Apresentação

Apresentação

Na presente edição, a revista Outubro traduz pela primeira vez para o português o importante  “As duas almas do socialismo”, escrito em 1967 por Hal Draper, intelectual e ativista trotskista dos Estados Unidos. A tradução é também uma homenagem a Draper, socialista radicalmente democrático cuja preocupação com a burocratização das esquerdas e a necessidade de pensar o socialismo “desde baixo” permanece profundamente atual.

O presente número traz, ainda, uma instigante contribuição de Giancarlo Schirru para pensar as fontes e o lugar estratégico do conceito de nacional-popular nos escritos carcerários de Antonio Gramsci. Com isso, a Outubro segue cumprindo sua agenda de traduções de resultados da pesquisa de ponta sobre o pensamento gramsciano conduzidas atualmente ao redor do mundo e apoiadas na metodologia filológica.

O artigo de Geoffrey Pleyers, por sua vez, apresenta para o público brasileiro a perspectiva sociológica “libertadora” de François Houtart, pouco conhecida por aqui. Para fechar o bloco de traduções, a revista publica o esclarecedor artigo de Tithi Bhattacharya sobre as aproximações entre feminismo e marxismo no interior de uma teoria da reprodução social.

O pensamento de Marx é também objeto do artigo de Flávio Miranda que investiga a noção desenvolvimento desigual na obra O Capital. Noção particularmente importante para quem, da periferia do capitalismo, pretende interpretar sua própria condição. Este pequeno bloco de investigações no marxismo “clássico” se completa com uma contribuição de Wallace Ribeiro a respeito das pesquisas de Engels sobre as contradições da formação dos aglomerados urbanos no capitalismo

O conflito cidade-campo é também o objeto do artigo de Lucas Bezerra que discute o pensamento do sociólogo brasileiro Octavio Ianni a respeito da formação do proletariado rural no Brasil. Esta edição se encerra com instigante artigo dos colegas Luis Leiria e Cristina Portella sobre o papel do regime cubano e soviético em 27 de Maio de 1977, quando Angola independente passou por um processo de golpe repressivo do governo angolano do MPLA.

Não deixe de ler as resenhas deste número.

Boa leitura!

Secretaria de Redação

Revista Outubro

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Sumário 

Artigos

As duas almas do socialismo

Hal Draper (in memoriam)

Nacional-popular

Giancarlo Schirru

Università di Napoli “L’Orientale” (Itália)

A sociologia da libertação de François Houtart

Geoffrey Pleyers

Université Catholique de Louvain (Bélgica)

O que é a teoria da reprodução social?

Tithi Bhattacharya

Purdue University (Estados Unidos)

A revolução a favor de ‘O Capital’: o desenvolvimento desigual em Marx

Flávio Miranda

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Brasil)

 

As grandes cidades e suas contradições internas: a sociologia urbana de Friedrich Engels

Wallace Cabral  Ribeiro

Universidade Federal Fluminense (Brasil)

Octavio Ianni e o proletariado rural no Brasil

Lucas Bezerra

Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil)

Cuba e União Soviética em Angola: 1977

Cristina Portella

Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil)

Luis Leiria

Jornalista do Portal Esquerda.Net (Portugal)

Resenhas 

Arruzza, Cinzia; Bhattacharya, Tithi; Fraser, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.

Por Beatriz Sanchez

Anderson, Perry. Duas revoluções: Rússia e China. São Paulo: Boitempo, 2019.

Por Fernando Pureza

 

Karepovs, Dainis. Pas de Politique Mariô! Mario Pedrosa e a Política. Cotia/SãoPaulo: Ateliê Editorial/Fundação Perseu Abramo, 2017.

Por Luccas Maldonado

As duas almas do socialismo


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As duas almas do socialismo
Resumo: neste ensaio dos anos 1960, Hal Draper apresenta uma interpretação histórica do significado do socialismo democrático, “de baixo”. Para esta finalidade, seleciona algumas das mais importantes correntes socialistas do século XIX e XX para exemplificar os impasses da relação entre socialismo e democracia, especialmente o bloqueio desta pela emergência do socialismo “de cima”, tanto em sua versão elitista e reformista, como na burocrática.
Palavras-chave: 1. Socialismo; 2. Socialdemocracia; 3. Stalinismo

The two souls of Socialism
Abstract: in this 1960s essay, Hal Draper presents a historical interpretation of the meaning of democratic socialism “from below”. To this end, it selects some of the most important socialist currents of the nineteenth and twentieth centuries to exemplify the impasses of the relationship between socialism and democracy, especially its blocking by the emergence of socialism “from above” as much in its elitist and reformist version, as in the bureaucratic version.

Keywords: 1. Socialism; 2. Social-democracy; 3. Stalinism

Nacional-popular


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Nacional-popular
Resumo: o artigo trata da evolução do conceito de nacional-popular nos Quaderni del carcere de Antonio Gramsci. Argumenta-se que foi por meio dessa obra que o conceito entrou no vocabulário político italiano, consolidando-se. O adjetivo nacional-popular foi precedido na redação dos Quaderni pelo substantivo composto povo-nação, revelando uma marcada inspiração na obra de Vincenzo Gioberti. Interpretes insistiram que o conceito remetia a cultura do populismo russo, divergindo, entretanto a respeito do período de desenvolvimento dessa cultura que teria sido mais marcante para o conceito. O artigo considera que essa era uma pista falsa e desenvolve uma hipótese alternativa: a de que o conceito de nacional-popular teve como inspiração principal os debates realizados na União Soviética a respeito da questão nacional, o quais atingiram seu ápice em 1923.
Palavras-chaves: 1. Povo; 2. Nacional-popular; 3. Antonio Gramsci.

National-popular
Abstract: The article deals with the evolution of the concept of national-popular in Antonio Gramsci’s Quaderni del carcere. It is argued that it was through this work that the concept entered the Italian political vocabulary, consolidating itself. The national-popular adjective was preceded in the Quaderni’s wording by the noun compound people-nation, revealing a marked inspiration in the work of Vincenzo Gioberti. Interpreters insisted that the concept referred to the culture of Russian populism, but differed about the period of development of that culture that would have been most striking to the concept. The article considers this to be a false clue and develops an alternative hypothesis: that the concept of national-popular was primarily inspired by the debates held in the Soviet Union on the national question, which peaked in 1923.
Keywords: 1. People; 2. National-popular; 3. Antonio Gramsci.

A sociologia da libertação de François Houtart


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François Houtart: uma sociologia da libertação

Resumo: Para François Houtart, o compromisso religioso e o compromisso social não podiam ser dissociados, nem a análise da realidade social e das lutas sociais para transformá-la. Ele era ao mesmo tempo um teólogo, sociólogo e ativista global. Este artigo analisa os principais eixos das contribuições de François Houtart às ciências sociais contemporâneas a partir das convicções que orientaram seu compromisso como sociólogo junto aos atores sociais. A primeira parte dá uma breve visão geral de sua carreira e sua contribuição para a teologia da libertação. A segunda enfatiza o papel precursor de François Houtart nas ciências sociais em particular no diálogo com as epistemologias do Sul que nos convida a analisar o mundo, os mecanismos de opressão e os projetos de emancipação a partir das perspectivas dos atores sociais e dos oprimidos do Sul do planeta seguindo a abordagem de “outra globalização”.

Palavras-chave: 1. Sociologia da religião; 2. Teologia da libertação; 3. Epistemologias do Sul

François Houtart: A sociology of liberation 

Abstract: To François Houtart, religious and social commitment could not be dissociated, nor the analysis of social reality and social struggles to transform it. He was at the same time a theologian, sociologist and global activist. This article analyzes the main axes of François Houtart ‘s contributions to the contemporary social sciences based on the convictions that guided his commitment as a sociologist to the social actors. The first part gives a brief overview of his career and his contribution to liberation theology. The second emphasizes the pioneering role of François Houtart in the social sciences in particular in the dialogue with the epistemologies of the South, which invites us to analyze the world, the mechanisms of oppression and the projects of emancipation from the perspectives of the social and oppressed actors of the South of the planet following the “other globalization” approach.

