ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto.São Paulo: Boitempo, 2019.
Beatriz Rodrigues Sanchez [1]
O livro “Feminismo para os 99%” de autoria de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, é inspirado no que as autoras chamam de “nova onda de ativismo combativo” que tem se espalhado ao redor do mundo, em vários continentes. Em um contexto de ascensão conservadora e autoritária em diversos países, os movimentos feministas têm aparecido como uma das principais forças capazes de se opor ao fechamento das democracias. Diante desse processo, reagir aos retrocessos não é suficiente. É preciso encontrar as possibilidades emancipatórias de superação do capitalismo a partir da proposição de alternativas radicais. É essa tarefa que o manifesto “Feminismo para os 99%” publicado nesse ano se propõe a cumprir.
Essa resenha será dividida em duas partes. Na primeira, resgataremos o pensamento de ativistas feministas que vieram antes de nós e que compartilham os pressupostos contidos no manifesto. Entre elas, estão as mulheres que criaram o Coletivo do Rio Combahee, nos EUA, e Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus, escritoras brasileiras. Na segunda parte, o manifesto será analisado à luz da obra da própria Nancy Fraser, uma das autoras do manifesto.
Na dedicatória do manifesto, as autoras escrevem: “Para o coletivo Combahee River, que anteviu o percurso desde cedo, e para as grevistas feministas polonesas e argentinas, que estão abrindo novos caminhos hoje”. Dessa maneira, as autoras articulam as lutas do passado e do presente, fazendo com que os caminhos desbravados por nossas antecessoras não sejam esquecidos. Nesse mesmo sentido é que resgataremos o pensamento de algumas teóricas, escritora e ativistas que antecederam o manifesto.
No ano de 1977 foi publicado nos EUA o texto de autoria do coletivo Combahee River intitulado “The Combahee River Collective Statement”. O coletivo Combahee River foi uma organização feminista composta por intelectuais e ativistas como Audre Lorde, que atuou em Boston entre os anos 1974 e 1980. Esse texto é considerado uma espécie de manifesto do movimento feminista negro nos EUA, pois influenciou os trabalhos posteriores de autoras que viriam a ser referências não somente para os movimentos feministas estadunidenses, mas também para feministas de outros países, como Angela Davis, bell hooks e diversas outras. Logo no início do texto, as ativistas do coletivo declaram que:
“A afirmação mais geral da nossa política no tempo presente seria a de que nós estamos ativamente comprometidas na luta contra as opressões racial, sexual, heterossexual e de classe, e vemos como nossa tarefa particular o desenvolvimento de uma análise e prática integradas baseadas no fato de que os principais sistemas de opressão são interligados. A síntese dessas opressões cria as circunstâncias das nossas vidas.” (Combahee River CollectiveStatement, 1977, tradução nossa)
É impressionante o fato de que esse texto tenha sido escrito no ano de 1977, muito antes de o conceito de interseccionalidade ter sido cunhado por Kimberlé Crenshaw (2002). O conceito de interseccionalidade tem sido utilizado contemporaneamente para expressar a ideia de que diversos eixos de opressão além do gênero marcam as experiências de vida das mulheres. No entanto, como é possível perceber por esse trecho, essa ideia já havia sido afirmada pelas feministas do Combahee River Collective na década de 1970. A articulação entre gênero, raça, classe e orientação sexual feita pelas autoras do Coletivo do Rio Combahee é totalmente coerente com as afirmações contidas no manifesto do Feminismo para os 99%.
No Brasil, teóricas e ativistas negras também foram precursoras ao afirmar a necessidade de articulação entre as dimensões de gênero, raça e classe. Ao mesmo tempo em que o coletivo Combahee River e, posteriormente, Angela Davis, bell hooks e outras teóricas feministas estadunidenses afirmavam a necessidade de incorporação da dominação de classe e de raça em um projeto político feminista radical, no Brasil, teóricas e escritoras como Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus caminhavam na mesma direção.
