As brechas que inspiram: 68 e nós


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Brechas que inspiram: Maio de 68 e nós

Resumo: Vivemos um interregno, uma transição, desde 1968. De lá pra cá, uma sobreposição de fins de mundo – capitalismo com democracia representativa e estado de bem-estar, socialismo autoritário, projetos de libertação nacional, planeta com a mudança geológica do capitaloceno – nos desafia. Maio de 68, esse acontecimento, nos diz, como inscrito novamente nos muros de Paris em 2016, que um outro fim de mundo é possível.

Palavras-chave: 1. Maio 68; 2. Capitalismo tardio; 3. Utopia

 

Abstract: We have lived an interregnum, a transition, since 1968. From then on, an overlapping of world ends – capitalism with representative democracy and a state of well-being, authoritarian socialism, national liberation projects, a planet with the geological change of the capital. challenge May 68, this event tells us, as inscribed again on the walls of Paris in 2016, that another end of the world is possible.

Keywords: 1.May 68; 2. Late Capitalism; 3. Utopia

História intelectual e a problemática da recepção: Marx na Argentina


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A história intelectual e a problemática da recepção: Marx na Argentina

Resumo: O presente artigo apresenta um extenso estudo sobre a recepção das ideias de Karl Marx na Argentina. Ao longo do processo da presente tradução, Tarcus consultou os originais do livro Marx en la Argentinaem espanhol atualizou o seu texto; após anos da redação do original, tendo tempo para sua reflexão percorrer outros caminhos e livros, reescreveu passagens, adicionou notas e refez partes do texto. Em particular, incluiu passagens de um diálogo com a bibliografia brasileira sobre o tema.

Palavras-chave: 1. Karl Marx; 2. Marxismo; 3. Argentina

 

Intellectual history and the problem of reception of ideas: Marx in Argentina

Abstract:This article presents an extensive study on the reception of Karl Marx’s ideas in Argentina. Throughout the process of this translation from the original in Spanish, Tarcus consulted the originals of his book on Marx en la Argentinaand updated its text; after years of writing the original, taking time to reflect on other paths and books, he rewrote passages, adding notes, and reworked parts of the text. In particular, the article includes passages from a dialogue with the Brazilian bibliography on the subject.

Keywords:1. Karl Marx; 2. Marxism; 3. Argentina

O “rentismo” e a léxis de O capital


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O “rentismo” e a léxis de O Capital

Resumo: O presente artigo tem como base um comentário acerca das discussões propostas por François Chesnais acerca do capital financeiro em sua obra Finance capital today(2016). Embora seja um importante estudo acerca da fase atual do capitalismo bebendo de uma tradição marxista, o que se procura demonstrar no presente artigo é que o objeto de análise de Chesnais acabou se aproximando mais de Keynes do que de Marx, fugindo da léxis específica de O Capitale colocando-se em contradição com algumas das premissas da obra clássica do filósofo alemão.

Palavras-chave:1. O Capital; 2. Marxismo; 3. Capitalismo rentista

 

The “rent-seeking” and the lexis of Capital

Abstract: The following paper has as its base a commentary around the discussions launched by François Chesnais about the finance capital in its book Finance Capital Today(2016). Although it is an important study about the current stage of capitalism, involved in a Marxist tradition, what really shows off in this paper is that the object of analysis for Chesnais is somewhat closer to Keynes than it is to Marx, escaping itself from the specific lexis of Das Kapital, creating a contradiction with some of the most basic premises of the classical study of Marx.

Keywords:1.Das Kapital; 2. Marxism; 3. Renti-seeking Capitalism

Revoluções passivas na América Latina


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Revoluções passivas na América Latina

Resumo: O artigo investiga os resultados de uma pesquisa sobre os usos do conceito gramsciana de revolução passiva pelos gramscianos latino-americano nos anos 1970-1980, período da difusão do pensamento de Gramsci, pouco conhecido até então no continente. Em seguida, apresenta considerações sobre o conceito em Gramsci, mas também além deste autor, colocando ênfase na relação entre passividade e subalternidade, e nas noções de progressividade e hegemonia.

Palavras-chave:1.Antonio Gramsci; 2. Revolução Passiva; 3. Subalternidade

 

Passive revolutions in Latin America

Abstract:The article investigates the results of a research on the uses of Gramsci’s concept of passive revolution by the latin american gramscians in the years 1970-1980, period of the diffusion of the Gramsci thought, little known then in the continent. And then presents considerations about the concept in Gramsci, but also beyond this author placing emphasis on the relationship between passivity and subalternity, and on the notions of progressivity and hegemony.

Keywords: 1.Antonio Gramsci; 2. Passive Revolution; 3. Subalternity

A relação centro-periferia e os estudos gramscianos


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A relação centro-periferia e os estudos gramscianos

Resumo: O objetivo deste texto é discutir os limites da noção/metáfora centro-periferia como cânone de interpretação nos estudos gramscianos, tomando ponto de partida a pesquisa monográfica da trajetória da relação entre Antonio Gramsci e Piero Gobetti e das interpretações a seu respeito no pós-1945. Depois de refletir sobre os usos possíveis dessa metáfora em um diálogo proposto entre as ideias de Gramsci e de alguns intelectuais brasileiros, discute seus limites na artificiosa construção político-cultural e historiográfica promovida pelo PCI na segunda metade do século XX.

Palavras-chave: 1. Antonio Gramsci; 2. Centro-periferia; 3. Piero Gobetti

 

The center-periphery relationship and the Gramscian studies

Abstract: The aim of this paper is to discuss the limits of the notion / center-periphery metaphor as a canon of interpretation in the Gramscian studies, starting from the monographic research about the trajectory of the relation between Antonio Gramsci and Piero Gobetti and the interpretations about him in post-1945 . After reflecting on the possible uses of this metaphor in a proposed dialogue between the ideas of Gramsci and some Brazilian intellectuals, this paper discusses its limits in the artificially politico-cultural and historiographic construction promoted by the PCI in the second half of the twentieth century.