Keywords: 1. Sociology of religion; 2. Liberation Theology; 3. Southern epistemologies

O que é a teoria da reprodução social?


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O que é a teoria da reprodução social?

Resumo: O presente texto é um ensaio da historiadora Tithi Bhattacharya explicando de forma sintética as ideias de intelectuais marxistas contemporâneas que conceberam a teoria da reprodução social. A partir dessa perspectiva, a autora destaca como as lutas da esfera da produção se combinam às lutas relacionadas a esfera da reprodução, o que fortalece perspectivas marxistas em termos de classe e gênero.

Palavras-chave: 1. Reprodução social; 2. Marxismo; 3. Gênero

What is Social Reproduction theory? 

Abstract: The following paper is an essay from the historian Tithi Bhattacharya explaining, in short, the ideas of contemporary Marxist intellectuals who conceived the theory of social reproduction. From this point of view, the author emphasizes how the struggles in the sphere of production are combined to the struggles related to the sphere of reproduction, which strengthen Marxists perspectives in terms of class and gender.

Keywords: 1. Social Reproduction; 2. Marxism; 3. Gender

A revolução a favor de ‘O Capital’: sobre desenvolvimento desigual em Marx


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A revolução a favor de “O Capital”: o desenvolvimento desigual em Marx

Resumo: Este artigo toma a famosa leitura que Antonio Gramsci fez de O capital, quando da eclosão da Revolução Russa, como ponto de partida para discutir desenvolvimento desigual em Marx. Oferecemos uma interpretação sobre indicações metodológicas importantes contidas em O capital para defender que as tendências descobertas por Marx na obra não devem ser lidas à moda determinista. A interpretação aqui defendida se apoia em uma releitura da formação da concepção marxiana para o desenvolvimento histórico, que tenta captar os traços fundamentais de sua evolução desde os Manuscritos de 1844 até A ideologia alemã e Miséria da filosofia, para argumentar que tal questão foi sempre considerada pelo referido autor como um processo que se desenrola de modo necessariamente desigual.
Palavras-chave: 1. Karl Marx; 2. Desenvolvimento desigual; 3. Teoria da história

The Revolution for “The Capital”: Uneven Development in Marx

Abstract: This article takes the famous reading that Antonio Gramsci made of Capital, at the outbreak of the Russian Revolution, as a starting point to discuss uneven development from Marx. We offer an interpretation on important methodological indications contained in Capital to argue that the tendencies discovered by Marx in the work should not be read in the deterministic fashion as unambiguous prescriptions of certain historical results. The interpretation defended here is based on a re-reading of the formation of the Marxian
conception for historical development, which attempts to capture the fundamental traces of its evolution from the Manuscripts of 1844 to The German Ideology and Misery of Philosophy, to argue that this question was always considered by the said author as a process that takes place in a necessarily unequal way.
Keywords: 1. Karl Marx; 2. Uneven Development; 3. Theory of History

As grandes cidades e suas contradições internas: a sociologia urbana de Friedrich Engels


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As grandes cidades e suas contradições: a sociologia urbana de Friedrich Engels

Resumo: Friedrich Engels, em sua obra A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1844/45), verificou uma série de mazelas que constituem a vida das grandes cidades, como o adensamento populacional, desigualdades sociais, segregação espacial, déficit habitacional, miséria, violência, individualismo, epidemias, poluição, desemprego etc. Ao analisar todos esses fenômenos, sua obra se orientou por múltiplos campos de conhecimento, como história, antropologia, ecologia, política, economia, epidemiologia, entre outras. Este artigo tem como objetivo identificar e analisar as contribuições de Engels para o campo da sociologia urbana, na clássica obra acima mencionada.

Palavras-chave: 1. Sociologia urbana; 2. Grandes cidades; 3. Contradições sociais

The Great Cities and their internal contradictions: The Urban Sociology of Friedrich Engels

Abstract: Friedrich Engels, in his work The Situation of the Working Class in England (1844- 1845), verified a series of problems that constitute the life of big cities, such as population density, social inequalities, spatial segregation, housing deficit, poverty, violence, individualism, epidemics, pollution, unemployment, etc. In analysing all these phenomena, his work was guided by multiple fields of knowledge, such as history, anthropology, ecology, politics, economics, epidemiology and others. This article aims to identify Engels’ contributions to the field of urban sociology in the classic work above mentioned.
Keywords: 1. Urban Sociology; 2. Big Cities; 3. Social Contradictions

Octavio Ianni e o proletariado rural no Brasil


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Octavio Ianni e o proletariado rural no Brasil
Resumo: Os processos de proletarização do trabalhador rural constituem parte importante dos debates da tradição marxista relacionados ao desenvolvimento do capitalismo na agricultura. Este artigo, restrito à problematização da realidade brasileira, recupera a concepção de proletariado rural no Brasil presente na formulação de Octavio Ianni no início da década de 1970. Ao apresentar os fundamentos históricos e político-econômicos da tendência à proletarização do trabalhador rural brasileiro, a contribuição teórica do sociólogo possui uma importância não somente histórica, mas com elementos atuais para interpretar a composição
heterogênea da classe trabalhadora rural no Brasil.

Palavras-chave: 1. Desenvolvimento do capitalismo na agricultura; 2. Proletariado rural; 3. Pensamento social brasileiro

Octavio Ianni and the rural proletariat in Brazil
Abstract: The processes of proletarianization of the rural worker constitute an important step of the debates of the Marxist tradition related to the development of capitalism in agriculture. This article, restricted to the problematization of the Brazilian reality, recovers the conception of rural proletariat in Brazil present in the Octavio Ianni formulation in the early 1970s. In presenting the historical and political-economic foundations of the tendency towards the proletarianization of the Brazilian rural worker, Ianni’s theoretical contribution has an importance not only historical, but with current elements to identify the heterogeneous composition of the Brazil’s rural working class.
Keywords: 1. Development of capitalism in agriculture; 2. Rural proletariat; 3. Brazilian social thought

Cuba e União Soviética em Angola: 1977


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Cuba e União Soviética em Angola: 1977
Resumo: No dia 27 de maio de 1977, em Angola, o governo de Agostinho Neto desencadeou um processo repressivo que ocasionou a morte de milhares de aderentes do MPLA. O objetivo, de acordo com a justificação oficial, seria impedir um golpe de Estado liderado pelo ex-ministro da Administração Interna Nito Alves. Nessa altura, estavam presentes em Angola tropas cubanas e oficiais da URSS. A historiografia oferece várias interpretações para este episódio, marcante na história do país recém-independente. Este artigo discute os fatos, as causas e as consequências do “27 de Maio”, à luz de documentos cubanos recentemente desclassificados, reunidos por Piero Gleijeses, professor de política externa norte-americana na School of Advanced International Studies da Universidade Johns Hopkins, no portal do Wilson Center Digital Archive International – History Declassified.

Palavras-chave: 1. Angola, 2. MPLA, 3. 27 de Maio 1977
Cuba and Soviet Union in Angola: 1977
Abstract: On May 27, 1977, in Angola, the government of Agostinho Neto triggered a repressive process that led to the deaths of thousands of MPLA members. The goal, according to official justification, would be to prevent a coup led by former Home Minister Nito Alves. At that time, Cuban troops and USSR officers were present in Angola. Historiography offers several interpretations for this episode, striking in the history of the newly independent country. This article discusses the facts, causes, and consequences of “May 27,” in light of recently declassified Cuban documents, gathered by Piero Gleijeses, a professor of US foreign policy at Johns Hopkins University School of Advanced International Studies, Wilson Center Digital Archive International Portal – History Declassified
Keywords: 1. Angola, 2. MPLA, 3. May 27th 1977

[Resenha a:] Arruzza, Cinzia; Bhattacharya, Tithi; Fraser, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.


