[Resenha :] PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.


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PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral  do direito e marxismo.  São Paulo: Boitempo, 2017.

Por Thais Hoshika

Não há dúvidas de que Evguiéni B. Pachukanis (1891-1937) foi o filósofo que mais avançou na crítica marxista do direito, responsável por nos oferecer as bases sobre as quais o fenômeno jurídico deve ser analisado ao identificar a intrínseca relação entre forma jurídica e forma mercadoria e, portanto, a especificidade do direito no capitalismo.

Sua essencial contribuição à construção de uma teoria materialista do direito condensa-se em sua obra central, qual seja, Teoria geral do direito e marxismo, na qual o autor propõe, utilizando-se do método da economia política[1], a identificação das categorias abstratas fundamentais à compreensão do direito enquanto conjunto de relações sociais específicas.

Tal como Marx inicia a análise da economia política pela mercadoria, Pachukanis inicia o estudo do direito pela categoria do sujeito de direito que, diferente do que tratam as doutrinas jurídicas tradicionais, não é uma categoria jurídica construída arbitrariamente pela mente do jurista, mas é constitutivo não apenas à própria forma jurídica como também é essencial para a própria realização da esfera da circulação mercantil, tornando esta possível.

A identificação da forma sujeito como o átomo indivisível da forma jurídica e sua relação espelhada para com a forma mercadoria é, sem dúvidas, a maior contribuição do autor. A mercadoria tem como característica a qualidade de ser um meio de troca com relação a outra mercadoria devido ao seu substrato social em comum: o trabalho abstrato. Da mesma forma que “um produto do trabalho adquire propriedade de mercadoria e se torna o portador de um valor”, para que a esfera da circulação mercantil se realize é necessário que os homens, reificados, adquiram “um valor de sujeito de direito” (p. 120), na qual desaparecem as particularidades e relações concretas de exploração entre eles, e estes se tornam portadores de direitos, livres proprietários privados de mercadorias equivalentes, cujo exercício dessa igualdade e liberdade formal decorre dessa capacidade volitiva que todo sujeito de direito tem de dispor de sua mercadoria.

Uma das importantes implicações decorrentes da identificação da categoria do sujeito de direito e seu papel fundamental na reprodução do circuito estruturante da sociabilidade capitalista é o fato de que a forma jurídica não provém diretamente de uma relação de dominação consciente de classe ainda que, evidentemente, não se possa excluir esse fator, mas cujo substrato reside nas próprias relações jurídicas contratuais de troca de mercadorias, pertencentes a uma dinâmica de dominação abstrata que independe da vontade dos indivíduos.

Nesse sentido, a forma de dominação capitalista tem um desenvolvimento “natural” próprio, em que a subjetividade dos indivíduos é capturada e estes são constituídos como sujeitos de direito pelas suas condições reais de existência, naturalizando as formas sociais do capitalismo que, devido à sua forma de universalidade, fazem com que o caráter socialmente determinado dessas formas adquiram um caráter de eternidade (ver Edelman, 1976).

Assim, uma vez apontado que a especificidade do direito no capitalismo é determinada pela forma jurídica, é fundamental a crítica tecida por Pachukanis com relação ao conteúdo material da regulamentação jurídica. Não excluindo a importância de se analisar o conteúdo das normas jurídicas, o autor ressalta que a própria forma dessa regulamentação deve ser compreendida como uma forma historicamente determinada, posto que, apesar de não dependerem de seu conteúdo concreto, as categorias jurídicas fundamentais podem ser deduzidas logicamente das normas de direito positivo.

Caso a análise recaia apenas sobre o conteúdo das normas jurídicas, o resultado é a procura nesse conteúdo das necessidades materiais e interesses de determinada classe. Em outras palavras, é o mesmo que dizer que o direito é o direito burguês porque o conteúdo de suas normas favorece a classe capitalista, que não se trata de uma proposição falsa, mas que não alcança a especificidade do fenômeno jurídico e abarca em si a possibilidade de uma compreensão transhistórica da forma jurídica[2], além de ser insuficiente para explicar a existência de normas jurídicas cujo conteúdo (a princípio) é contrário aos interesses imediatos da classe burguesa.

Outra importante contribuição à crítica marxista do direito é a articulação que o autor tem ao tratar da relação jurídica e norma jurídica em que, ao contrário da doutrina jurídica juspositivista, que compreende a norma jurídica como a pressuposição lógica e necessária da relação jurídica, Pachukanis aponta para o verdadeiro fundamento do direito, identificando não apenas a primazia da relação jurídica como também e, essencialmente, desvelando as bases reais e a especificidade dessa relação que, em sua forma mais básica, corresponde aos próprios atos de troca da esfera da circulação mercantil. O fenômeno jurídico, portanto, não pode ser reduzido nem esgota-se na norma objetiva, pois considerada isoladamente a norma não passa de uma abstração vazia.