Keywords: 1. Antonio Gramsci; 2. Center-Periphery; 3. Piero Gobetti

Gramsci e antropologia de Malinowski


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 Antonio Gramsci: em busca de um marxismo etnográfico

Resumo: O artigo busca explorar a “sensibilidade etnográfica” presente nos Cadernos  eCartas do Cárcere de Antonio Gramsci. Para tanto, buscará a partir de uma comparação com Malinowski chamar a atenção para a centralidade que a cultura assume na reflexão gramsciana, em especial em sua abertura às visões de mundo e ações das classes subalternas.

Palavras-chave:1.Cultura; 2. Etnografia; 3. Classes Subalternas

 

Antonio Gramsci: towards an ethnographic Marxism

Abstract:The article seeks to explore the “ethnographic sensitivity” present in Antonio Gramsci’s Prison Notebooksand Letters. Therefore, it will seek from a comparison with Malinowski to draw attention to the centrality that culture assumes in Gramsci’s reflection, especially in its openness to the worldviews and actions of the subaltern classes.

Keywords: 1. Culture; 2. Ethnography; 3. Subaltern Classes

A Revolução Russa e os deficientes


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A Revolução Russa e os deficientes

Resumo: O presente artigo de Keith Rosenthal discute a questão das deficiências na Revolução Russa. Compreendendo o período revolucionário como um momento de intensificação das lutas sociais, Rosenthal mostra como a questão das diferentes deficiências, físicas e mentais, mobilizou uma série de transformações de ordem política na Rússia durante a Primeira Guerra Mundial e como tais demandas foram incorporadas pelo Partido Bolchevique. Em última instância, questões que abrangiam a seguridade social, a prevenção de acidentes de trabalho, a finalidade das instituições totais de cunho psiquiátrico eram, dentre muitos, temas de debate e de proposição política no contexto revolucionário de 1917.

Palavras-chave:1. Revolução Russa; 2. Deficiências; 3. Sistema de saúde

 

Disability and the Russian Revolution

Abstract:The following paper by Keith Rosenthal discusses the issue of disabilities during the Russian Revolution. Understanding the revolutionary period as a moment in which social struggles were intensified, Rosenthal shows us how the issues of different disabilities, physical and mental, mobilized a whole series of changes in Russian political order during the First World War, seeing how they were incorporated by the Bolsheviks. Ultimately, those issues ranged from social security, work injuries, the goals of total psychiatric institutions, and so on, all them being debated and theme of political propositions in the revolutionary context of 1917.

Keywords: 1.Russian Revolution; 2. Disabilities; 3. Healthcare System

“A virada de Moscou”: o diálogo entre Gramsci e os bolcheviques (1922-1923)


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“A virada de Moscou”: o diálogo entre Gramsci e os bolcheviques (1922-1923)

Resumo:O artigo investiga o pensamento de Antonio Gramsci no período 1922-1923, contexto em que o marxista sardo esteve contato direto com a experiência soviética.  Propõe que a característica específica da concepção “madura” de Gramsci a respeito hegemonia foi moldada por uma problemática profunda surgida neste período. Isto é, conformada pela transição bolchevique no sentido de uma noção dialética do “progresso hegemônico-histórico”. Trata-se, portanto, de uma perspectiva que propõe a hegemonia em termos de sua capacidade (ou incapacidade) de produzir instâncias reais de progresso histórico.

Palavras-chave:1. Hegemonia; 2. Revolução Russa; 3. Antonio Gramsci

“La svolta di Mosca”: the dialogue between Gramsci and the Bolsheviks in 1922-23

Abstract:The article investigates the thought of Antonio Gramsci in the period 1922-1923, a context in which the Sardinian Marxist was in direct contact with the Soviet experience. It proposes that the specific characteristic of Gramsci’s “mature” conception of hegemony was shaped by a profound problematic that emerged during this period. That is, conformed by the Bolshevik transition in the sense of a dialectical notion of “hegemonic-historical progress”. It is, therefore, a perspective that proposes hegemony in terms of its capacity (or inability) to produce real instances of historical progress.

Keywords: 1. Hegemony; 2. Russian Revolution; 3. Antonio Gramsci

[Resenha a:] ROEDIGER, David. Class, Race and Marxism. London, New York: Verso Books, 2017.


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Roediger, David. Class, Race and Marxism.  London, New York: Verso Books, 2017.

Atílio Bergamini [1]

É bem conhecida a crítica ao argumento chamado por alguns “racialista”: no Brasil ele não funciona, porque dada a miscigenação, converteria um problema complexo à oposição inequívoca branco-negro, inspirada na universidade norte-americana. Tal crítica figura em livros excelentes, como Veneno remédio, de José Miguel Wisnik (2008, p. 420-429), de onde parafraseei as linhas acima, e em outros mais questionáveis, como os trabalhos do antropólogo Antonio Risério (por sua vez, citado elogiosamente por Wisnik).

A impressão que fica, às vezes, é que era melhor deixar para lá o debate sobre raça, porque nossa perspectiva colonizada tende a imitar acriticamente as ideias norte-americanas. Ao mesmo tempo, como demonstra o próprio Wisnik, a questão racial é tão estruturante de cada aspecto da vida no Brasil e tão central para a compreensão da estrutura de classes, que se furtar ao debate orça na irresponsabilidade. Diante disso, voltamos ao início: parece ser relevante, entre outras coisas, conhecer o que tem sido escrito a respeito de raça aqui e alhures, para ir, pouco a pouco, formando juízo a respeito. Será a diferença racial nos Estados Unidos mesmo inequívoca? Só é possível aproveitar o denso debate que por lá ocorre a partir da imitação e da cópia? Caso o leitor considere relevante avaliar criticamente o que se discute nos Estados Unidos ou se informar sobre o que tem sido feito nas universidades e movimentos sociais, então Class, Race, and Marxism, do historiador da Universidade do Kansas, David Roediger, é leitura recomendada.