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ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto.São Paulo: Boitempo, 2019.

Beatriz Rodrigues Sanchez [1]

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O livro “Feminismo para os 99%” de autoria de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, é inspirado no que as autoras chamam de “nova onda de ativismo combativo” que tem se espalhado ao redor do mundo, em vários continentes. Em um contexto de ascensão conservadora e autoritária em diversos países, os movimentos feministas têm aparecido como uma das principais forças capazes de se opor ao fechamento das democracias. Diante desse processo, reagir aos retrocessos não é suficiente. É preciso encontrar as possibilidades emancipatórias de superação do capitalismo a partir da proposição de alternativas radicais. É essa tarefa que o manifesto “Feminismo para os 99%” publicado nesse ano se propõe a cumprir.

Essa resenha será dividida em duas partes. Na primeira, resgataremos o pensamento de ativistas feministas que vieram antes de nós e que compartilham os pressupostos contidos no manifesto. Entre elas, estão as mulheres que criaram o Coletivo do Rio Combahee, nos EUA, e Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus, escritoras brasileiras. Na segunda parte, o manifesto será analisado à luz da obra da própria Nancy Fraser, uma das autoras do manifesto.

Na dedicatória do manifesto, as autoras escrevem: “Para o coletivo Combahee River, que anteviu o percurso desde cedo, e para as grevistas feministas polonesas e argentinas, que estão abrindo novos caminhos hoje”. Dessa maneira, as autoras articulam as lutas do passado e do presente, fazendo com que os caminhos desbravados por nossas antecessoras não sejam esquecidos. Nesse mesmo sentido é que resgataremos o pensamento de algumas teóricas, escritora e ativistas que antecederam o manifesto.

No ano de 1977 foi publicado nos EUA o texto de autoria do coletivo Combahee River intitulado “The Combahee River Collective Statement”. O coletivo Combahee River foi uma organização feminista composta por intelectuais e ativistas como Audre Lorde, que atuou em Boston entre os anos 1974 e 1980. Esse texto é considerado uma espécie de manifesto do movimento feminista negro nos EUA, pois influenciou os trabalhos posteriores de autoras que viriam a ser referências não somente para os movimentos feministas estadunidenses, mas também para feministas de outros países, como Angela Davis, bell hooks e diversas outras. Logo no início do texto, as ativistas do coletivo declaram que:

“A afirmação mais geral da nossa política no tempo presente seria a de que nós estamos ativamente comprometidas na luta contra as opressões racial, sexual, heterossexual e de classe, e vemos como nossa tarefa particular o desenvolvimento de uma análise e prática integradas baseadas no fato de que os principais sistemas de opressão são interligados. A síntese dessas opressões cria as circunstâncias das nossas vidas.” (Combahee River CollectiveStatement, 1977, tradução nossa)

É impressionante o fato de que esse texto tenha sido escrito no ano de 1977, muito antes de o conceito de interseccionalidade ter sido cunhado por Kimberlé Crenshaw (2002). O conceito de interseccionalidade tem sido utilizado contemporaneamente para expressar a ideia de que diversos eixos de opressão além do gênero marcam as experiências de vida das mulheres. No entanto, como é possível perceber por esse trecho, essa ideia já havia sido afirmada pelas feministas do Combahee River Collective na década de 1970. A articulação entre gênero, raça, classe e orientação sexual feita pelas autoras do Coletivo do Rio Combahee é totalmente coerente com as afirmações contidas no manifesto do Feminismo para os 99%.

No Brasil, teóricas e ativistas negras também foram precursoras ao afirmar a necessidade de articulação entre as dimensões de gênero, raça e classe. Ao mesmo tempo em que o coletivo Combahee River e, posteriormente, Angela Davis, bell hooks e outras teóricas feministas estadunidenses afirmavam a necessidade de incorporação da dominação de classe e de raça em um projeto político feminista radical, no Brasil, teóricas e escritoras como Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus caminhavam na mesma direção.

A trajetória de Lélia Gonzalez se confunde com a trajetória das primeiras organizações de mulheres negras brasileiras (RATTS e RIOS, 2010). Nascida no ano de 1935, em Belo Horizonte, filha de uma trabalhadora doméstica de ascendência indígena e de um trabalhador ferroviário negro, entrou na universidade em meados dos anos 1950, quando teve contato com o movimento negro. No ano de 1980, na reunião do Grupo de Trabalho “Temas e problemas da população negra no Brasil”, no IV Encontro Anual da ANPOCS, Lélia Gonzalez apresentou o texto intitulado “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Em um trecho do texto a autora afirma:

“O fato é que, enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar nossa reflexão, ao invés de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que nos eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais. Os textos só nos falavam da mulher negra numa perspectiva sócio-econômica que elucidava uma série de problemas propostos pelas relações raciais. Mas ficava (e ficará) sempre um resto que desafiava as explicações.” (Gonzalez, 1983, p. 225)

Nesse trecho, Lélia Gonzalez aponta para as especificidades das opressões vividas por mulheres negras e critica as ciências sociais brasileiras por, de maneira geral, incorporarem o racismo apenas a partir de uma perspectiva econômica, não levando em consideração outras dimensões dessa opressão. Além disso, a autora defende que a articulação entre as categorias de raça, classe, sexo e poder é necessária para que as estruturas de dominação da sociedade possam ser identificadas. Dessa forma, racismo, sexismo e classismo são para ela eixos estruturantes da dominação e sua imbricação faz com que as mulheres negras pobres ocupem uma posição desigual na estrutura social em relação às mulheres brancas e de classe média. Como consequência, para Lélia Gonzalez, nenhum movimento de mulheres pode ser considerado realmente feminista se não levar em consideração as especificidades vividas pelas mulheres negras. Essas afirmações também são totalmente convergentes com o manifesto Feminismo para os 99%.

Carolina Maria de Jesus, por sua vez, foi catadora de papel e viveu na favela do Canindé em São Paulo. Em seu livro “Quarto de despejo”, publicado pela primeira vez em agosto de 1960, a autora também articula, a partir de sua própria experiência, as opressões de gênero, classe e raça. A obra é uma reunião de cerca de vinte diários escritos por Carolina Maria de Jesus e editados pelo jornalista Audálio Dantas. Alguns trechos revelam a capacidade da autora em imbricar capitalismo, racismo e sexismo:

 “Passei no açougue para comprar meio quilo de carne para bife. Os preços era 24 e 28. Fiquei nervosa com a diferença dos preços. O açougueiro explicou-me que o filé é mais caro. Pensei na desventura da vaca, a escrava do homem. Que passa a existência no mato, se alimenta com vegetais, gosta de sal mas o homem não dá porque custa caro. Depois de morta é dividida. Tabelada e selecionada. E morre quando o homem quer. Em vida, dá dinheiro ao homem. E morta enriquece o homem. Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com essas desorganizações.” (Jesus, 2014, p. 70)

Talíria Petrone, atualmente deputada federal pelo PSOL, escreveu o prefácio à edição brasileira do manifesto Feminismo para os 99%. No texto, ela chama atenção para outro trecho da obra de Carolina Maria de Jesus que também impressiona por sua força e concretude:

“A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago. (….) Eu escrevia as peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me: É pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro minha pele negra e meu cabelo rústico. Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta” (Ibid., 2014, p. 44)

Esses dois trechos do diário de Carolina Maria de Jesus corroboram a tese defendida pelas autoras do Feminismo para os 99% de que o feminismo necessariamente deve ser anticapitalista e antirracista, em oposição às tendências contemporâneas do feminismo liberal, que separa a luta de classes da luta feminista.