A trajetória de Lélia Gonzalez se confunde com a trajetória das primeiras organizações de mulheres negras brasileiras (RATTS e RIOS, 2010). Nascida no ano de 1935, em Belo Horizonte, filha de uma trabalhadora doméstica de ascendência indígena e de um trabalhador ferroviário negro, entrou na universidade em meados dos anos 1950, quando teve contato com o movimento negro. No ano de 1980, na reunião do Grupo de Trabalho “Temas e problemas da população negra no Brasil”, no IV Encontro Anual da ANPOCS, Lélia Gonzalez apresentou o texto intitulado “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Em um trecho do texto a autora afirma:
“O fato é que, enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar nossa reflexão, ao invés de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que nos eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais. Os textos só nos falavam da mulher negra numa perspectiva sócio-econômica que elucidava uma série de problemas propostos pelas relações raciais. Mas ficava (e ficará) sempre um resto que desafiava as explicações.” (Gonzalez, 1983, p. 225)
Nesse trecho, Lélia Gonzalez aponta para as especificidades das opressões vividas por mulheres negras e critica as ciências sociais brasileiras por, de maneira geral, incorporarem o racismo apenas a partir de uma perspectiva econômica, não levando em consideração outras dimensões dessa opressão. Além disso, a autora defende que a articulação entre as categorias de raça, classe, sexo e poder é necessária para que as estruturas de dominação da sociedade possam ser identificadas. Dessa forma, racismo, sexismo e classismo são para ela eixos estruturantes da dominação e sua imbricação faz com que as mulheres negras pobres ocupem uma posição desigual na estrutura social em relação às mulheres brancas e de classe média. Como consequência, para Lélia Gonzalez, nenhum movimento de mulheres pode ser considerado realmente feminista se não levar em consideração as especificidades vividas pelas mulheres negras. Essas afirmações também são totalmente convergentes com o manifesto Feminismo para os 99%.
Carolina Maria de Jesus, por sua vez, foi catadora de papel e viveu na favela do Canindé em São Paulo. Em seu livro “Quarto de despejo”, publicado pela primeira vez em agosto de 1960, a autora também articula, a partir de sua própria experiência, as opressões de gênero, classe e raça. A obra é uma reunião de cerca de vinte diários escritos por Carolina Maria de Jesus e editados pelo jornalista Audálio Dantas. Alguns trechos revelam a capacidade da autora em imbricar capitalismo, racismo e sexismo:
“Passei no açougue para comprar meio quilo de carne para bife. Os preços era 24 e 28. Fiquei nervosa com a diferença dos preços. O açougueiro explicou-me que o filé é mais caro. Pensei na desventura da vaca, a escrava do homem. Que passa a existência no mato, se alimenta com vegetais, gosta de sal mas o homem não dá porque custa caro. Depois de morta é dividida. Tabelada e selecionada. E morre quando o homem quer. Em vida, dá dinheiro ao homem. E morta enriquece o homem. Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com essas desorganizações.” (Jesus, 2014, p. 70)
Talíria Petrone, atualmente deputada federal pelo PSOL, escreveu o prefácio à edição brasileira do manifesto Feminismo para os 99%. No texto, ela chama atenção para outro trecho da obra de Carolina Maria de Jesus que também impressiona por sua força e concretude:
“A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago. (….) Eu escrevia as peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me: É pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro minha pele negra e meu cabelo rústico. Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta” (Ibid., 2014, p. 44)
Esses dois trechos do diário de Carolina Maria de Jesus corroboram a tese defendida pelas autoras do Feminismo para os 99% de que o feminismo necessariamente deve ser anticapitalista e antirracista, em oposição às tendências contemporâneas do feminismo liberal, que separa a luta de classes da luta feminista.
Tendo como base esses pressupostos, partiremos para a análise do manifesto à luz da obra de Nancy Fraser, uma das principais teóricas da tradição da teoria crítica e uma das autoras do manifesto.
Em primeiro lugar, é possível afirmar que o manifesto representa uma evolução em relação a obras anteriores da autora, já que desenvolve de maneira mais complexa a noção de justiça social. Anteriormente, o conceito de justiça elaborado por Fraser incorporava as dimensões da redistribuição material e do reconhecimento cultural (FRASER, 2001). Mais recentemente, a dimensão da representação política também foi incorporada pela perspectiva da filósofa (FRASER, 2009). Essa concepção de justiça foi formulada pela autora como uma crítica a leituras marxistas mais tradicionais que, de modo puramente economicista, olhavam apenas para a opressão capitalista como fonte de injustiças. Desse ponto de vista, a crítica feita por Fraser é semelhante à crítica formulada por Lélia Gonzalez apresentada anteriormente.