O livro se vale de palavras-chave – no sentido que lhes deu Raymond Williams – para, entre outras coisas, analisar publicações sobre a administração de fazendas e de escravos no século XIX. Procurando me vincular a um dos métodos do pesquisador, gostaria de iniciar esta resenha com uma lista de algumas delas, o que talvez ajude leitores potenciais a ter uma noção do conjunto de preocupações que anima o livro e não deixa de ao menos esboçar os principais traços da obra de Roediger como um todo: administração de escravos, administração da terra, brancos, capitalismo, classe, classe trabalhadora, colonialismo, escravidão, fazendas de algodão, guerra civil norteamericana, imperialismo, marxismo, materialismo histórico, nacionalismo, negros, racismo, raça, solidariedade, universalismo.

O argumento que costura a coerência dessas palavras-chaves talvez possa ser parafraseado assim: os contemporâneos recuos da atividade sindical e dos movimentos por direitos civis nos Estados Unidos impõem dificuldades à compreensão das relações entre classe e raça desde uma perspectiva marxista. As dificuldades aparecem inclusive no tom das discussões a respeito, enquanto os recuos precisariam ser pensados a partir do chamado “fator-X”, formulado por Michael Lebowitz, de acordo com o qual a produção capitalista aumenta a cooperação entre trabalhadores, aumentando a separação e as diferenças entre eles, o que dificulta a solidariedade. Um dos componentes mais explícitos da separação e das diferenças seria o racial; sua história exigiria pensar a raça como um dos fundamentos do capitalismo. Isto posto, a solidariedade precisa ser enfatizada como palavra-chave na superação do fator-X, cabendo entender quais condições a tornam efetiva e sobretudo cabendo sopesar o que a torna difícil. Nesse ponto, o livro remete implicitamente ao seu início, pois o tom das discussões em torno de raça e classe passa a ser um sintoma das dificuldades para a solidariedade efetiva entre trabalhadores. A compreensão de um problema e as intervenções públicas para contorná-lo vão de par, numa dialética singular em que, se uma enfraquece, ambas enfraquecem ao mesmo tempo, criando figuras como o racismo, o nacionalismo e a falta de solidariedade entre trabalhadores.

Esses argumentos estão distribuídos em duas partes com três capítulos cada. A primeira se intitula, não por nada, “Interventions: Making Sense of Race and Class”. A segunda, “Histories: The Past and Present of Race and Class”. A estrutura do livro, portanto, remete à dialética recém referida.

Roediger antepõe às duas partes principais uma introdução, marcada sobretudo pela discussão a respeito do tom das polêmicas a respeito da dialética raça e classe: “I do stand by the idea that all of us should approach the difficulties for thinking about race and class generated by the difficult period in which we live with humility and frank admission that we cannot know where thing will go” (p. 19). Essa preocupação exigiria atenção em duas frentes de trabalho: as recentes lutas e os recentes trabalhos acadêmicos. Roediger vê nesse conjunto de lutas e trabalhos lampejos de possibilidades para a criação de vínculos efetivos de solidariedade na classe trabalhadora. Três áreas mereceriam especial atenção:

1) estudos críticos sobre a branquitude (que poderiam ajudar a entender mudanças contemporâneas na classe trabalhadora);

2) movimentos anti-polícia e antirracismo, bem como trabalhos lidando com a desigualdade social desde a perspectiva da população afro-americana;

3) críticas às ideias de intelectuais como David Harvey, de que raça não ajuda a pensar a lógica do capital, trazendo outras compreensões do processo de criação de raças, do racismo e da maneira como isso tudo se relaciona com a luta de classes.

Embora os três itens remetam a trabalhos por serem feitos, eles não deixam de se fazer presentes e, se minha leitura ainda inicial dos trabalhos de Roediger permite dizer, parecem ser um resumo válido do que o tem preocupado desde pelo menos o final da década de 1980.

Tendo em vista o que acabei de afirmar, creio ser importante, antes de expor e discutir brevemente algumas das principais ideias de Class, Race, and Marxism, lembrar que ele é o sexto livro de Roediger lançado pela editora Verso, vinculada à New Left Reviewe responsável, desde os anos 1970, por colocar em circulação reflexões de esquerda em diversas áreas. Do ponto de vista do público brasileiro, talvez seja interessante lembrar que a Verso editou e traduziu para o inglês dois conjuntos de ensaios de Roberto Schwarz, em 1992 e 2013. De Roediger, esta casa editorial lançou: Our Own Time: A History of American Labor and the Working Day(1989, com Philip S. Foner); Towards the Abolition of Whiteness: Essays on Race, Politics, and Working Class History(1994); The Wages of Whiteness: Race and the Making of the American Working Class(2007); How Race Survived US History: From Settlement and Slavery to the Obama Phenomenon(2010); Seizing Freedom: Slave Emancipation and Liberty for All(2015). Todos referidos e discutidos em Class, Race, and Marxism, que, vale a pena repetir, acaba sendo boa leitura de introdução ao pensamento do autor.

No livro recém lançado, Roediger traz dois conjuntos de dados como ponto de partida para refletir. (1) O número de greves com mais de mil trabalhadores nos Estados Unidos se reduziu de uma média de 300 por ano, para somente 5 em 2009, 11 e 12 em 2014 e 2015; (2) a frequência de prisões de pessoas negras aumentou na comparação com a prisão de brancos – em 2007, os cidadãos negros eram presos sete vezes mais do que brancos nos Estados Unidos; em 2017, a razão chegou a 16 vezes mais. Qual a relação entre essas duas séries históricas?[2]

O autor elege como tema principal dos três primeiros capítulos da primeira parte a dificuldade de falar e escrever a respeito de raça-classe. Para tal, discute “tom e substância” das polêmicas em torno da articulação entre classe e raça; bem como defende que as duas categorias são fundamentais para fazer análises históricas e possibilitar ações políticas atualmente. O autor retoma criticamente a proposta de David Harvey (2014) em 17 contradições e o fim do capitalismo, para quem a pergunta certa a ser feita seria: como as lutas antirracistas, feministas etc., podem se efetivar como práticas anticapitalistas?