Tendo como base esses pressupostos, partiremos para a análise do manifesto à luz da obra de Nancy Fraser, uma das principais teóricas da tradição da teoria crítica e uma das autoras do manifesto.

Em primeiro lugar, é possível afirmar que o manifesto representa uma evolução em relação a obras anteriores da autora, já que desenvolve de maneira mais complexa a noção de justiça social. Anteriormente, o conceito de justiça elaborado por Fraser incorporava as dimensões da redistribuição material e do reconhecimento cultural (FRASER, 2001). Mais recentemente, a dimensão da representação política também foi incorporada pela perspectiva da filósofa (FRASER, 2009).  Essa concepção de justiça foi formulada pela autora como uma crítica a leituras marxistas mais tradicionais que, de modo puramente economicista, olhavam apenas para a opressão capitalista como fonte de injustiças. Desse ponto de vista, a crítica feita por Fraser é semelhante à crítica formulada por Lélia Gonzalez apresentada anteriormente.

No manifesto do Feminismo para os 99%, uma formulação ainda mais complexa de justiça é apresentada. De acordo com as autoras, a crise contemporânea do capitalismo articula as dimensões da economia, da política, da cultura e do meio ambiente. Como consequência, a luta feminista deve ser necessariamente internacionalista, ecossocialista e antirracista. Isso significa que a noção de justiça que antes era tridimensional (redistribuição, reconhecimento e representação) passa a ser multidimensional e aberta para novas dimensões.

Outros dois elementos presentes no manifesto são desenvolvimentos de textos mais recentes de Fraser: a suposta oposição entre o reacionarismo conservador e o neoliberalismo progressista e a dicotomia artificial entre políticas identitárias e luta de classes.

No manifesto, as autoras defendem a necessidade de criação de um novo horizonte utópico que vá além da oposição entre reacionarismo conservador e neoliberalismo progressista. As consequências negativas que o neoliberalismo progressista traz para uma sociedade verdadeiramente justa já haviam sido abordadas por Fraser em outros textos (Fraser, 2018). As reivindicações feitas por parte dos movimentos feministas para que as mulheres sejam líderes em grandes empresas seriam um exemplo do que Fraser chama de neoliberalismo progressista, uma vez que a quebra do teto de vidro não questiona a estrutura do capitalismo e perpetua a exploração de mulheres mais pobres, especialmente as mulheres não brancas. As greves de mulheres ao redor do mundo, especialmente na Polônia e na Argentina, animaram essa reflexão contida no manifesto ao comprovar que uma alternativa socialista ainda pode estar no horizonte utópico de emancipação dos movimentos feministas.

Um outro ponto tratado pelo manifesto diz respeito ao combate à dicotomia entre políticas identitárias e luta de classes. O feminismo liberal, ao separar essas duas noções, acaba se tornando mais uma vez convergente com o capitalismo e, consequentemente, com a opressão das mulheres, especialmente as mulheres não-brancas. As autoras defendem que as políticas identitárias e a luta de classes estão imbricadas, o que acaba borrando as fronteiras entre público e privado. Nas palavras das próprias autoras:

 “A nova onda feminista tem potencial para superar a oposição obstinada e dissociadora entre “política identitária e política de classe”. Desvelando a unidade entre “local de trabalho” e “vida privada”, essa onda se recusa a limitar suas lutas a um desses espaços”. (Arruzza et al., 2019, p. 34)

Esses aspectos demonstram o caráter radical do manifesto, que pretende nada mais nada menos do que ser uma atualização do Manifesto Comunista de Marx e Engels. Ao longo de todo o texto, assim como no manifesto marxista, teoria e prática se juntam para apresentar alternativas ao capitalismo, nesse caso o capitalismo neoliberal, com muita beleza e poesia. Dois trechos do manifesto são especialmente bonitos. Encerro essa resenha com eles:

“Em resumo, a nova onda de ativismo feminista combativo está redescobrindo a ideia do impossível, reivindicando tanto pão como rosas: o pão que décadas de neoliberalismo tiraram de nossas mesas, mas também a beleza que nutre nosso espírito por meio da euforia da rebelião.” (ARRUZZA et al, 2019, p.36)

“O feminismo para os 99% é um feminismo anticapitalista inquieto – que não pode nunca se satisfazer com equivalência, até que tenhamos igualdade; nunca satisfeito com direitos legais, até que tenhamos justiça; e nunca satisfeito com a democracia, até que a liberdade individual seja ajustada na base da liberdade para todas as pessoas”.  (Ibid., 2019, p. 123)

Referências bibliográficas

Arruzza, C.; Bhattacharya, T.; Fraser, N.Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.

Combahee River Collective. The Combahee River Collective statement. [1978]. In:Smith, B. (org.). Home girls: a black feminist anthology. New Jersey,Rutgers University Press, 2008.

Crenshaw,K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, n. 10, v. 1, p. 171-188, 2002.

Fraser, N.Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: Souza, J. (org.)Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UnB, 2001.

_____. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado.Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 77, 2009.

_____. Do neoliberalismo progressista a Trump – e além. Revista Política & Sociedade, v.17, n. 40, 2018.

Gonzalez, L.Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Silva, L. A.et al. Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Ciências Sociais Hoje, Brasília: ANPOCS, 1983.

Jesus, C. M.Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.

Ratts, A.; Rios, F. Lélia Gonzalez. São Paulo: Summus/Selo Negro, 2010.

Nota

[1]Doutoranda e mestra em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. É formada em Relações Internacionais pela mesma Universidade. É pesquisadora do Grupo de Estudos de Gênero e Política da Universidade de São Paulo.

[Resenha a:] Anderson, Perry. Duas revoluções: Rússia e China. São Paulo: Boitempo, 2019


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ANDERSON, Perry. Duas revoluções: Rússia e China. São Paulo: Boitempo, 2019.

Por Fernando Cauduro Pureza

ACESSE AQUI O PDFNo momento em que escrevo esta resenha, posso afirmar que temos uma carência, no mercado editorial brasileiro, de livros acerca da história e da historiografia chinesa. Mesmo alguns dos sinólogos mais famosos do mundo atual possuem poucas peças traduzidas que chegaram até o Brasil. Alguns manuais importantes, como o livro de Jonathan Spence, Em busca da China Moderna, já não é reeditado há alguns anos. O compêndio China, uma nova História, de John King Fairbank e Merle Goldman, também segue esgotado e de difícil acesso. O livro do historiador sino-americano, Immanuel Hsu, The rise of Modern China, sequer adentrou no mercado editorial brasileiro e mesmo sinólogos mais contemporâneos, como Elizabeth J. Perry ou Merle Goldman, são praticamente desconhecidos em nossas universidades. No próprio campo das esquerdas, o famoso artigo de Isaac Deutscher, “Maoism: Its origins and outlooks”, publicado em 1964, nunca foi traduzido para o português. Essa lacuna, por si só, já torna o livro de Perry Anderson, Duas revoluções: Rússia e China, um verdadeiro marco para futuras reflexões sobre a China, ampliando o leque de leituras para historiadores e para a própria esquerda refletir sobre o passado recente chinês.

