revolucionária a milhares de jovens que não viveram esse processo – ou aquilo que Jonathan Spencer chamou de “o gostinho da revolução” (Spence, 1995, p. 512). Nesse ponto, a máquina chinesa mostrou-se operacional numa escala que a União Soviética não poderia consolidar. A descentralização política, como ressalta Anderson, era uma constante da experiência chinesa e que permita um grau de autonomia política dos dirigentes comunistas muito diferente daquela que experimentavam os dirigentes soviéticos.
Isso, contudo, não exime a análise de Anderson de certos recursos retóricos laudatórios que, no final, mostram-se constrangedores, com doses de orientalismo (ao afirmar a força das “tradições geoculturais chinesas em relação à modernização russa do século XIX) e um psicologismo pueril. O elogio aos dirigentes chineses pós-Mao Zedong, o autor os descreve como dotados de uma “têmpera leninista: radicais, disciplinados, criativos – capazes a um só tempo de paciência tática e de experimentação cautelosa, das iniciativas mais ousadas e das guinadas mais dramáticas”. (Anderson, 2019, p. 46-47) Assim, haveria uma espécie de grande continuidade entre os momentos dramáticos da Grande Marcha até os anúncios das primeiras reformas do “socialismo de via chinesa” promovidos por Deng Xiaoping. Aquilo que antes era uma discussão sobre autonomia política e consolidação de reformas passa a ser uma discussão sobre o caráter dos dirigentes chineses. E se esse é um ponto determinante de diferença na comparação entre as reformas de Deng e de Gorbachev, é importante que se diga que aqui Anderson anuncia uma ruptura com o argumento de Isaac Deutscher, que afirmava a importância do fervor chinês pelo “internacionalismo leninista” (Deutscher, 1964).
A retidão das reformas passa a ser tônica das partes seguintes do ensaio – a formação das “Empresas de Povoados e Aldeias” e das “Zonas Econômicas e Especiais” da era Xioping passam a ser o resultado de líderes que defenderam e protegeram a descentralização política e a relativa autonomia local. E o fizeram justamente por manterem essa “têmpera leninista”. Todavia, enquanto isso, a União Soviética mergulhava em colapso…as reformas de Gorbachev soçobraram e a estrutura burocrática do partido não acompanhou as mudanças desejadas na estrutura da sociedade. Nessa tensão, a falta de uma “têmpera leninista” talvez tenha apressado o colapso da União Soviética. Como o próprio Anderson afirma, “talvez a diferença mais decisiva entre a Rússia e a China residisse no caráter de suas lideranças políticas” (Anderson, 2019, p. 46).
Disso decorre que as duas últimas partes do ensaio passam a focar exclusivamente em como o Partido Comunista Chinês manteve seu domínio político, não obstante as reformas que empreendera desde 1978 – a União Soviética sequer aparece e a Rússia não merece mais do que uma nota de rodapé após o colapso do regime. No plano chinês, Deng Xiaoping mostra-se um guru sábio que, diante dos protestos de 1989, não adere ao liberalismo e entende o recuo ao capitalismo como um movimento estratégico. A larga escala da privatização econômica, que serviu de impulso ao desenvolvimento das décadas posteriores, possibilitou que a China se tornasse a “oficina do mundo”. Os líderes chineses, dotados de um caráter excepcional, passam a conduzir um processo de reformas que passa a ser visto como um “retorno” a um cenário econômico anterior ao século XIX (de acordo com as teses de Kenneth Pomeranz e Giovanni Arrighi) e a China encontra-se com o seu passado. Esse encontro, como ressalta Anderson, não é desprovido de tensões – inclusive de lutas de classes, com trabalhadores sendo tratados de modo abusivo e impiedoso, ou de camponeses espoliados de suas terras e meios de subsistência. E se a China agora resume seu lugar na economia política global, não a faz desprovida de tensões.
O interessante, contudo, é que o caráter enigmático pelo qual termina o ensaio serve como ensejo para o texto de resposta da pesquisadora e militante chinesa, Wang Chaohua. Exilada nos Estados Unidos desde 1990, Chaohua foi uma das lideranças da Associação Estudantil Autônoma de Beijing e ajudou a liderar os protestos estudantis na praça Tiananmen. Essa apresentação por si só deixa claro que a ênfase da crítica da autora está justamente na apreciação de Anderson sobre a China. E suas críticas são enfáticas: ao contrário do que Perry Anderson escrevera, ela entende que as reformas chinesas promovidas por Deng Xiaoping não são uma continuidade de aspectos positivos do período revolucionário, mas sim um processo de supressão dessa continuidade.