Para Harvey, as contradições do capital não podem ser diretamente explicadas por questões de raça, gênero, etc. Estas categorias não seriam típicas ou próprias das contradições do capital. Estas poderiam, por outro lado, ser racializadas como acontece nos Estados Unidos, ainda que, também lá, de acordo com Harvey, movimentos antirracistas possam, ao mesmo tempo, ser pró-capitalistas. Roediger procura mostrar que Harvey encontrou uma boa maneira de discordar de seus argumentos discutindo a maneira como o capitalismo produz raças e racismo como uma das condições de sua reprodução.

A sequência de ponderações a respeito do tom e substância de estudos sobre raça e classe avança até chegar, no terceiro capítulo, em George Rawick, um “intelectual branco entre intelectuais negros”, que Roediger tem como mestre e antecessor. As barreiras raciais se tornaram, de acordo com a análise de Roediger, o espaço para a reflexão de Rawick. Aqui, os pontos de partida muitas vezes são multifacetados, contraditórios e imperfeitos, mas Rawick se tornou “um produto, um beneficiário e um produtor” de reflexões “entre intelectuais negros”. De Rawick a Harvey, parece que Roediger se preocupa em pensar as melhores maneiras de intelectuais brancos colaborarem com as discussões do eixo raça-classe.

A ênfase ao debate entre Harvey e Roediger, chegando a Rawick, pode dar a impressão de que Roediger não dialoga com pensadores negros. Isso é incorreto. W. E. B. Du Bois e C. L. R. James são duas das principais referências, costurando o livro do começo ao fim. O autor afirma (p. 25) que os estudos retém à ideia de capitalismo racial, ao invés de simplesmente capitalismo, fundamentada na obra de Cedric Robinson, Black Marxism: The Making of the Black Radical Tradition, de 1983, que, paradoxalmente, não está diretamente referida, mas aparece a partir de estudos secundários. Por fim, intelectuais como Paul Gilroy são discutidos em diversos momentos.

Aproveitando a referência a Gilroy, gostaria de trazer ainda uma anotação a respeito do primeiro capítulo, “The retreat from Race and Class”: ele, em grande medida, discute os argumentos de After Race(Darder; Torres, 2004), e Against Race(Gilroy, 2000). Para Roediger, ambos entendem que voltar atrás da noção de raça e, no limite, não mais utilizá-la, reforçaria as lutas contra hierarquias racializadas (p. 40ss.). Este passo da discussão tem especial relevância para brasileiros, já que Roediger retoma um debate sobre a questão racial no Brasil, provocado pelo artigo de Pierre Bourdieu e Loic Wacquant, de 1999, traduzido para o português em 2002 como “Sobre as artimanhas da razão imperialista”.

Os pesquisadores franceses teriam proposto que o nivelamento ou achatamento das noções de classe e raça produzia más formas de compreensão histórica e de possibilidades políticas no Brasil daquele período. Isso porque a noção de “raça” seria produzida desde o “imperialismo cultural” das universidades norte-americanas, o que levaria brasileiros a pensarem neutralizando o próprio contexto histórico. A ideia de raça discutida em universidades norte-americanas seria muito diferente das ideias que os brasileiros fazem a respeito das questões raciais, consequentemente o Brasil estaria importando ideias e deixando de prestar atenção na própria maneira de pensar o problema.

Roediger sintetiza da seguinte maneira as respostas dadas por diversos pesquisadores ao artigo de Bourdieu e Wacquant: tanto pesquisadores brasileiros quanto norte-americanos entenderam que, ao contrário do que argumentaram Bourdieu e Wacquant, a noção de raça era pouco utilizada em discussões. Ainda de acordo com as respostas tal como sintetizadas por Roediger, o imperialismo cultural norte-americano tem sido discutido nas universidades brasileiras há algum tempo. O argumento de Roediger não específica do que se trata, mas dá a entender que o acúmulo de discussão sobre imperialismo cultural se refere tanto à questão específica do termo raça quanto à presença, por exemplo, dos chamados “enlatados” na vida brasileira. As respostas ao artigo de Bourdieu e Wacquant também consideraram que brasileiros e norte-americanos produziram reflexões duradouras sobre o deslocamento dos povos indígenas, o tráfico de escravos, a escravidão e o imperialismo. Estes processos, por sua vez, produziram sociedades a um só tempo diferentes e comparáveis, com hierarquias e dilemas raciais de consideráveis consequências.

Em resumo, a primeira parte do livro diz respeito ao tom encontrado – ou desencontrado – por intelectuais para intervir nos debates sobre raça e classe.

A segunda parte é formada por três capítulos, que formam, digamos, uma história de longa duração, desde a remoção dos índios de suas terras, passando pela escravidão negra e pela administração do trabalho em fazendas de algodão, até chegar às dificuldades para uma solidariedade de classe na atualidade, que estaria, é bom lembrar, relacionada com os recuos objetivos na atividade sindical e nas condições de vida das populações afrodescendentes nos Estados Unidos.

O capítulo 4, “Removing Indians, Managing Slaves, and Justifying Slavery: The Case for Intersectionality”, analisa jornais, panfletos, almanaques e livros escritos desde a perspectiva de grandes proprietários rurais. Nele, encontramos elementos para reforçar o argumento de que uma elite agrícola branca disseminou ao longo do século XIX nos Estados Unidos práticas e ideias baseadas nas suposições de que negros não tinham inteligência para administrar fazendas, mas eram bastante hábeis no trabalho; índios, por sua vez, eram incapazes de husbanding land. Negros e índios, portanto, precisariam ser dirigidos por essa elite. Essa direção era pensada como moderna, voltada para o mercado, civilizadora. A guerra civil norte-americana – na medida em que, em determinado momento, as terras foram todas roubadas dos índios e incorporadas à lógica da propriedade – poderia ser explicada ao menos em parte por esse fenômeno. Norte e sul teriam passado a disputar o assenhoramento dos mesmos recursos: corpos e terras.

