HOBSBAWM, Eric. Viva la revolución: a era das utopias na América Latina. Organização: Leslie Bethell. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
Por Bernardo Geraldini
O historiador britânico Eric Hobsbawm teve uma relação bastante intensa com a América Latina. Essa intensidade se nota nas amizades que aí construiu, nas suas várias (e longas) viagens ao continente, realizadas principalmente nas décadas de 1960 e 1970, e na popularidade de que suas obras aí gozaram. Seus escritos sobre a região somam agora cerca de quinhentas páginas, em volume organizado pelo brasilianista Leslie Bethell.
Não sendo Hobsbawm um latino-americanista (como ele próprio assume), talvez fosse de se esperar que a maioria dos capítulos não seguisse a forma acadêmica tradicional. Evidentemente, e assim como ocorre com sua famosa obra sobre o “breve século XX”, a não conformidade com o dispositivo acadêmico tem alguns traços que devem ser relevados. O primeiro e mais importante deles é a fluidez do texto, que chamará a atenção principalmente de leitoras e leitores que também leram as obras mais propriamente acadêmicas do autor. Assim, em geral, os escritos sobre a América Latina são menos densos, contém menos informações e requerem menos pausas do que, por exemplo, as obras de Hobsbawm sobre o trabalho ou sobre a crise econômica europeia do século XVII. A contraparte dessa fluidez que ficará mais clara para a/o especialista em América Latina é a eventual falta de dados e/ou a ausência de um tratamento sistemático dos mesmos. Entretanto, isso não é problemático, já que proposta deste livro evidentemente nunca foi a de constituir um compêndio ou um “manual” sobre a região.
Esses traços nos levam àquilo que é, creio, um dos pontos fortes de Viva la revolución: o livro explora a relação que diversas teorias (principalmente sobre consciência de classe, mobilização popular e revolução, mas também sobre neofeudalismo, por exemplo) têm com a situação histórica da América Latina frente ao restante do mundo. Isto é, o caráter ensaístico do texto e o foco em casos específicos (por oposição a tentativas de esgotar os vários fatos e dados sobre a região) deixam amplo espaço para a reflexão sobre como a inserção no mundo capitalista a partir da periferia condiciona os processos históricos desta última.
Nessa chave de leitura, a parte II do livro, “Estruturas agrárias”, é emblemática: ao tratar do caso do Peru, Hobsbawm afirma que o avanço do capitalismo em meados do século XX fez prosperar um modo de produção que é praticamente indistinguível do feudalismo clássico. E, o que é mais, sua análise não se serve de fatalismos históricos: como ele próprio coloca, é “imprudente confiar demais em explicações históricas” (p. 150), pois seria perfeitamente possível supor que o neofeudalismo tenha sido “uma consequência necessária da decisão de realizar o cultivo da propriedade em condições de escassez de trabalho” (idem). Assim, voltam à tona o caráter sui generis da América Latina (quando em comparação com o centro do capitalismo) e o debate sobre circulação e modo de produção, o que torna o bloco particularmente interessante aos que se dedicam ao estudo do desenvolvimento do capitalismo.
A parte IV, “Revoluções e revolucionários”, também se acorda parcialmente com o modo de análise que enfoca as relações exteriores. Nesse sentido, o capítulo sobre a Revolução Mexicana de 1910 relativiza a autonomia política do México ao cotejar cada movimento dos protagonistas revolucionários (e contrarrevolucionários) com as ações e reações dos Estados Unidos. A Revolução Cubana é tratada em termos similares. Já o capítulo sobre o imperialismo norte-americano e seu papel na América Latina, ao que tudo indica, foi construído com base em resenhas escritas por Hobsbawm. Como algumas das obras resenhadas foram feitas por autores simpáticos à hegemonia norte-americana, o capítulo tem o efeito curioso de demonstrar como o poderio dos Estados Unidos nos vários âmbitos — econômico, político, cultural — parecia limitado a esses autores (e também a Hobsbawm), que escreviam em fins dos anos 1960. Afinal, naquele momento, diversos países “(Cuba, Chile, Peru, Bolívia) se inclinaram para a esquerda” (p. 358). Desse modo, “[as] perspectivas para a esquerda na década de 1970 [eram] animadoras” (p. 359).
Há pouco, no livro, sobre como Hobsbawm reagiu ao desmentido dessas perspectivas, com possível exceção para o caso do Chile. Pois além de um capítulo escrito em 1971 sobre os limites e possibilidades do regime de Salvador Allende, há uma denúncia apaixonada do golpe de 1973 e do assassinato do presidente: “[…] a esquerda subestimou o medo e ódio da direita e a facilidade com que homens e mulheres bem-vestidos adquirem um gosto por sangue”. (p. 449). No entanto, afinal são poucas as páginas dedicadas à análise do fracasso do regime terminado em 1973.