Mas não é apenas isso.

Devido ao seu substrato histórico real, as abstrações jurídicas fundamentais à compreensão do direito não podem ser analisadas de outra maneira senão enquanto inseridas na complexidade das relações sociais, das quais são expressão.

Daí a necessidade em se destacar especialmente as comparações que Pachukanis faz entre as categorias jurídicas e as categorias econômicas da crítica à economia política (cf. Marx, 2017) porque elas revelam a importância da relação entre norma (direito objetivo) e relação jurídica (direito subjetivo).[3]

Assim, o autor afirma que compreender o direito a partir de sua decomposição em direito objetivo e direito subjetivo é tão importante quanto a decomposição da mercadoria em valor de uso e valor de troca (duplo caráter da mercadoria). Nesse sentido, a norma jurídica considerada isoladamente não passa de uma fórmula vazia justamente por configurar uma categoria que pode pertencer a qualquer momento histórico. Entretanto, e é isso que faz com que a norma jurídica adquira determinação histórica, ela não pode ser compreendida sem a relação jurídica dos sujeitos encarnados na esfera da circulação mercantil.

Além disso, e isto é essencial para a compreensão da maneira como os juristas tradicionais apreendem o fenômeno jurídico e como o direito aparece, o autor demonstra que a convicção de que a norma jurídica engendra a relação jurídica e o sujeito é tão equivocada como afirmar que o valor apenas “se manifesta nas flutuações de preço (p. 101). Disto é possível extrair a seguinte proposição: de que, da mesma maneira que o preço é a forma como o valor aparece, a norma jurídica é a forma como a relação jurídica e o sujeito aparecem, afirmando-o e velando-o ao mesmo tempo.

A principal dificuldade no estudo do direito está no fato de que, ao passarmos das categorias abstratas para a análise da totalidade concreta, o direito aparece com todas as suas determinações, havendo uma conformação entre forma política estatal e forma jurídica, na medida em que o direito aparece como a própria norma jurídica proveniente de regulamentação estatal. Posto isso, não há como tratarmos do direito sem uma compreensão materialista do Estado e da especificidade da forma política[4]pois, não obstante o fato de que o poder político estatal confere “clareza e estabilidade à estrutura jurídica”, ela “não cria seus pressupostos” (p. 104).

Em uma sociabilidade cuja forma de mediação é a mercadoria, composta por sujeitos dotados de subjetividade jurídica para dispor livremente de si, não pode o Estado apresentar-se como aparelho pertencente a determinada classe, pois o próprio Estado é permeado por essa mesma subjetividade jurídica, se apresentando como um poder público, ou seja, “um poder que não pertence a ninguém em particular, que está acima de todos e que se endereça a todos (p. 148), o poder de uma norma objetiva imparcial” (p. 146).

Expostos os principais aspectos dos cinco primeiros capítulos, a obra conta com mais dois capítulos, a saber, “direito e moral” e “direito e violação do direito”. No primeiro, Pachukanis descreve a forma ética da sociabilidade capitalista, apresentando a ligação estreita entre sujeito moral e sujeito de direito. No último, por sua vez, o autor trata do direito e processo penal que, uma vez determinado pela forma jurídica, assume a própria forma da equivalência dos atos de troca mercantil.

De fato, a advertência inicial feita por Pachukanis na obra aqui discutida revela-se perfeitamente cabível diante do fato de que o autor não esgotou todos os problemas relacionados à teoria geral do direito[5]. Mas ele nos deixou um legado ainda mais importante, que é justamente a identificação das categorias estruturais para a compreensão do fenômeno jurídico e que, portanto, constitui a base teórica incontornável para a crítica marxista do direito.

Referências bibliográficas

Edelman, Bernard. O direito captado pela fotografia. Coimbra: Centelha, 1976.

Kashiura, Celso N. Dialética e forma jurídica. In: O discreto charme do direito burguês. Campinas: Unicamp, 2009.

Marx, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

_____. O Capital. São Paulo, Boitempo, 2017.

Mascaro, Alysson L. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.

Naves, Marcio B. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2008.

Notas

[1]Para o primeiro capítulo remete-se ao método da economia política, ver Karl Marx (2008).

[2]A respeito da relação entre forma e conteúdo, ver Celso N. Kashiura (2009).

[3]Em um plano mais concreto, o mesmo problema em se compreender o direito objetivo/ subjetivo transpõe-se para a relação entre direito público/privado.

[4]Sobre o conceito de “conformação” e para uma leitura completa da forma política estatal, ver Alysson L. Mascaro (2013).

[5]Para uma leitura indispensável da obra de Pachukanis, ver Marcio B. Naves (2008).