Esse capítulo prepara a discussão do próximo, escrito a quatro mãos, com Elizabeth Esch, “One Sympton of Originality. Ele parte das hipóteses de pesquisadores – especialmente Dipesh Chakrabarty e Michael A. Lebowitz – para quem o capital não apenas leva a uma cooperação decorrente da concentração de trabalhadores, como Marx descreve, mas também essa concentração induz a uma divisão de trabalhadores (“they divide workers”, p. 122) na estrutura da divisão do trabalho. Racializados e nacionalizados, os trabalhadores passam a competir entre si por um lugar ao sol da exploração e suas lógicas de reconhecimento. O seguinte trecho sintetiza muita coisa:

“As members of both a white settler and a slaveholding society, Americans developed a sense of themselves as white by casting their race as uniquely fit to manage land and labor and by judging how other races might come and go in the service of that project. Dispossession of Indians, and the ‘changes in the land’ that it entailed and celebrated, found much justification in the supposed inabilit of indigenous people to ‘husband,’ or manage, the resources at their command. Early American management decisions centered on what sort (and quickly on what ‘race’) of coerced labor was most economical, skilled, durable, efficient and tractable. […] The factory and plantation coexisted as the most spectacular sites for management of labor in the Americas with, if anything, the latter providing models for the former” (p. 123, 124).

Surgiu, de acordo com Esch e Roediger, já por volta dos anos 1830, todo um pseudocientífico debate a respeito das melhores maneiras de administrar negros e fazendas. Por mais absurdos que fossem os argumentos, ou justamente porque nessas horas o que menos importa são argumentos, a pseudociência ganhou contornos transnacionais. Explorações em outros países e “importação” de escravos chineses, além dos africanos, passaram a ser racionalizados por preconceitos raciais supostamente calcados na ciência e na observação. A raça de cada trabalhador era, já em meados do século XIX, um fator fundamental para os cálculos “racionais” do lucro. Cada raça tinha certas peculiaridades. Os brancos, reclamava um feitor, não podem ser dirigidos. Eram os anos em que apareceram certos americanismos linguísticos, como nigger work, slave like a nigger  e Irish nigger.

A questão, nesse ponto, remete outra vez para a divisão entre trabalhadores provocada pela concentração deles em fazendas, fábricas e cidades. Roediger parece sugerir que um ponto crucial nas lutas de classe contemporâneas e nas lutas dos movimentos negros contemporâneos reside em identificar, criticar e resistir à crescente perda de solidariedade entre os próprios trabalhadores e solidarização em relação ao capital como única perspectiva capaz de administrar os recursos do planeta. Roediger sugere que sejam quais forem as respostas, seria preciso que movimentos sociais ou antes deles “as lutas” as elaborassem e que as universidades as pudessem escutar atentamente.

A propriedade de terras nos Estados Unidos e a possibilidade de gerenciá-la estão ligadas, sintetiza Roediger, às seguintes ideias nucleares: índios não sabem gerir a própria terra, que sejam mortos e expulsos para dar lugar a quem pode civilizar e modernizar a agricultura; negros não sabem gerir o próprio trabalho, que sejam sequestrados e educados para o trabalho duro; mulheres não sabem gerir o próprio corpo, que sejam tuteladas a usá-lo na reprodução de mão-de-obra, de herdeiros e nos cuidados exigidos por essa reprodução. É evidente que, assim pensada, a elaboração precisa ser deslocada para fazer surgir um problema. Que o índio seja sua terra, o negro seu trabalho e a mulher seu corpo desde a perspectiva do proprietário branco, leva a superar, no sentido de aprofundar, as interrelações entre gênero, raça e classe. Está bem vista a importância que essa descrição histórica do processo atual de perda de solidariedade nos Estados Unidos.

Para concluir, retorno aos problemas de “tom” enfrentados nos primeiros capítulos do livro. Do ponto de vista da disciplina em que atuo como professor, a teoria da literatura, a raça teve e tem especial importância. Foi um dos principais conceitos operados pelos “Naturalistas”, na tentativa de romper com a retórica e a gramática como esteios da interpretação literária. Ou seja, quando a humanidade ocidental procurou historicizar a interpretação da arte, uma de suas primeiras operações foi racializar a discussão. A historicização das formas artísticas, desde Hegel, tem na reflexão sobre as raças um de seus esteios. No Brasil, Silvio Romero, no final do século XIX, se valeu da ideia de raça para tentar explicar e julgar obras literárias e até mesmo se insinuar por interpretações mais amplas: calcado na ideia de mestiçagem, procurou construir uma narrativa para o suposto atraso da cultura brasileira. Machado de Assis era péssimo escritor por fazer parte da “sub-raça cruzada brasileira”. Índios, negros, caboclos em sua incultura e falta de técnica precisariam sempre o polimento e a inteligência do branco europeu. Vê-se aí que uma retomada crítica das ideias de Roediger, pode ajudar a pensar questões brasileiras em diversos áreas do saber e em diversos campos de atuação política.

Referências bibliográficas

Braga, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012.

Darder, Antonia; Torres, Rodolfo D. After Race: Racism after Multiculturalism. New York: NYU Press, 2004

Gilroy, Paul. Against Race: Imagining Political Culture beyond the Color Line. Cambridge: Belknap Press, 2000.

Harvey, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2014.

Robinson, Cedric.  Black Marxism: The Making of the Black Radical Tradition, de 1983,

Williams, Raymond. Palavras-chave:um vocabulário da cultura e da sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007.

Wisnik, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[1]Professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Ceará.

[2]Embora os dados trazidos se refiram aos Estados Unidos, estudos recentes, como o de Ruy Braga (2012) sobre a fatia da população por ele denominada precariado, mostram tendências parecidas em diversos países.