Apesar do título fazer referência a Rússia e China, a edição do livro não deve deixar dúvidas: o foco central de análise é a experiência do socialismo chinês contemporâneo. O prefácio de Luiz Gonzaga Belluzzo, a réplica de Wang Chaohua e o posfácio de Rosana Pinehiro-Machado são reflexões sobre a questão chinesa, no qual a experiência soviética e o seu colapso são dados laterais para considerações mais profundas. Dessa forma, se o leitor espera uma reflexão comparativa em todos os textos da edição, ele irá encontrá-la apenas no texto de Perry Anderson, que dá título ao livro. Para fins dessa resenha, pretendo deixar de lado os textos de Luiz Gonzaga Belluzzo e Rosana Pinheiro-Machado. Não obstante sejam interessantíssimos, eles abrem e fecham a discussão apontando para possibilidades analíticas oriundas tanto do ensaio de Anderson como da resposta de Chaohua. Permito-me aqui, contudo, concentrar-me nesses dois autores e problematizar inicialmente a comparação que Perry Anderson sugere e dá título ao livro.

Talvez se possa questionar, de fato, até que ponto essa reflexão é encontrada. Para Anderson, a questão de fundo é o contraste entre o desfecho da Revolução Chinesa e o desfecho da Revolução Russa. E, se por um lado, a história da primeira segue seu curso ainda nos dias de hoje, a segunda, com a dissolução da União Soviética, tornou-se a história de uma debacle. E para poder pensar sobre o que ele chama de “impressionante contraste” entre ambas, Anderson subdivide a sua reflexão em quatro pontos: as diferenças entre os agentes políticos das duas revoluções, as condições objetivas que os partidos encararam no curso das reformas, as consequências concretas das políticas que adotaram e, por fim, quais legados de longa duração que eventualmente condicionaram os desfechos dos processos revolucionários. De cada subdivisão, Anderson constrói um subcapítulo e procura trabalhar com uma perspectiva comparada.

Seria enfadonho reproduzir ipsis litterisos argumentos do autor, mas em linhas gerais pode se apontar algumas questões importantes para uma reflexão comparada dos processos revolucionários. Um exemplo disso é que Anderson afirma que, enquanto o PCCh teria maior penetração social na comunidade camponesa chinesa durante os anos de guerra civil, a guerra civil russa viu uma consolidação mais violenta do partido bolchevique. A partir dessa consideração, se subentende uma lógica que, enquanto no caso soviético a revolução precedeu a guerra civil, no caso chinês, a guerra civil precedeu a revolução. O resultado é que no processo revolucionário chinês haveria uma penetração e uma coesão muito mais profunda do que o caso russo – e nesse aspecto, o discurso da identidade nacional é um fator crucial, ainda mais considerando a pluralidade de identidades nacionais que coexistiram durante a experiência soviética. Disso resultam outras experiências contrastantes como a Revolução Cultural chinesa e a coletivização dos campos na União Soviética stalinista que, não obstante o alto custo humano de ambas, estariam em dissonância quanto aos seus objetivos e os meios. Nesse sentido, o texto de Anderson ecoa diretamente algumas das concepções de Isaac Deutscher, em especial naquilo que ele apontava como impasse do maoísmo ao não aderir o internacionalismo revolucionário.

Todavia, a partir do segundo subcapítulo, Anderson passa a concentrar esforços nas mutações e aqui os saltos temporais talvez fiquem mais evidentes. As eras Kruschev e Brejnev passam a ser comparada com o governo de Deng Xiaoping. As mutações tornam-se fenômenos de conjunturas históricas diferentes e que se aproximam após a morte de Mao Zedong. Dessa aproximação, Anderson destaca que as distâncias geracionais em relação aos jovens e as revoluções que seus pais e até mesmo os avós participaram, se acentuam durante os anos 1970 e 1980. É o momento em que as intelligentsias dos partidos comunistas e ao corpo burocrático do Estado tiveram que dar uma narrativa revolucionária a milhares de jovens que não viveram esse processo – ou aquilo que Jonathan Spencer chamou de “o gostinho da revolução” (Spence, 1995, p. 512). Nesse ponto, a máquina chinesa mostrou-se operacional numa escala que a União Soviética não poderia consolidar. A descentralização política, como ressalta Anderson, era uma constante da experiência chinesa e que permita um grau de autonomia política dos dirigentes comunistas muito diferente daquela que experimentavam os dirigentes soviéticos.

Isso, contudo, não exime a análise de Anderson de certos recursos retóricos laudatórios que, no final, mostram-se constrangedores, com doses de orientalismo (ao afirmar a força das “tradições geoculturais chinesas em relação à modernização russa do século XIX) e um psicologismo pueril. O elogio aos dirigentes chineses pós-Mao Zedong, o autor os descreve como dotados de uma “têmpera leninista: radicais, disciplinados, criativos – capazes a um só tempo de paciência tática e de experimentação cautelosa, das iniciativas mais ousadas e das guinadas mais dramáticas”. (Anderson, 2019, p. 46-47) Assim, haveria uma espécie de grande continuidade entre os momentos dramáticos da Grande Marcha até os anúncios das primeiras reformas do “socialismo de via chinesa” promovidos por Deng Xiaoping. Aquilo que antes era uma discussão sobre autonomia política e consolidação de reformas passa a ser uma discussão sobre o caráter dos dirigentes chineses. E se esse é um ponto determinante de diferença na comparação entre as reformas de Deng e de Gorbachev, é importante que se diga que aqui Anderson anuncia uma ruptura com o argumento de Isaac Deutscher, que afirmava a importância do fervor chinês pelo “internacionalismo leninista” (Deutscher, 1964).

A retidão das reformas passa a ser tônica das partes seguintes do ensaio – a formação das “Empresas de Povoados e Aldeias” e das “Zonas Econômicas e Especiais” da era Xioping passam a ser o resultado de líderes que defenderam e protegeram a descentralização política e a relativa autonomia local. E o fizeram justamente por manterem essa “têmpera leninista”. Todavia, enquanto isso, a União Soviética mergulhava em colapso…as reformas de Gorbachev soçobraram e a estrutura burocrática do partido não acompanhou as mudanças desejadas na estrutura da sociedade. Nessa tensão, a falta de uma “têmpera leninista” talvez tenha apressado o colapso da União Soviética. Como o próprio Anderson afirma, “talvez a diferença mais decisiva entre a Rússia e a China residisse no caráter de suas lideranças políticas” (Anderson, 2019, p. 46).

Disso decorre que as duas últimas partes do ensaio passam a focar exclusivamente em como o Partido Comunista Chinês manteve seu domínio político, não obstante as reformas que empreendera desde 1978 – a União Soviética sequer aparece e a Rússia não merece mais do que uma nota de rodapé após o colapso do regime. No plano chinês, Deng Xiaoping mostra-se um guru sábio que, diante dos protestos de 1989, não adere ao liberalismo e entende o recuo ao capitalismo como um movimento estratégico. A larga escala da privatização econômica, que serviu de impulso ao desenvolvimento das décadas posteriores, possibilitou que a China se tornasse a “oficina do mundo”. Os líderes chineses, dotados de um caráter excepcional, passam a conduzir um processo de reformas que passa a ser visto como um “retorno” a um cenário econômico anterior ao século XIX (de acordo com as teses de Kenneth Pomeranz e Giovanni Arrighi) e a China encontra-se com o seu passado. Esse encontro, como ressalta Anderson, não é desprovido de tensões – inclusive de lutas de classes, com trabalhadores sendo tratados de modo abusivo e impiedoso, ou de camponeses espoliados de suas terras e meios de subsistência. E se a China agora resume seu lugar na economia política global, não a faz desprovida de tensões.

O interessante, contudo, é que o caráter enigmático pelo qual termina o ensaio serve como ensejo para o texto de resposta da pesquisadora e militante chinesa, Wang Chaohua. Exilada nos Estados Unidos desde 1990, Chaohua foi uma das lideranças da Associação Estudantil Autônoma de Beijing e ajudou a liderar os protestos estudantis na praça Tiananmen. Essa apresentação por si só deixa claro que a ênfase da crítica da autora está justamente na apreciação de Anderson sobre a China. E suas críticas são enfáticas: ao contrário do que Perry Anderson escrevera, ela entende que as reformas chinesas promovidas por Deng Xiaoping não são uma continuidade de aspectos positivos do período revolucionário, mas sim um processo de supressão dessa continuidade.

