[Resenha a:] SAAD, Alfredo. O valor de Marx. Campinas: Unicamp, 2011.


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Saad Filho, Alfredo. O Valor de Marx: Economia política para o capitalismo contemporâneo. Campinas, SP: Unicamp, 2011.

Por Roberto Resende Simiqueli

O valor de Marx, de Alfredo Saad Filho, se apresenta como mais uma opção na vasta lista de introduções à crítica da economia política realizada por Karl Marx e aos debates em torno de suas teses. Fosse o livro de Saad somente uma nova tentativa de apresentação do autor, ele já teria que disputar espaço com tantos outros readersde peso, ferramenta necessária à leitura e compreensão dos argumentos do filósofo alemão, principalmente (mas não apenas) por estudantes de graduação e pós-graduação engalfinhados com as particularidades da teoria do valor ou do movimento ampliado da acumulação de capital. No entanto, a proposta desse breve trabalho é não só proporcionar ao leitor uma breve introdução aos termos fundamentais da economia política marxista, como aproximá-lo de algumas disputas teóricas decorrentes dessas formulações e da compreensão contemporânea sobre o autor e sua obra.

O primeiro dado relevante sobre O valor de Marxé sua concentração sobre as principais categorias econômicas da contribuição marxiana. Ainda que Saad adote uma postura arejada frente ao universo categorial marxista e mantenha abertas frentes oportunas de diálogo com debates sociológicos, políticos ou filosóficos sobre o autor, seu texto se destina de imediato à formação de economistas interessados nas problemáticas da economia política clássica e à atualização de pesquisadores envolvidos com esses debates. Assim, seu tratamento da obra econômica de Marx é estruturado em torno dos temas usuais: as Interpretações da Teoria Marxista do Valor ocupam o segundo capítulo, seguidas de considerações sobre Valor e Capital (cap. 3), Salários e Exploração (cap. 4), Valores, Preços e Exploração (cap. 5), A Composição do Capital (cap. 6), enquanto os espinhosos temas da teoria da transformação e dos movimentos dos capitais bancário, financeiro e fictício são objeto dos dois capítulos finais: A Transformação dos Valores em Preços (cap. 7) e Moeda, crédito e inflação (cap. 8). Se nos limitássemos somente à escolha das questões referenciadas por Saad, pouca diferença restaria entre seu livro e o material comumente empregado como referência complementar nos cursos de Economia Política ou História do Pensamento Econômico. Mas a apresentação desses temas e seu encaminhamento fazem do trabalho uma peça singular, nesse campo, e mais do que justificam uma leitura atenta.

Saad, apesar do referencial claramente econômico, deixa clara sua simpatia pela perspectiva relacionista na compreensão do valor e das leis de acumulação, compreendendo o capital e sua valorização como uma relação social. Isso justifica o encaminhamento dado pelo autor às considerações em torno da exploração da força de trabalho, seu papel na ampliação da dinâmica de valorização do capital e a importância fulcral da expropriação capitalista na estruturação desse modo de produção. Assim, o autor demarca de forma hábil sua diferença frente a outras matrizes de interpretação d’O capital, pautadas muitas vezes pelo eclipsar das relações sociais que dão forma ao modo de produção capitalista e pela ênfase quase que exclusiva no primoroso tratamento dado por Marx à dinâmica financeira (e às possibilidades de resgate desse tratamento para a compreensão da contemporaneidade).

Um parágrafo síntese de sua posição pode ser encontrado na conclusão do capítulo dedicado às noções de valor e capital:

“A teoria do valor de Marx parte do princípio ontológico de que as sociedades humanas se reproduzem, e se modificam, através do trabalho. O trabalho e seus produtos são divididos socialmente e, no capitalismo, esses processos e seus resultados são determinados pelo monopólio dos meios de produção pela classe capitalista, a mercantilização da força de trabalho e a forma mercadoria dos produtos do trabalho. Nessas circunstâncias, os produtos do trabalho geralmente têm a forma valor, e a exploração econômica se baseia na extração de mais-valia. Em outras palavras, a relação capital inclui o monopólio dos meios de produção, o trabalho assalariado e a contínua reprodução de duas grandes classes sociais mutuamente condicionantes, os capitalistas e os trabalhadores” (p. 72).