Essa é uma questão crucial para o argumento de Chaohua: a ideia de continuidade da revolução precisa ser repensada em toda a sua estrutura. A autora questiona, por exemplo, por que Anderson compara uma revolução de 1917 e outra de 1949 quando havia a possibilidade de comparar com o processo revolucionário chinês de 1911, que instaurou a República da China. Da mesma forma, Anderson ignoraria o envolvimento de soviéticos e chineses no apoio a revolucionários durante a Guerra Fria e sequer comenta que, dessa distinção, o PCCh jamais levou adiante uma bandeira maoísta de solidariedade internacional – de fato, os princípios da política externa formulada pelo chanceler Zhou Enlai apostaram constantemente na autonomia dos povos. Essas diferenças não são pequenas e acabam deflagrando uma forma completamente diferente pelas quais ambos países, Rússia e China, adentram no período de reformas. Por um lado, a experiência chinesa seria cheia de avanços e refluxos desde o período de 1911. Por outro, a experiência soviética seria marcada pela consolidação do poder do PCUS, não obstante eventos como a Guerra Civil, a Segunda Guerra Mundial e as disputas entre as lideranças pós-Stalin.
A ideia de Chaohua de começar a ver avanços e refluxos em processos revolucionários avança e consolida também a compreensão de crises e reformas como elementos em tensão. As reformas podem ser oriundas de crises – por exemplo, entender a Revolução Cultural como consequência decorrente das lutas internas do PCCh após o fracasso do Grande Salto para Frente, ou que as reformas de Deng Xiaoping foram acompanhadas de uma estagnação econômica que já durava mais de década na China, com crise de abastecimento em mercados locais e uma disputa fracionista na cúpula do partido após a morte de Mao Zedong. Essas crises, antes e durante o período das reformas, são ignoradas por Anderson, mas são centrais na crítica de Chaohua. Para ela, é a partir dessas tensões que podemos chegar a uma análise sobre as reformas que fuja da inevitabilidade histórica que a análise de Anderson propõe.
Ao invés de secundar a tese de uma “têmpera leninista” dos antigos dirigentes, Wang Chaohua aposta na manipulação dos anciãos, capazes de reestruturar o partido em um processo pouco democrático e de perseguição interna profunda. Treze anos após a morte de Mao, três líderes máximos do partido tinham sido removidos dos seus cargos. A crise política era consolidada pelos próprios dirigentes, que procuravam neutralizar qualquer iniciativa que visasse reformular o Estado sem a aquiescência de Deng. A partir do governo de Jiang Zemin (1989-2002), inaugurava-se uma fase onde o chefe do Partido passou a assumir, simultaneamente, o cargo de chefe de Estado e de comandante militar supremo – uma novidade que perdura até hoje (Chaohua, 2019, p. 96).
O que sobra quanto a imagem de Deng Xiaoping não é mais o dirigente experimentado, inovador e prudente, mas sim um político cuja guinada rumo ao conservadorismo era clara já na década de 1980 – mas tão logo as reformas econômicas fossem bem recebidas, não haveria o que temer. O sinal de abalo, contudo, veio em 1988. Zhao Ziyang, primeiro ministro na época, passou a advogar a necessidade de uma política de reajuste de preços, diante da liberalização econômica dos anos anteriores. Todavia, uma das consequências das reformas era a intensa migração campo-cidade, uma constante do desenvolvimento chinês da época. Ao chegarem na cidade, os camponeses tinham a promessa de empregos mais bem remunerados, mas o custo de vida subira para além do desejado – o que afetou bastante os estudantes que saíam de cidades, vilas e aldeias rurais para estudar nas grandes cidades, rompendo com o isolamento dos períodos anteriores. Assim, os eventos de 1989 não seriam meros distúrbios em prol de reformas ocidentalizantes, mas possuem uma base material fundamental para pensarmos inclusive a participação de trabalhadores e trabalhadoras nos protestos na praça Tiananmen (Vukovich, 2013, p. 45-46). Cair nessa narrativa, como salienta Chaohua, é cair na narrativa promovida por Xiaoping de que nada é mais importante que a “estabilidade” – ou seja, acreditar que os protestos são rupturas numa ordem a qual o partido se esforça para manter sólida e irredutível.