Essa é uma questão crucial para o argumento de Chaohua: a ideia de continuidade da revolução precisa ser repensada em toda a sua estrutura. A autora questiona, por exemplo, por que Anderson compara uma revolução de 1917 e outra de 1949 quando havia a possibilidade de comparar com o processo revolucionário chinês de 1911, que instaurou a República da China. Da mesma forma, Anderson ignoraria o envolvimento de soviéticos e chineses no apoio a revolucionários durante a Guerra Fria e sequer comenta que, dessa distinção, o PCCh jamais levou adiante uma bandeira maoísta de solidariedade internacional – de fato, os princípios da política externa formulada pelo chanceler Zhou Enlai apostaram constantemente na autonomia dos povos. Essas diferenças não são pequenas e acabam deflagrando uma forma completamente diferente pelas quais ambos países, Rússia e China, adentram no período de reformas. Por um lado, a experiência chinesa seria cheia de avanços e refluxos desde o período de 1911. Por outro, a experiência soviética seria marcada pela consolidação do poder do PCUS, não obstante eventos como a Guerra Civil, a Segunda Guerra Mundial e as disputas entre as lideranças pós-Stalin.

A ideia de Chaohua de começar a ver avanços e refluxos em processos revolucionários avança e consolida também a compreensão de crises e reformas como elementos em tensão. As reformas podem ser oriundas de crises – por exemplo, entender a Revolução Cultural como consequência decorrente das lutas internas do PCCh após o fracasso do Grande Salto para Frente, ou que as reformas de Deng Xiaoping foram acompanhadas de uma estagnação econômica que já durava mais de década na China, com crise de abastecimento em mercados locais e uma disputa fracionista na cúpula do partido após a morte de Mao Zedong. Essas crises, antes e durante o período das reformas, são ignoradas por Anderson, mas são centrais na crítica de Chaohua. Para ela, é a partir dessas tensões que podemos chegar a uma análise sobre as reformas que fuja da inevitabilidade histórica que a análise de Anderson propõe.

Ao invés de secundar a tese de uma “têmpera leninista” dos antigos dirigentes, Wang Chaohua aposta na manipulação dos anciãos, capazes de reestruturar o partido em um processo pouco democrático e de perseguição interna profunda. Treze anos após a morte de Mao, três líderes máximos do partido tinham sido removidos dos seus cargos. A crise política era consolidada pelos próprios dirigentes, que procuravam neutralizar qualquer iniciativa que visasse reformular o Estado sem a aquiescência de Deng. A partir do governo de Jiang Zemin (1989-2002), inaugurava-se uma fase onde o chefe do Partido passou a assumir, simultaneamente, o cargo de chefe de Estado e de comandante militar supremo – uma novidade que perdura até hoje (Chaohua, 2019, p. 96).

O que sobra quanto a imagem de Deng Xiaoping não é mais o dirigente experimentado, inovador e prudente, mas sim um político cuja guinada rumo ao conservadorismo era clara já na década de 1980 – mas tão logo as reformas econômicas fossem bem recebidas, não haveria o que temer. O sinal de abalo, contudo, veio em 1988. Zhao Ziyang, primeiro ministro na época, passou a advogar a necessidade de uma política de reajuste de preços, diante da liberalização econômica dos anos anteriores. Todavia, uma das consequências das reformas era a intensa migração campo-cidade, uma constante do desenvolvimento chinês da época. Ao chegarem na cidade, os camponeses tinham a promessa de empregos mais bem remunerados, mas o custo de vida subira para além do desejado – o que afetou bastante os estudantes que saíam de cidades, vilas e aldeias rurais para estudar nas grandes cidades, rompendo com o isolamento dos períodos anteriores. Assim, os eventos de 1989 não seriam meros distúrbios em prol de reformas ocidentalizantes, mas possuem uma base material fundamental para pensarmos inclusive a participação de trabalhadores e trabalhadoras nos protestos na praça Tiananmen (Vukovich, 2013, p. 45-46). Cair nessa narrativa, como salienta Chaohua, é cair na narrativa promovida por Xiaoping de que nada é mais importante que a “estabilidade” – ou seja, acreditar que os protestos são rupturas numa ordem a qual o partido se esforça para manter sólida e irredutível.

Ainda que a autora considere que o texto de Anderson apresenta um futuro nebuloso, no qual a China reencontra-se com seu passado sob os perigos de uma modernidade incerta, Chaouhua apresenta uma contra-narrativa importante. Ela considera que o próprio socialismo chinês é, hoje, um instrumento legitimador de práticas voltadas para a acumulação de capital e para a expropriação de pessoas dos seus bens comuns. Embora o capital financeiro, estatal ou estrangeiro, seja a grande força transformadora da sociedade chinesa na era pós-reformas, a legitimidade política de transformações como o despejo de camponeses nas barragens do Yang-Tsé ou a remoção de pastores na Mongólia Interior acaba residindo no discurso oficial de “socialismo de via chinesa” ou “sociedade harmoniosa”. No final das contas, para Chaohua a esquerda precisa compreender esse processo, portanto, para além de uma grande continuidade na qual uma “têmpera leninista” imemorial guia as lideranças chinesas de Mao Zedong a Xi Jinping.

Isso não é um alerta inocente. Como Daniel Vurkovich alertou em seu livro China and Orientalism: Western knowledge production and the P.R.C., os pesquisadores sinólogos não podem se ver diante do falso dilema entre um historicismo comparativo e um relativismo ahistórico (Ibid., p. 15). O ensaio de Anderson sem dúvida enfrenta esse dilema, mas por vezes escorrega tanto no primeiro aforismo como no segundo.

Quando se propõe a uma comparação, Anderson pega proporções completamente distintas da história russa e da história chinesa, ignorando questões como a própria noção de revolução presente nos dois contextos, bem como as crises e as reformas que formam um sentimento de idas e vindas de um processo caótico como costumam ser processos revolucionários. Ainda que seja louvável responder a pergunta sobre porque um processo deu certo e outro não, essa comparação historicista esbarra em questões chave para qualquer um que análise processos revolucionários, ou seja, o seu significado para os agentes, bem como seus avanços e seus recuos.

Por sua vez, há momentos em que o culturalismo entra em cena e as ações dos dirigentes chineses passam a receber um tom psicologizante e laudatório, como se fosse suficiente explicar grandes processos sociais pelo “caráter das lideranças políticas” (Anderson, 2019, p. 46). Além disso, a ideia de “tradições geoculturais” da China serve para criar uma noção de história imóvel, de longuíssima duração, onde o Estado chinês “jamais sofrera a rivalidade de qualquer Estado comparável da região” até meados do século XIX – ignorando, possivelmente, as guerras civis e as invasões mongóis no território chinês. A atemporalidade faz parte de um discurso orientalista, como ressalta Edward Said (Said,2003, p. 65), uma espécie de história – e também geografia – imaginária, capaz de demarcar as diferenças entre eu e o outro. O tempo “intemporal” é uma marca que passa a impressão de “repetição e força” (Ibid., p. 81), consolidando um objeto sólido, apreensível, pouco sujeito a transformações.

Talvez seja exagero afirmar que a história da China, presente na análise de Perry Anderson, seja essa demonstração de tempo estático característica do orientalismo. Ainda assim, a crítica de Chaohua aponta para limites nos quais as esquerdas, ao olharem para a história da China, não podem se deixar seduzir por “têmperas leninistas” ou por tradições imemoriais. Se a crítica ao capital é o que caracteriza os socialistas de todo o mundo, debruçar-se sobre a experiência chinesa, por sobre suas revoluções e suas reformas, talvez seja a melhor forma de encarar também as metamorfoses do capital e seus deslocamentos geográficos nas últimas décadas.