[Resenha a:] SALLES, Severo (coord.). A diversidade das lutas sociais.Salvador: EDUFBA, 2015.


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Salles, Severo (coord.). A diversidade das lutas sociais.Salvador: EDUFBA, 2015.

Gisele de Cássia Lopes [1]

 

Severo de Albuquerque Salles, coordenador do livro, é doutor em Ciência Política e doutor de Estado em Ciências Econômicas. Atualmente, é membro do Centro de Estudos Latino Americanos da Facultad de Ciências Políticas y Sociales e do Programa de Pós-graduação da Universidade nacional Autônoma do México. A obra A diversidade das lutas sociaisé composta por sete capítulos de diferentes autores que retratam sobre as distintas formas de opressão, de manifestação e resistência dos oprimidos e explorados.

O primeiro, “Internacionalização do capital, diversidade dos movimentos populares e democracia”,de Severo Salles, o autor destaca que no capitalismo, a força de trabalho se tornou uma mercadoria e que devido a isso, enquanto a sociedade trabalha para produzir, existirá o mercado, o capitalismo e as classes sociais antagônicas que lhe são próprias. O trabalho realizado de modo independente não é reconhecido prontamente na produção mercantil como um trabalho socialmente útil. Para isto, é necessário que eles passem pela esfera do mercado para que talvez eles possam ser reconhecidos como parte do trabalho requerido pela sociedade. Em relação ao capital, o autor destaca que o mesmo se reforça na sua correlação de forças com o trabalho. E o processo de institucionalização do capital advém das lutas democráticas. Salles destaca também sobre as lutas de classes existentes. Estas atingem a plena existência quando estão em luta e são elas que constituem o impulso principal da história de uma formação social como totalidade. Elas que agem sobre as relações internas de uma realidade social histórica.

O segundo capítulo, “Reflexões sobre as tendências do capital na agricultura e os desafios do movimento camponês da América Latina”, de João Pedro Stédile, líder do Movimento dos trabalhadores Sem Terra (MST) fala da dominação do capital financeiro globalizado sobre o capitalismo, ou seja, a acumulação das riquezas e do capital está concentrada na esfera do capital financeiro. E este precisa controlar a produção das mercadorias na indústria e na agricultura para apropriar da mais valia produzida pelos trabalhadores agrícolas.

Stédile cita cinco mecanismos pelo qual o capital financeiro passou a controlar o comércio. O primeiro foi através do excedente do capital financeiro. Os bancos começaram a comprar ações de grandes firmas que tinham relação com a agricultura e em poucos anos, essas firmas obtiveram um crescimento extraordinário do capital financeiro e controlaram setores que têm relação com a agricultura. O segundo mecanismo de controle foi a dolarização da economia mundial. As firmas aproveitaram da taxa de câmbio favorável e dominaram o comércio de produtos agrícolas. O terceiro mecanismo foi os regulamentos do livre comércio impostas pela Organização Mundial do Comércio (OMC), Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) que regularizaramo comércio agrícola. O quarto mecanismo foi o crédito bancário. Para o desenvolvimento da produção agrícola, foi preciso a utilização de crédito para financiar a produção e com isso os bancos financiaram a implantação e o domínio da agricultura no mundo. O último mecanismo fala que os governos deixaram as políticas públicas de proteção do mercado agrícola e aplicaram políticas neoliberais de subsídios na grande produção agrícola capitalista.

Para finalizar seu texto, Stédile fala sobre as propostas que o movimento camponês da América Latina tem desenvolvido. As propostas são a implantação do programa agrícola e hídrico alimentar de cada país; impedir a concentração da propriedade privada da terra, da floresta e da água; adotar sistemas de produção dos alimentos baseados na diversificação da agricultura; adotar técnicas de produção que procurem o crescimento da produtividade do trabalho e da terra; Desenvolver a organização das agroindústrias em pequenas e meias escalas, na forma de cooperativas administradas pelos trabalhadores industriais que produzem sua matéria prima. Defender uma “política de deflorestação zero” preservando a natureza e utilizando recursos naturais de maneira adequada e favorecendo o povo residente no local; Implementar um projeto energético popular para o país; Garantir as políticas de segurança social para toda a população do meio rural; Proibir que qualquer firma estrangeira seja proprietária de terras em qualquer país do mundo e desenvolver políticas para melhorar as condições de vida nos povos e comunidades rurais.

No terceiro capítulo, “A participação das mulheres no Movimento dos Trabalhadores sem teto em Salvador”, Renato Macedo Filho e Ana Alice Alcântara Costa comentam sobre o movimento dos sem teto que vem despontando na cena urbana e o que ele vem trazendo, como o alto índice de desemprego, a falta de infraestrutura, saneamento, saúde e o déficit habitacional das grandes e médias cidades. Os autores mostram que neste movimento a atuação das mulheres se tornou algo recorrente. Em 1940, aconteceram as primeiras mobilizações por moradia em Salvador, constituídas por pessoas das camadas mais pobres. Essas pessoas tiveram que se desalojarem dos centros e irem para bairros mais pobres devido à ocupação dos centros pela população de classe média e alta. As mulheres estavam presentes e assumindo posições significativas desde as primeiras mobilizações por moradia em Salvador. Os autores levantam uma observação interessante sobre o movimento sem teto, ele é constituído predominantemente por mulheres e homens negros, reflexo de um processo histórico no Brasil de exclusão social e escravismo.

O quarto capítulo, “Associativismo e produção espacial em Salvador (BA): a produção espacial por novos personagens urbanos”, de Margarete Neves Oliveira, analisa o associativismo em Salvador. Esse associativismo é uma forma de discutir solidariedade, democracia e justiça social no Brasil, principalmente na Bahia. A autora mostra que em 1930, no Brasil, havia uma legislação trabalhista, que privilegiou o trabalhador urbano em detrimento do trabalhador rural. Houve também, a política praticada pelo Sistema Financeiro de Habitação (SFH), que atendeu interesses de empresários privados. Aconteceram, em 1970, movimentos sociais urbanos, como o Trabalho Conjunto, que atuava em defesa dos moradores de bairros da cidade.