No manifesto do Feminismo para os 99%, uma formulação ainda mais complexa de justiça é apresentada. De acordo com as autoras, a crise contemporânea do capitalismo articula as dimensões da economia, da política, da cultura e do meio ambiente. Como consequência, a luta feminista deve ser necessariamente internacionalista, ecossocialista e antirracista. Isso significa que a noção de justiça que antes era tridimensional (redistribuição, reconhecimento e representação) passa a ser multidimensional e aberta para novas dimensões.
Outros dois elementos presentes no manifesto são desenvolvimentos de textos mais recentes de Fraser: a suposta oposição entre o reacionarismo conservador e o neoliberalismo progressista e a dicotomia artificial entre políticas identitárias e luta de classes.
No manifesto, as autoras defendem a necessidade de criação de um novo horizonte utópico que vá além da oposição entre reacionarismo conservador e neoliberalismo progressista. As consequências negativas que o neoliberalismo progressista traz para uma sociedade verdadeiramente justa já haviam sido abordadas por Fraser em outros textos (Fraser, 2018). As reivindicações feitas por parte dos movimentos feministas para que as mulheres sejam líderes em grandes empresas seriam um exemplo do que Fraser chama de neoliberalismo progressista, uma vez que a quebra do teto de vidro não questiona a estrutura do capitalismo e perpetua a exploração de mulheres mais pobres, especialmente as mulheres não brancas. As greves de mulheres ao redor do mundo, especialmente na Polônia e na Argentina, animaram essa reflexão contida no manifesto ao comprovar que uma alternativa socialista ainda pode estar no horizonte utópico de emancipação dos movimentos feministas.
Um outro ponto tratado pelo manifesto diz respeito ao combate à dicotomia entre políticas identitárias e luta de classes. O feminismo liberal, ao separar essas duas noções, acaba se tornando mais uma vez convergente com o capitalismo e, consequentemente, com a opressão das mulheres, especialmente as mulheres não-brancas. As autoras defendem que as políticas identitárias e a luta de classes estão imbricadas, o que acaba borrando as fronteiras entre público e privado. Nas palavras das próprias autoras:
“A nova onda feminista tem potencial para superar a oposição obstinada e dissociadora entre “política identitária e política de classe”. Desvelando a unidade entre “local de trabalho” e “vida privada”, essa onda se recusa a limitar suas lutas a um desses espaços”. (Arruzza et al., 2019, p. 34)
Esses aspectos demonstram o caráter radical do manifesto, que pretende nada mais nada menos do que ser uma atualização do Manifesto Comunista de Marx e Engels. Ao longo de todo o texto, assim como no manifesto marxista, teoria e prática se juntam para apresentar alternativas ao capitalismo, nesse caso o capitalismo neoliberal, com muita beleza e poesia. Dois trechos do manifesto são especialmente bonitos. Encerro essa resenha com eles:
“Em resumo, a nova onda de ativismo feminista combativo está redescobrindo a ideia do impossível, reivindicando tanto pão como rosas: o pão que décadas de neoliberalismo tiraram de nossas mesas, mas também a beleza que nutre nosso espírito por meio da euforia da rebelião.” (ARRUZZA et al, 2019, p.36)
“O feminismo para os 99% é um feminismo anticapitalista inquieto – que não pode nunca se satisfazer com equivalência, até que tenhamos igualdade; nunca satisfeito com direitos legais, até que tenhamos justiça; e nunca satisfeito com a democracia, até que a liberdade individual seja ajustada na base da liberdade para todas as pessoas”. (Ibid., 2019, p. 123)
Referências bibliográficas
Arruzza, C.; Bhattacharya, T.; Fraser, N.Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.
Combahee River Collective. The Combahee River Collective statement. [1978]. In:Smith, B. (org.). Home girls: a black feminist anthology. New Jersey,Rutgers University Press, 2008.
Crenshaw,K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, n. 10, v. 1, p. 171-188, 2002.
Fraser, N.Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: Souza, J. (org.)Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UnB, 2001.
_____. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado.Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 77, 2009.
_____. Do neoliberalismo progressista a Trump – e além. Revista Política & Sociedade, v.17, n. 40, 2018.
Gonzalez, L.Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Silva, L. A.et al. Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Ciências Sociais Hoje, Brasília: ANPOCS, 1983.
Jesus, C. M.Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.
Ratts, A.; Rios, F. Lélia Gonzalez. São Paulo: Summus/Selo Negro, 2010.
Nota
[1]Doutoranda e mestra em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. É formada em Relações Internacionais pela mesma Universidade. É pesquisadora do Grupo de Estudos de Gênero e Política da Universidade de São Paulo.
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