Referências bibliográficas

Anderson, P.Duas revoluções: Rússia e China. São Paulo: Boitempo, 2018.

Chaohua, W. O partido e sua história de sucesso: uma resposta a “Duas revoluções”. In: Anderson, P. Duas revoluções: Rússia e China. São Paulo: Boitempo, 2018.

Deutscher, I. Maoism: Its origins and its outlooks” Socialist Register/ Le Temps Modernes, 1964.  Disponível em: https://marxists.architexturez.net/archive/deutscher/1964/maoism-origins-outlook.htm

Said, E.Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras. 2003.

Spence, J. Em busca da China moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Vukovich, D. China and Orientalism: Western knowledge production and the P.R.C.London and New York: Routledge, 2013

[Resenha a:] Karepovs, Dainis. Pas de Politique Mariô! Mario Pedrosa e a Política. Cotia/SãoPaulo: Ateliê Editorial/Fundação Perseu Abramo, 2017.


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Karepovs, Dainis. Pas de Politique Mariô! Mario Pedrosa e a Política. Cotia/SãoPaulo: Ateliê Editorial/Fundação Perseu Abramo, 2017.

Por Luccas Maldonado [1]

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A segunda década do século XXI mostra-se como um momento privilegiado na temática biografias; ano-pós-ano trabalhos interessantes, ricamente documentados e cuidadosamente escritos, são publicados. Personagens como Getúlio Vargas, Mário de Andrade, Francisco Julião, Caio Prado Júnior, Lima Barreto, Carlos Marighella, Luiz Carlos Prestes e outros mais foram tangidos. Dentro dessa lista, mostra-se perceptível a atenção que as figuras da esquerda brasileira despertaram entre os escritores. Desde a publicação de Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundode Mario Magalhães (2012), parece existir uma curiosidade para com esse perfil.[2]Nesse sentido, filiados históricos do Partido Comunista Brasileiro (PCB), como Prestes, Marighella e Prado Júnior, foram extensivamente e qualitativamente explorados. No interior do movimento, os trotskistas, por sua vez, ainda não haviam sido palco de grandes atenções, pelo menos até então: Dainis Karepovs (2017) veio dispor a sua contribuição por meio de uma biografia de Mario Pedrosa.

Pas de Politique Mariô! Mario Pedrosa e a Política é o segundo livro de Karepovs que se dedica à história do trotskismo brasileiro. O primeiro, que na prática é a sua dissertação de mestrado, é um amplo estudo do conflito entre a direção nacional do PCB e o Comitê Regional de São Paulo no final dos anos 1930 – processo que resultou, após intervenção da Internacional Comunista (IC), em um profundo racha na organização. Tal obra, intitulada Luta Subterrânea(2003), é um trabalho paradigmático, devido ao amplo exercício documental, nos estudos do trotskismo brasileiro e da história do Partido Comunista pós-insurreição de 1935. De sua autoria, existem também artigos em revistas acadêmicas e coletâneas; além de ser um dos organizadores, junto de Fulvio Abramo, de uma reunião de documentos ligados à história da primeira geração de trotskistas brasileiros, Na Contracorrente da História(1987). Karepovs possui também pesquisas dedicadas ao PCB e à República Velha, como a sua tese de doutoramento (2006); a apresentar, dessa forma, um considerável repertório e domínio sobre a história política brasileira.

  Pas de Politique Mariô! […] possui pouco menos do que 300 páginas. Sua composição como projeto expositivo conta com duas seções delimitadas e uma não. A primeira, a não explícita, trata-se de uma reunião de três textos introdutórios: dois de Karepovs e um rubricado pela docente da UNESP, Isabel Loureiro. As seções seguintes, intituladas “Mario Pedrosa e a Política” e “Mario Pedrosa sob o olhar emocionado de seus companheiros”, em certa medida rememoram en passant aampla coleção de História da República empreendida pelo historiador Edgard Carone na segunda metade do século XX – docente da USP que fora orientador de doutorado do autor da biografia. Em resumo, Carone dividiu o período republicano em diversos momentos e, para cada um deles, elaborou uma brochura de análises e outra de documentos.[3] Karepovsrealiza o mesmo movimento, mas em menor projeção, no seu estudo sobre Pedrosa: um espaço analítico e outro documental.[4]

  Pedrosa foi um personagem complexo. Sua trajetória caracteriza-se por duas grandes faces holísticas: uma artística e outra política. Divisão que se confunde em uma amálgama ao se encarar a sua vida. Por exemplo, a aproximação para com as concepções de esquerda deu-se concomitantemente ao acercamento do surrealismo; processo que similarmente desdobrou-se com a avant-gardeadmirada pelo biografado, a qual se ligou ao socialismo e ao protesto contra a Primeira Guerra Mundial. Os dois rostos de Pedrosa são arranjos analíticos, construídos pelos estudiosos nas suas descrições e interpretações, que não existiram na realidade objetiva. Essa particularidade constituiu-se como importante detalhe a respeito da obra elaborada por Karepovs uma vez que, na sua narrativa histórica, faz uma opção por dispor, em primeiro plano, o itinerário político desse homem, a descrever as atividades artísticas somente tangencialmente, quando incontornáveis.[5] Para o autor da investigação, existiria um sentido, um “fio de continuidade”, responsável por oferecer coerência ao percurso do biografado: a manutenção de uma posição marxista, “foi um daqueles que jamais abriram mão do marxismo” (Karepovs, 2017, p. 23). Exatamente esse longo trajeto, que comtempla todo o interim da existência de Pedrosa, é uma marca do livro: o primeiro a estudá-lo integralmente.[6]

O estudo elaborado por Karepovspossui nove capítulos organizados diacronicamente, os quais são divididos a partir de mudanças qualitativas na posição política do personagem. Inicia-se na militância de Pedrosa dentro do PCB e na sua atuação junto de Leon Trotsky, quando ajudou a organizar a Oposição de Esquerda e a IV Internacional no Brasil e na América Latina. O capítulo dedicado às conexões com o revolucionário bolchevique é o mais extenso, certamente por ser uma temática investigada anteriormente pelo autor e com considerável bibliografia acerca. Desenvolve-se com o trabalho empreendido pelo personagem no jornal Vanguarda Socialista e com a sua filiação e participação no Partido Socialista Brasileiro (PSB), a transpassar pela frequente e intensa oposição que fez a Getúlio Vargas e seus correligionários no interim.

Segue com a expulsão da legenda socialista, devido à colaboração em um outro grupo político (Ação Democrática), e pondera sobre o aprofundamento analítico desenvolvido a partir do final da década de 1950, quando começou a refletir a respeito da problemática da Revolução Brasileirae cambiou as suas leituras para um viés mais elaborado, a considerar a questão agrária, os limites da participação na democracia e a história brasileira como um processo mais amplo de embates e interesses; tal momento reflexivo levar-lhe-ia à redação de dois importantes livros, componentes de um único projeto, os quais são a magnum opus política de Pedrosa (1966; 1966). E encerra-se com o exílio, primeiro chinelo, depois francês, os estudos e escritos permeados de influência da teórica alemã Rosa Luxemburgo e a participação na fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) de Mario Pedrosa. Nas últimas passagens da obra, Karepovs levanta uma interessante e polêmica interpretação a respeito do caráter que os textos de Pedrosa iriam adquirir nas suas últimas décadas. Na perspectiva do autor, o antigo militante trotskista possuiria uma expressiva originalidade na sua concepção do imperialismo, a pautar questões relacionadas com as consequências da expansão capitalista nas margens da economia mundial e o subdesenvolvimento de maneira inovadora e original; seria um uso matutino da Anschauungde Rosa Luxemburgo que somente anos depois começaria a ser explorado mais profundamente por outros intelectuais, como por exemplo por David Harvey.