O quinto capítulo, “O racismo, a desigualdade e a exclusão: O caso do Brasil”, de Mônica Velasco Molina, discute como o conceito de raça tem mudado e como tal noção teve impacto dentro das elites brasileiras. Falava-se em diferenças na sociedade e estas eram baseadas por características físicas, como a cor da pele. No Brasil houve ações para branquear a sociedade, feita pela elite política-intelectual. Os projetos de imigração discutidos no Brasil se basearam nas teorias raciais, que contava que os negros não tinham a mesma capacidade que os brancos. Aparecem, então, com o racismo, noções de discriminação e segregação racial, situação evidente com os afro-brasileiros.

O sexto capítulo, “Da agenda de outubro ao Tipnis: os pontos de ruptura entre as organizações sociais e o governo do MAS”, de Paola Martínez, apresenta dois pontos de ruptura, um sobre o governo de Evo Morales e o gasolinazoe a construção da rodovia que atravessa o Território Indígena. Sobre o gasolinazo, que é ao aumento da gasolina, foi o início de uma relação tensa entre o governo de Evo Morales. Afastaram-se organizações e sindicatos ao governo, já que as primeiras acusavam o governo de dar continuidade ao modelo neoliberal e de não escutar o povo. Em relação à construção de uma rodovia, a VillaTunari-San Ignacio de Moxos, que atravessaria o território Indígena, a mesma causou uma reação aos povos indígenas que defendiam essa área protegida. Os indígenas, baseando-se no Decreto Supremo n. 22610 – que reconhece essa zona como território indígena – não tiveram o seu pedido atendido pelo governo. Estes fizeram uma marcha para mostrarem a insatisfação, sendo barrada pelos simpatizantes do MAS. As mobilizações na contramão do gasolinazoe da construção da rodovia no Tipnis foram acontecendo e confirmando que o rumo político na Bolívia seguiria se definindo nas ruas.

No último capítulo, “Autonomia: a resistência indígena à colonialidade do poder”,Diego Zendejas mostra que a colonialidade do poder implica que a dominação social, cultural, política e econômica no capitalismo se realiza pela subsunção formal de todas as formas de relações capitalistas de produção e com base no critério de diferenciação racial, e que há uma autonomia que implica aos povos indígenas poderem decidir sobre a política, sendo esta praticada de modo contraposta às formas do capitalismo.

[1]Mestranda em Educação na Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ).

[Resenha a:] SAAD, Alfredo. O valor de Marx. Campinas: Unicamp, 2011.


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Saad Filho, Alfredo. O Valor de Marx: Economia política para o capitalismo contemporâneo. Campinas, SP: Unicamp, 2011.

Por Roberto Resende Simiqueli

O valor de Marx, de Alfredo Saad Filho, se apresenta como mais uma opção na vasta lista de introduções à crítica da economia política realizada por Karl Marx e aos debates em torno de suas teses. Fosse o livro de Saad somente uma nova tentativa de apresentação do autor, ele já teria que disputar espaço com tantos outros readersde peso, ferramenta necessária à leitura e compreensão dos argumentos do filósofo alemão, principalmente (mas não apenas) por estudantes de graduação e pós-graduação engalfinhados com as particularidades da teoria do valor ou do movimento ampliado da acumulação de capital. No entanto, a proposta desse breve trabalho é não só proporcionar ao leitor uma breve introdução aos termos fundamentais da economia política marxista, como aproximá-lo de algumas disputas teóricas decorrentes dessas formulações e da compreensão contemporânea sobre o autor e sua obra.

O primeiro dado relevante sobre O valor de Marxé sua concentração sobre as principais categorias econômicas da contribuição marxiana. Ainda que Saad adote uma postura arejada frente ao universo categorial marxista e mantenha abertas frentes oportunas de diálogo com debates sociológicos, políticos ou filosóficos sobre o autor, seu texto se destina de imediato à formação de economistas interessados nas problemáticas da economia política clássica e à atualização de pesquisadores envolvidos com esses debates. Assim, seu tratamento da obra econômica de Marx é estruturado em torno dos temas usuais: as Interpretações da Teoria Marxista do Valor ocupam o segundo capítulo, seguidas de considerações sobre Valor e Capital (cap. 3), Salários e Exploração (cap. 4), Valores, Preços e Exploração (cap. 5), A Composição do Capital (cap. 6), enquanto os espinhosos temas da teoria da transformação e dos movimentos dos capitais bancário, financeiro e fictício são objeto dos dois capítulos finais: A Transformação dos Valores em Preços (cap. 7) e Moeda, crédito e inflação (cap. 8). Se nos limitássemos somente à escolha das questões referenciadas por Saad, pouca diferença restaria entre seu livro e o material comumente empregado como referência complementar nos cursos de Economia Política ou História do Pensamento Econômico. Mas a apresentação desses temas e seu encaminhamento fazem do trabalho uma peça singular, nesse campo, e mais do que justificam uma leitura atenta.

Saad, apesar do referencial claramente econômico, deixa clara sua simpatia pela perspectiva relacionista na compreensão do valor e das leis de acumulação, compreendendo o capital e sua valorização como uma relação social. Isso justifica o encaminhamento dado pelo autor às considerações em torno da exploração da força de trabalho, seu papel na ampliação da dinâmica de valorização do capital e a importância fulcral da expropriação capitalista na estruturação desse modo de produção. Assim, o autor demarca de forma hábil sua diferença frente a outras matrizes de interpretação d’O capital, pautadas muitas vezes pelo eclipsar das relações sociais que dão forma ao modo de produção capitalista e pela ênfase quase que exclusiva no primoroso tratamento dado por Marx à dinâmica financeira (e às possibilidades de resgate desse tratamento para a compreensão da contemporaneidade).

