Daniela Mussi
Aborto e democracia é produto de uma boa Ciência Política que se desenvolve no Brasil contemporâneo: é feito de resultados pesquisas empíricas, reflexões teóricas e engajamento político (p. 14). Juntos, seus capítulos compõem as faces de um prisma a partir do qual a questão do aborto e dos direitos reprodutivos é pensada como problema permanente das instituições políticas brasileiras nas últimas décadas.
Apesar de composto por contribuições de diferentes intelectuais, dois pressupostos unificam esta coletânea: a separação entre Igreja e Estado e a concepção do aborto como um direito democrático e inclusivo (p. 24). São pressupostos que se erguem, aliás, na contramão dos sensos comuns conservadores que investiga na vida parlamentar e institucional brasileira dos últimos 30 anos.
Composto e publicado pouco antes do golpe legislativo que culminou na deposição da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, o livro reconstrói os aspectos do comportamento francamente conservador e autoritário da ampla maioria dos congressistas brasileiros. Os capítulos trazem pesquisas que evidenciam a atuação direta e persistente dos políticos brasileiros contra as liberdades e direitos das mulheres ao longo do ciclo democrático que antecede 2016.
Nas investigações relatadas, desfilam os discursos, projetos de lei, articulações partidárias e de lideranças permanentemente preocupadas em espoliar as conquistas das mulheres e em fazer recuar os avanços culturais e ideológicos que permitiram o país progredir, ainda que timidamente, no sentido de uma concepção laica e inclusiva de Estado. A coletânea, neste sentido, contribui para compreender melhor a natureza essencialmente misógina do ambiente legislativo e judiciário no Brasil e que ganhou repercussão em diversos episódios do processo do impeachment de Dilma Rousseff.
O enfoque institucional das pesquisas reunidas no livro evidencia como as questões ligadas ao aborto e direitos reprodutivos femininos se inserem naquilo que Antonio Gramsci (1975, p. 59) chamou de “exercício normal da hegemonia no terreno do regime parlamentar”, na dinâmica de equilíbrio entre força, consenso e fraude que permeia a vida institucional brasileira no pós-1988 (p. 127 e ss.). Este exercício hegemonia, porém, dificilmente pode ser considerada a favor das mulheres desde 1988.
As pesquisas mostram a difícil correlação de forças enfrentada pela agenda feminista na nova democracia brasileira. Evidencia como, mesmo depois de 2003 e a chegada de movimentos e bandeiras feministas históricas ao governo com a eleição do Partido dos Trabalhadores para o poder executivo federal, o conservadorismo antifeminista foi capaz de encontrar formas de se fortalecer, especialmente no poder legislativo – envolto em uma ideologia de contornos patriarcais e confessionais. Evidenciam as dificuldades da agenda feminista em avançar num ambiente institucional mesclado de fisiologismo e pragmatismo parlamentar para compor um ethos político absorvente. Nos cenários estudados, o tratamento oferecido aos direitos das mulheres revela este ethos comum a todos os grandes partidos e a dinâmica específica de alternância entre pequenas concessões e grandes ataques às conquistas sociais e aos valores feministas.
O descompasso é evidente quando se pensa a comparação entre as bandeiras e elaborações dos distintos movimentos feministas ao longo dos últimos 30 anos e o funcionamento efetivo da maioria das instituições políticas brasileiras. Inicialmente, um abismo foi formado, desde a redemocratização, entre o que se passava no âmbito da sociedade civil organizada (movimentos sociais, partidos, universidades, etc.) e a sociedade política (parlamentares, juízes, alta burocracia estatal, etc.). Com o tempo, porém, as discrepâncias entre a pressão realizada por movimentos de mulheres e as decisões parlamentares passam por mudanças importantes, resultantes de processos mais recentes: 1) a ampliação e diversificação do poder de pressão de lideranças e grupos de interesse religiosos e conservadores nos últimos anos dado seu crescimento extraparlamentar; e, ao mesmo tempo, o enfraquecimento da capacidade de pressão das lideranças e grupos de interesse feministas em virtude da crescente disposição política no campo laico e progressista em substituir pontos importantes da agenda feminista para angariar apoio eleitoral e partidário dos setores conservadores (p. 127 e ss.).
Entre as pesquisas da coletânea aponta, chama atenção a análise do papel ocupado pelo judiciário – em especial pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – na interpretação e julgamento de matérias relativas aos direitos reprodutivos das mulheres (p. 155). O STF, nos anos mais recentes, foi responsável por algumas das “concessões” aos direitos das mulheres no último período, como na interpretação mais flexível das leis que regulam as “exceções” em que o aborto é permitido. Isto abriu brechas para o movimento feminista ampliar sua margem de pressão e defender os direitos das mulheres como parte dos valores constitucionais democráticos e inclusivos. No geral, contudo, as expectativas com relação a esta arena não permitem muito otimismo se pensadas no quadro histórico mais geral das prerrogativas que movem atuação deste tribunal, especialmente sua trajetória de “continuidade jurisprudencial e doutrinária” com o passado autoritário brasileiro (Koerner, 2014, p. 53; cf. Koerner; Freitas, 2015).
Aborto e Democracia, neste sentido, realiza o exercício de uma hipotética “Constituinte” dos direitos reprodutivos das mulheres. Faz, inicialmente, incursões de natureza teórica no tema do aborto e direitos reprodutivos femininos, visando avançar na elaboração deste como um direito democrático básico em um Estado laico e inclusivo. Em seguida, examina o trágico percurso deste tema nas instituições, evidenciando os limites drásticos da realização da democracia no Brasil a serem ultrapassados. Sinaliza, ainda, a surpreendente e acelerada degradação da agenda feminista nos anos que sucedem a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao governo, o que retoma de maneira sutil o lugar insubstituível da participação e pressão da “sociedade civil” na produção e proteção de leis democráticas para as mulheres.
Por fim, tomando em termos concretos o direito ao aborto como chave para interpretação da democracia brasileira, a atenção se volta não apenas para os acontecimentos do biênio 2014-2016, mas para a corrida eleitoral pela presidência da república de 2010 (p. 195). Embora a ênfase apareça colocada no papel do jornalismo em construir um discurso capaz de direcionar a opinião pública em um sentido conservador, é impossível não pensar este como um contexto no qual a disposição em negociar a defesa dos direitos reprodutivos feminismo contribuiu para o processo de enfraquecimento profundo dos movimentos sociais populares e democráticos.
Ao longo desta coletânea, portanto, a relação entre aborto e democracia se desenha como teórica, empírica, trágica e utópica, sendo que cada uma destas dimensões ajuda a compor um ambiente problemático no qual pensar é também agir.
Referências bibliográficas
Gramsci, A. Quaderni del Carcere. Torino: Einaudi, 1975. 4v
Koerner, A. Os tempos no processo judicial na instauração da ordem constitucional brasileira de 1988: uma análise da ADI n. 2. Fontes, n. 1, p. 41-54, 2014.
Koerner, A.; Freitas, L. B. O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo. Lua Nova, n. 88, p. 141-184, 2013.
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