Os ecos desse enquadramento do capital enquanto relação são sentidos de forma decisiva nos capítulos finais do livro, em que questões tidas como particularmente complexas (capital fictício, transformação de valores em preços, concorrência e queda tendencial da taxa de lucro) são explanadas com singular simplicidade, e com vistas à manutenção do eixo argumentativo central. Ao discorrer sobre a instabilidade inerente ao capitalismo Saad pontua:

“As economias capitalistas são instáveis devido aos conflitos entre as forças de extração, realização e acumulação de mais-valia em condições competitivas. Essa instabilidade é estrutural, e nem mesmo as melhores políticas econômicas podem evitá-la por completo. A concorrência obriga cada capital a encontrar formas de aumentar a produtividade do trabalho. Isso geralmente envolve mudanças técnicas que aumentam o grau de mecanização, a integração entre os processos de trabalho dentro de cada firma, e através de firmas diferentes, e a escala potencial da produção. Portanto, a concorrência socializa a produção capitalista” (p. 174).

A importância dessa abordagem, principalmente no momento em que os trabalhadores brasileiros são tomados de assalto pelas propostas das reformas trabalhista e previdenciária, não pode ser medida. Saad efetivamente desloca a ênfase, mantida por muitas análises do econômico em Marx, da movimentação autônoma do capital para a sua essencialidade, sua conformação ontológica. O capital não é explicado como valor que se valoriza no sentido da naturalização do movimento de sua valorização, mas como relação social de exploração e reprodução da exploração do trabalho.

Por sutil que a diferença possa parecer, suas implicações são vastas. Por meio desse enfoque, Saad consegue articular os termos fundadores da crítica à economia política a seus desdobramentos mais desafiadores, sem perder o fôlego ou a fluidez da narrativa. Para além do apurado trabalho conceitual, o livro é muito bem escrito e sua leitura é bastante agradável. Assim, O valor de Marxpossibilita uma apresentação convidativa aos grandes temas explorados n’O capital, ao mesmo tempo em que defende posições teóricas ousadas sobre a interpretação da obra econômica de Marx e arma o leitor de referências valiosas para a continuidade do estudo.

Lido paralelamente a outras introduções consagradas a O capital, O valor de Marxmerece certo destaque. A apresentação direta e clara faz com que seja um livro vastamente mais aproximável do que os dois volumes de David Harvey em Para entender O capital(Harvey, 2013). Por mais hábil que Harvey seja em expor suas ideias e promover uma reavaliação do arrazoado marxista no trato da economia contemporânea, Saad explora temas fulcrais desse mesmo arrazoado de forma bem mais objetiva. Seus objetivos e resultados são distintos, por outro lado, daqueles levantados por algo como o clássico Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx(Rosdolsky, 2001), de Roman Rosdolsky, mas aqui Saad cumpre a proposta declarada no subtítulo: é difícil encontrar um readerde Marx tão engajado com a compreensão do capitalismo contemporâneo. Em extensão e profundidade, o livro se aproxima de referências estabelecidas no meio acadêmico em economia, como Smith, Ricardo e Marx(Napoleoni, 1978), de Claudio Napoleoni, e Valor e capitalismo(Belluzzo, 1980), de Luís Gonzaga Belluzzo. No entanto, não só Saad atualiza as problemáticas fundamentais da economia política marxista frente aos debates atuais, como possibilita o acompanhamento desses debates de forma mais clara. E defende uma posição mais alinhada com os desenvolvimentos recentes na interpretação do legado intelectual marxiano.

Outros dois trabalhos que julgamos “complementares” a O Valor de Marxe cuja leitura parelha recomendamos são o primoroso Marx: notas sobre a teoria do capital, de Maurício Chalfin Coutinho, que apresenta uma cuidadosa leitura estrutural de passagens fundadoras das categorias econômicas de Marx, e O negativo do Capital(Grespan, 1996), de Jorge Grespan, com intuito e problemas próximos aos do trabalho de Saad, em alguns momentos. Pensando especificamente na tarefa gratificante porém desafiadora de apresentar as densas categorias d’O Capital a alunos de graduação, O valor de Marxse revela (com o perdão do trocadilho infame) uma ferramenta valiosa.

Referências bibliográficas

Belluzzo, Luiz Gonzaga de Mello. Valor e capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1980.

Coutinho, Maurício Chalfin. Marx: notas sobre a teoria do capital. São Paulo: Hucitec, 1997.

Grespan, Jorge. O negativo do capital: o conceito de crise na crítica de Marx à economia política. São Paulo: Hucitec, 1996.

Harvey, David. Os limites do capital. São Paulo: Editora Boitempo, 2013.

_____. Para entender O capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

Lévy, Dominique et alii. Uma nova fase do capitalismo?São Paulo: Xamã, 2003.

Marx, Karl. O capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. 3 v.

Napoleoni, Claudio. O valor na ciência econômica. Lisboa: Presença, 1977.

_____. Smith, Ricardo, Marx. Rio de Janeiro, Graal, 1978.

Rosdolsky, Roman. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Eduerj, Contraponto, 2001.


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