Um parágrafo síntese de sua posição pode ser encontrado na conclusão do capítulo dedicado às noções de valor e capital:

“A teoria do valor de Marx parte do princípio ontológico de que as sociedades humanas se reproduzem, e se modificam, através do trabalho. O trabalho e seus produtos são divididos socialmente e, no capitalismo, esses processos e seus resultados são determinados pelo monopólio dos meios de produção pela classe capitalista, a mercantilização da força de trabalho e a forma mercadoria dos produtos do trabalho. Nessas circunstâncias, os produtos do trabalho geralmente têm a forma valor, e a exploração econômica se baseia na extração de mais-valia. Em outras palavras, a relação capital inclui o monopólio dos meios de produção, o trabalho assalariado e a contínua reprodução de duas grandes classes sociais mutuamente condicionantes, os capitalistas e os trabalhadores” (p. 72).

Os ecos desse enquadramento do capital enquanto relação são sentidos de forma decisiva nos capítulos finais do livro, em que questões tidas como particularmente complexas (capital fictício, transformação de valores em preços, concorrência e queda tendencial da taxa de lucro) são explanadas com singular simplicidade, e com vistas à manutenção do eixo argumentativo central. Ao discorrer sobre a instabilidade inerente ao capitalismo Saad pontua:

“As economias capitalistas são instáveis devido aos conflitos entre as forças de extração, realização e acumulação de mais-valia em condições competitivas. Essa instabilidade é estrutural, e nem mesmo as melhores políticas econômicas podem evitá-la por completo. A concorrência obriga cada capital a encontrar formas de aumentar a produtividade do trabalho. Isso geralmente envolve mudanças técnicas que aumentam o grau de mecanização, a integração entre os processos de trabalho dentro de cada firma, e através de firmas diferentes, e a escala potencial da produção. Portanto, a concorrência socializa a produção capitalista” (p. 174).

A importância dessa abordagem, principalmente no momento em que os trabalhadores brasileiros são tomados de assalto pelas propostas das reformas trabalhista e previdenciária, não pode ser medida. Saad efetivamente desloca a ênfase, mantida por muitas análises do econômico em Marx, da movimentação autônoma do capital para a sua essencialidade, sua conformação ontológica. O capital não é explicado como valor que se valoriza no sentido da naturalização do movimento de sua valorização, mas como relação social de exploração e reprodução da exploração do trabalho.

Por sutil que a diferença possa parecer, suas implicações são vastas. Por meio desse enfoque, Saad consegue articular os termos fundadores da crítica à economia política a seus desdobramentos mais desafiadores, sem perder o fôlego ou a fluidez da narrativa. Para além do apurado trabalho conceitual, o livro é muito bem escrito e sua leitura é bastante agradável. Assim, O valor de Marxpossibilita uma apresentação convidativa aos grandes temas explorados n’O capital, ao mesmo tempo em que defende posições teóricas ousadas sobre a interpretação da obra econômica de Marx e arma o leitor de referências valiosas para a continuidade do estudo.

Lido paralelamente a outras introduções consagradas a O capital, O valor de Marxmerece certo destaque. A apresentação direta e clara faz com que seja um livro vastamente mais aproximável do que os dois volumes de David Harvey em Para entender O capital(Harvey, 2013). Por mais hábil que Harvey seja em expor suas ideias e promover uma reavaliação do arrazoado marxista no trato da economia contemporânea, Saad explora temas fulcrais desse mesmo arrazoado de forma bem mais objetiva. Seus objetivos e resultados são distintos, por outro lado, daqueles levantados por algo como o clássico Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx(Rosdolsky, 2001), de Roman Rosdolsky, mas aqui Saad cumpre a proposta declarada no subtítulo: é difícil encontrar um readerde Marx tão engajado com a compreensão do capitalismo contemporâneo. Em extensão e profundidade, o livro se aproxima de referências estabelecidas no meio acadêmico em economia, como Smith, Ricardo e Marx(Napoleoni, 1978), de Claudio Napoleoni, e Valor e capitalismo(Belluzzo, 1980), de Luís Gonzaga Belluzzo. No entanto, não só Saad atualiza as problemáticas fundamentais da economia política marxista frente aos debates atuais, como possibilita o acompanhamento desses debates de forma mais clara. E defende uma posição mais alinhada com os desenvolvimentos recentes na interpretação do legado intelectual marxiano.

Outros dois trabalhos que julgamos “complementares” a O Valor de Marxe cuja leitura parelha recomendamos são o primoroso Marx: notas sobre a teoria do capital, de Maurício Chalfin Coutinho, que apresenta uma cuidadosa leitura estrutural de passagens fundadoras das categorias econômicas de Marx, e O negativo do Capital(Grespan, 1996), de Jorge Grespan, com intuito e problemas próximos aos do trabalho de Saad, em alguns momentos. Pensando especificamente na tarefa gratificante porém desafiadora de apresentar as densas categorias d’O Capital a alunos de graduação, O valor de Marxse revela (com o perdão do trocadilho infame) uma ferramenta valiosa.

Referências bibliográficas

Belluzzo, Luiz Gonzaga de Mello. Valor e capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1980.

Coutinho, Maurício Chalfin. Marx: notas sobre a teoria do capital. São Paulo: Hucitec, 1997.

Grespan, Jorge. O negativo do capital: o conceito de crise na crítica de Marx à economia política. São Paulo: Hucitec, 1996.

Harvey, David. Os limites do capital. São Paulo: Editora Boitempo, 2013.

_____. Para entender O capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

Lévy, Dominique et alii. Uma nova fase do capitalismo?São Paulo: Xamã, 2003.

Marx, Karl. O capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. 3 v.

Napoleoni, Claudio. O valor na ciência econômica. Lisboa: Presença, 1977.

_____. Smith, Ricardo, Marx. Rio de Janeiro, Graal, 1978.

Rosdolsky, Roman. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Eduerj, Contraponto, 2001.