A parte III, “Camponeses”, trata de tópicos aos quais Hobsbawm se dedicou profissionalmente. A meu ver, é nesta parte que o intelecto poderoso do autor mais salta aos olhos. Isso se verifica na sua erudição, na cautela com que faz a teorização sobre grupos sociais não europeus, na análise comparativa que resulta ao fim, e na espontaneidade com que todos esses elementos são articulados. A inflexão geral do bloco III é a da resposta que os camponeses dão quando pressionados pela modernização. Assim sendo, são descritas a mobilização camponesa e o fenômeno de sua politização, com todos os percalços característicos. Aqui, a influência do marxismo é mais sensível, principalmente no que diz respeito à teoria da história. Por exemplo, lemos que o banditismo social “parece ocorrer em todos os tipos de sociedade humana que se encontram entre a fase evolutiva da organização tribal […] e a sociedade capitalista e industrial moderna” (p. 155). Desse modo, o autor se preocupa não só com os fatos históricos, mas também com um modelo explicativo no qual esses fatos possam se encaixar. Estamos diante, portanto, de um caso prático que encarna a teoria seguida pelo historiador: em Mundos do trabalho, por exemplo, ele coloca que para nos ocuparmos com “as questões realmente significativas sobre as transformações históricas da sociedade”, devemos ter subjacente “um modelo teórico de sociedades e de transformações” (Hobsbawm, 2005, p. 35).
Ainda sobre a parte III, vale mencionar um capítulo curioso sobre insurreições camponesas, que segue a mesma fórmula de emparelhar teoria e história e cujas questões colocadas (e deixadas em aberto) são bastante instigantes: por que as insurreições são mais frequentes neste ou naquele lugar? O que leva a que determinada região seja palco de movimentos preferencialmente compostos por marginais, foras da lei, e bandidos, enquanto que outras mobilizam comunidades e se baseiam em costumes comuns? Apesar de intrigantes, o fato de esse capítulo (de nove páginas) ser um ensaio inacabado faz com que essas questões fiquem formuladas de maneira algo incompleta. Aqui, por oposição às demais obras de Hobsbawm, faz falta o apreço que o autor tinha por exemplos e casos reais. Além disso, a parte final do capítulo é composta basicamente por aforismos, o que pode torná-lo menos proveitoso para os não iniciados, que talvez não disponham de referências que os permitam ter uma boa interlocução com o texto.
Creio ser possível afirmar que o centro de gravidade da parte III está ligado à teorização que o “velho” Lukács (2003) faz sobre a consciência de classe — teorização, aliás, que é pano de fundo para todo o livro. Assim, os casos de movimentos camponeses no Peru e na Colômbia, por exemplo, são descritos de forma minuciosa e cuidadosa, mas o que de fato surpreende é a concatenação que Hobsbawm faz daquilo que é quase a histoire événementielle desses movimentos com a teoria de Lukács sobre como o capitalismo viabiliza a consciência de classe e o potencial revolucionário. É por este caminho, por exemplo, que é descrito o processo por meio do qual o movimento camponês de La Convención, no Peru, foi potencializado pelos comunistas locais.
Outras temáticas tais como a do subdesenvolvimento e a da teoria da dependência também são bastante mobilizadas, principalmente num bloco de capítulos sobre o regime militar peruano. A leitura que Hobsbawm faz da tentativa de modernização empreendida pelos generais peruanos nos anos 1960 parece bastante sólida, sobretudo ao apontar como a dinâmica do poder mundial limita a margem de manobra dos países periféricos. É nesses termos, e com certa similaridade às propostas de Florestan Fernandes (1987) e Carlos Nelson Coutinho (1985), que Hobsbawm afirma que a inexistência de uma burguesia nacional peruana acabou por largar no colo do Estado (isto é, dos militares) o protagonismo da transformação social.
Em suma, o motivo que permeia todo o texto é o mesmo que parece ter guiado o autor em sua vida profissional, qual seja, o da interpretação — com vistas à transformação — do mundo. E o que é mais, o historiador interpreta a região com atenção suficiente para não incorrer em erros tais como fazer uso de categorias analíticas estranhas à realidade latino-americana. Está atento, portanto, às “ideias fora do lugar”.
Finalmente, ocorre que os escritos de Hobsbawm das décadas de 1960 e 1970, período de grande agitação na América Latina, carregam uma centelha de otimismo, ao passo que suas reflexões posteriores são mais sóbrias e contam com o que o próprio autor chamou de “a arma final do historiador, a retrovisão” (Hobsbawm, 2013, p. 249). Foi a retrovisão que o permitiu ver que a “era das utopias” nesse continente foi, enfim, menos permissiva à transformação social do que dava a impressão de ser. As forças conservadoras, internas e externas, se mostraram mais vigorosas. No entanto, a passagem cronológica de um tom esperançoso a outro quase melancólico não deve encobrir o profundo senso de indignação que o autor exibe frente à injustiça social. É esse o sentimento que prevalece no livro e que, mais do que servir como desculpa para a resignação, age como estímulo à análise e à mobilização.
Referências bibliográficas
Coutinho, C. N. As categorias de Gramsci e a realidade brasileira. In: Coutinho, C. N; Nogueira, M. A. (orgs.). Gramsci e a América Latina. Rio se Janeiro: Paz e Terra, 1985.
Fernandes, F. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaios de interpretação sociológica. Rio de Janeiro, Guanabara, 1987.
Hobsbawm, E. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
_____. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Lukács, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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