Ainda que a autora considere que o texto de Anderson apresenta um futuro nebuloso, no qual a China reencontra-se com seu passado sob os perigos de uma modernidade incerta, Chaouhua apresenta uma contra-narrativa importante. Ela considera que o próprio socialismo chinês é, hoje, um instrumento legitimador de práticas voltadas para a acumulação de capital e para a expropriação de pessoas dos seus bens comuns. Embora o capital financeiro, estatal ou estrangeiro, seja a grande força transformadora da sociedade chinesa na era pós-reformas, a legitimidade política de transformações como o despejo de camponeses nas barragens do Yang-Tsé ou a remoção de pastores na Mongólia Interior acaba residindo no discurso oficial de “socialismo de via chinesa” ou “sociedade harmoniosa”. No final das contas, para Chaohua a esquerda precisa compreender esse processo, portanto, para além de uma grande continuidade na qual uma “têmpera leninista” imemorial guia as lideranças chinesas de Mao Zedong a Xi Jinping.
Isso não é um alerta inocente. Como Daniel Vurkovich alertou em seu livro China and Orientalism: Western knowledge production and the P.R.C., os pesquisadores sinólogos não podem se ver diante do falso dilema entre um historicismo comparativo e um relativismo ahistórico (Ibid., p. 15). O ensaio de Anderson sem dúvida enfrenta esse dilema, mas por vezes escorrega tanto no primeiro aforismo como no segundo.
Quando se propõe a uma comparação, Anderson pega proporções completamente distintas da história russa e da história chinesa, ignorando questões como a própria noção de revolução presente nos dois contextos, bem como as crises e as reformas que formam um sentimento de idas e vindas de um processo caótico como costumam ser processos revolucionários. Ainda que seja louvável responder a pergunta sobre porque um processo deu certo e outro não, essa comparação historicista esbarra em questões chave para qualquer um que análise processos revolucionários, ou seja, o seu significado para os agentes, bem como seus avanços e seus recuos.
Por sua vez, há momentos em que o culturalismo entra em cena e as ações dos dirigentes chineses passam a receber um tom psicologizante e laudatório, como se fosse suficiente explicar grandes processos sociais pelo “caráter das lideranças políticas” (Anderson, 2019, p. 46). Além disso, a ideia de “tradições geoculturais” da China serve para criar uma noção de história imóvel, de longuíssima duração, onde o Estado chinês “jamais sofrera a rivalidade de qualquer Estado comparável da região” até meados do século XIX – ignorando, possivelmente, as guerras civis e as invasões mongóis no território chinês. A atemporalidade faz parte de um discurso orientalista, como ressalta Edward Said (Said,2003, p. 65), uma espécie de história – e também geografia – imaginária, capaz de demarcar as diferenças entre eu e o outro. O tempo “intemporal” é uma marca que passa a impressão de “repetição e força” (Ibid., p. 81), consolidando um objeto sólido, apreensível, pouco sujeito a transformações.
Talvez seja exagero afirmar que a história da China, presente na análise de Perry Anderson, seja essa demonstração de tempo estático característica do orientalismo. Ainda assim, a crítica de Chaohua aponta para limites nos quais as esquerdas, ao olharem para a história da China, não podem se deixar seduzir por “têmperas leninistas” ou por tradições imemoriais. Se a crítica ao capital é o que caracteriza os socialistas de todo o mundo, debruçar-se sobre a experiência chinesa, por sobre suas revoluções e suas reformas, talvez seja a melhor forma de encarar também as metamorfoses do capital e seus deslocamentos geográficos nas últimas décadas.
Referências bibliográficas
Anderson, P.Duas revoluções: Rússia e China. São Paulo: Boitempo, 2018.
Chaohua, W. O partido e sua história de sucesso: uma resposta a “Duas revoluções”. In: Anderson, P. Duas revoluções: Rússia e China. São Paulo: Boitempo, 2018.
Deutscher, I. Maoism: Its origins and its outlooks” Socialist Register/ Le Temps Modernes, 1964. Disponível em: https://marxists.architexturez.net/archive/deutscher/1964/maoism-origins-outlook.htm
Said, E.Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras. 2003.
Spence, J. Em busca da China moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Vukovich, D. China and Orientalism: Western knowledge production and the P.R.C.London and New York: Routledge, 2013
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