O caráter seletivo da narrativa histórica traz consigo, per se, uma opção por parte do especialista do seu ofício, quer dizer, os trabalhos históricos “são, de saída, abusos do esquecimento” por elegerem aquilo que será destacado e ao mesmo tempo lançarem ao ostracismo, pela não escolha, o que suspostamente desinteressa (Ricoeur, 2007, p. 455). Perspectiva interessante, pois, pode ser manejada como um componente, conjugado com uma precisa matriz conceitual, para se fazer uma sucinta consideração acerca do local ocupado pela nova investida de Karepovs. Pedrosa foi um exemplar inspirador de um tempo e de uma sociedade, carregou na sua vida intensidades, conhecimentos e caminhos notáveis; um espírito de uma época. No entanto, é preciso indagar: o autor, por meio da documentação reunida, selecionada e evidenciada, revela o que sobre os espaços sociais ocupados e influenciados pelo personagem; ele esteve nas margens ou no centro do processo histórico; fez aquilo que lhe era esperado ou rompeu com a tendência para instituir o novo?

A opção de Karepovs preteriu um homem que, por diversas vezes, traçou o menos evidente. Elegeu ser marxista em um país no qual a sociedade civil nunca tomou formas amplas, ainda mais: foi um trotskista, a ala mais maldita das esquerdas. Abraçou a carreira de crítico de arte em um ramo secundário do jardim das musas que frequentemente destratou filhos seus. Originário da elite econômica e política brasileira, com pai dentro do parlamento, traiu a própria classe. Assim, fixou-se em uma existência pária, capaz de revelar o que foge do configurado, sobre o inesperado na armação das estruturas. A notoriedade do gênero biográfico está na capacidade de esmiuçar, pelo precisão dos contextos, os aspectos do repetitivo/dominante ou do marginal/inesperado.[7] A narrativa histórica de Pas de Politique Mariô! evidencia o segundo âmbito: a vida de um homem que, tendo tudo para seguir os rumos mais casualísticos, construiu o imprevisível. Contudo, isso não quer dizer que o estudo caia na armadilha do exclusivismo sui generis; pelo contrário, intenta explicar pela diferença o estrutural, quer dizer, pela militância socialista de uma biografia, aspectos do sistema político brasileiro e outras questões mais.

A concluir, Karepovs é autor de um trabalho interessante e qualitativo; será   provavelmente um marco nos estudos de Pedrosa, por ser o primeiro a traçar o seu itinerário do princípio ao fim. Como autor, não obstante seja distante das elaborações teóricas e prefira com maior afinidade a descrição, não cai nas ilusões e nos perigos que envolvem a escrita biográfica, como as elencadas por Pierre Bourdieu (2006). Diante das possíveis ponderações originárias desse pensador francês, o qual afirma que a vida é um processo demasiadamente longo para se procurar uma racionalidade ipso fato/em si mesma, o escritor brasileiro integra seu objeto dentro de um contexto histórico e social, a estar, portanto, mais próximo da ciência do que da literatura – assim, talvez o Mario Pedrosa de Karepovs não fosse executado pelo júri de L’Étranger (Camus, 1977). Como um exercício pioneiro, carece de proporcionalidade, passagens são ricamente exploradas e documentadas e outras rapidamente tangidas e de um exercício contextualista mais aprofundado, ele é existente conforme o enunciado, porém, necessita de raízes mais assentadas, algo mais próximo do que fez Quentin Skinner (1996; 2010) com Maquiavel, Louis Fischer (1967) com Lênin ou Jonathan Steinberg (2015) com Bismarck. Condições que certamente derivam da origem do projeto, não pensado para ser um livro unitário, mas sim uma introdução de um volume na coleção Mario Pedrosa na extinta editora Cosac Naify. Conforme o próprio autor elucida em umas das suas introduções, Pas de Politique Mariô! não pretende ser uma biografia definitiva do personagem, no entanto, a pedra fundamental de uma construção que está para ser feita.

 

Referências bibliográficas

Abramo, F.; Karepovs, D. Na Contracorrente da História: Documentos da Liga Comunista Internacionalista (1930-1933). São Paulo: Brasiliense, 1987.

Arantes, O. B. F. Mario Pedrosa: itinerário crítico. 2º ed. São Paulo: Cosaf Naify, 2004.

Bourdieu, P. “A ilusão biográfica”, in: AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos & Abusos da história oral. 8º ed. Rio de janeiro: FGV, 2006.

Camus, A. L’Étranger. Paris: Gallimard, 1977.

Coelho, J. M. Entrevista: Edgard Carone. A República em capítulos: como trabalha um historiador que já até o que estará pesquisando em 1980. Veja, 11 fev. 1976, p. 3-4; 6.

Fischer, . A vida de Lênin. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 2 v.

Karepovs, D. Pas de Politique Mariô! Mario Pedrosa e a Política. Cotia; São Paulo: Ateliê Editorial; Fundação Perseu Abramo, 2017.

_____. A classe operária vai ao Parlamento: o Bloco Operário e Camponês do Brasil (1924-1930). São Paulo: Alameda, 2006.

_____. Luta subterrânea: o PCB em 1937-1938. São Paulo: Hucitec; Unesp, 2003.

Magalhães, M. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2012.

Marques, J. C. N. Solidão Revolucionária: Mario Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1993.

Martins, J. S. Florestan: Sociologia e Consciência Social no Brasil. São Paulo: Edusp, 1998.

Pedrosa, M. A Opção Imperialista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

_____. A Opção Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

Pericás, L. B. Caio Prado Júnior: uma biografia política. São Paulo, Boitempo, 2017.

_____. Os Cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010.

Reis, D. A. Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos. Cia das Letras, 2014.

Ricoeur, P. A História, a memória, o esquecimento. Campinas: Ed. UNICAMP, 2007.

Skinner, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.

_____. Maquiavel. Porto Alegre: L&PM, 2010.

Steinberg, J. Bismarck: uma vida. Barueri: Amarilys, 2015.

Notas

[1] Mestrando em História na Universidade de São Paulo.

[2] Para dois títulos, além do de Magalhães, que desenvolveram interessantes estudos, cf. Caio Prado Júnior: uma biografia política. (Pericás, 2017); Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos(Reis, 2014).

[3] Para mais informações sobre o projeto de história da República de Carone, cf. Entrevista: Edgard Carone. A República em capítulos: como trabalha um historiador que já até o que estará pesquisando em 1980 (Coelho, 1976).

[4] Há de se demarcar que tal prática não é exclusiva dos dois autores, por exemplo, Luiz Bernardo Pericás (2010) fez algo semelhante em Os Cangaceiros.

[5] Para um estudo que evidencia a “face” artística de Pedrosa, cf. Mario Pedrosa: itinerário crítico (Arantes, 2004).

[6] Existem diversos estudos sobre a vida e a obra de Pedrosa, porém, todos com limitações temporais, para um exemplo, cf. Solidão Revolucionária: Mario Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil(Marques, 1993).

[7] Utiliza-se como base para essa descrição a síntese conceitual que José de Souza Martins fez das abordagens biográficas de Florestan Fernandes. “As situações ambivalentes e limites reaparecem em seus diferentes estudos sob a forma de ruptura com o conformismo e com o destino. Se por um lado as biografias que documentam o repetitivo são por ele consideradas fundamentais para a compreensão do funcionamento da sociedade, por outro são igualmente fundamentais as biografias transgressivas e as personalidades divergentes” (1998, p. 95).