MARKUS, G. Marxismo e Antropologia. O Conceito de “essência humana” na filosofia de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
Por Filipe Leite Pinheiro
Primeiro livro de György Márkus (1934-2016) internacionalmente conhecido, Marxismo e Antropologia: o conceito de ‘essência humana’ na filosofia de Marx, teve duas edições húngaras (1965; 1972), foi traduzido para o espanhol (1974), japonês (1975), italiano (1978), inglês (1978), alemão (1981), e recentemente reeditado pela editora alemã Modem-Verlag (2014).
Entre o público brasileiro György Márkus notabilizou-se por Teoria do Conhecimento no Jovem Marx (1974), coletânea de textos nos quais emprega os Manuscritos Econômico-filosóficos para debater problemas fundamentais da teoria do conhecimento. Em uma nota de rodapé ao final do prefácio desta edição, Carlos Nelson Coutinho anuncia que Marxismo e Antropologia seria a próxima obra de Márkus traduzida pela Editora Paz e Terra, que tinha como propósito publicar as obras dos integrantes da Escola de Budapeste. Tal expressão foi cunhada por György Lukács em uma carta ao suplemento literário do The Times, pouco antes de sua morte, em 1971, para referir-se ao grupo de intelectuais engajados no movimento de renovação do marxismo húngaro ao longo dos anos 1960; seriam eles: Agnes Heller, Ferenc Fehér, Mihály Vadja e György Márkus. Contudo, Marxismo e Antropologia somente seria editado no Brasil quarenta anos depois.
A despeito da conhecida passagem de Pensamento Vivido na qual Lukács (1999, p. 143) afirma que Márkus não foi seu aluno, enfatizando a aproximação intelectual tardia de ambos, Coutinho (1974, p. 13) observa que Márkus se apropria não apenas da problemática juvenil de Lukács, mas também de muitas das soluções empregadas em sua maturidade. Se esta problemática já figura no ensaio de Márkus sobre jovem Marx, redigido em 1958, em Marxismo e Antropologia, publicado em 1965, aquelas soluções tomam forma particular. Tal posicionamento reaparece no artigo intitulado “Discussões e tendências na filosofia marxista”, redigido em 1968 e publicado como último capítulo de Teoria do Conhecimento no Jovem Marx.
Marxismo e Antropologia traz como tese principal a centralidade do conceito de essência humana para o pensamento de Marx. Segundo seu autor, a desconexão com este conceito conduz à antinomias insolúveis e coloca a necessidade de esclarecer sua relação com a totalidade do corpus textual de Marx, considerando a antropologia filosófica de Marx “não a partir da expressão mais tradicional, ‘concepção filosófico-antropológica’, mas sim como a ‘ontologia do ser social marxiana’, expressão cunhada por György Lukács” (p. 18). Nesse sentido, é perceptível que a antropologia filosófica apresentada por Márkus se afasta de perspectivas positivistas e cientificistas da disciplina, referindo-se principalmente à análise histórica do conceito de essência humana, do mesmo modo que Lukács em sua maturidade.
Influenciado por seu mentor, Márkus interpreta o pensamento de Marx como uma resposta à grande questão filosófica das essências, expressando um tertium datur para o dilema de Parmênides e Heráclito. Um mérito da contribuição do autor é estender esta crítica aos correlatos destes posicionamentos filosóficos no campo marxista: no primeiro caso, a essência humana é interpretada como um atributo fixo e a-histórico derivado antropologicamente de uma verdadeira natureza do ser humano, como no moralismo de Erich Fromm (1962); no segundo caso, a essência humana é totalmente dissolvida nas estruturas sociais, como no relativismo histórico de Louis Althusser (2015). Ao longo do ensaio Márkus defende uma definição móvel e histórica do conceito de essência humana que permite compreender dialeticamente a relação entre o agir humano e as estruturas sociais.
Em sua defesa da centralidade do conceito de essência humana, Márkus remete principalmente aos Manuscritos Econômico-filosóficos, mas também mobiliza o conjunto de textos à época disponíveis para embasar a defesa de seu ponto de vista. Dentre suas referências figuram tanto textos da juventude de Marx, como a Crítica da filosofia do direito de Hegel, quanto textos da maturidade, como os Grundrisse e os três livros de O Capital.
No primeiro ensaio, “O Homem como Ser Natural Universal”, Márkus começa se perguntando “O que é homem nos termos de Marx?”. O autor observa que, na totalidade de seus textos, Marx caracteriza o ser humano como ser sensorial, físico, natural, trazido à existência por processos naturais e não conscientes; um ser que faz parte da natureza, e é resultado da evolução das espécies. Como ser natural vivo, o ser humano é finito e limitado quanto às capacidades e necessidades, e dirige seus impulsos para objetos a ele exteriores, indispensáveis à efetivação de suas forças essenciais; ou seja, são seres dependentes e condicionados.
Enquanto atividade reprodutiva humana, o trabalho difere da atividade reprodutiva dos animais pelo aumento das forças produtivas disponíveis e pela aquisição de novas capacidades. A atividade reprodutiva animal limita-se a consumir objetos naturais, imediatamente apropriados da natureza, por conterem certas propriedades físico-químicas; de modo que sua meta e suas capacidades para atingi-lo são fixadas por sua constituição biológica, moldada pela evolução e, portanto, imutável no curto prazo. Por isso, há uma gama limitada de regularidades naturais em torno das quais o comportamento animal é orientado, caracterizando-se por um modo de viver inato. Já a atividade reprodutiva humana elabora objetos apropriados da natureza através da mediação do trabalho e submete as forças da natureza às suas necessidades, ao passo que também reproduz consigo certo grau de subordinação à natureza.
Incialmente pressupostos de toda a ação humana, no decurso do desenvolvimento social as necessidades humanas são socialmente produzidas, passando a orientar a produção. Esta inversão na relação entre necessidades e atividade produtiva reflete-se em uma tendência à crescente produção e elaboração social das necessidades. Produzem-se deste modo a gradual humanização das necessidades biológicas e originam-se necessidades puramente sociais, como a organização política, o Estado, a moral, a ciência, etc. A condição de ser natural capaz de produzir socialmente a sua própria natureza conduz à crescente universalização do ser humano no plano natural.
No segundo ensaio, “O Homem como ser Natural, Social e Consciente”, Márkus estende sua análise a outros dois planos, sociedade e consciência. O autor enfatiza o caráter social, comunal e genérico do ser humano, destacando que a essência humana somente se confirma no ato da produção, que, por sua vez, é um ato social na medida em que as próprias forças produtivas das quais dispõem os indivíduos possuem caráter social. Nesse sentido, a atividade do indivíduo produtor também é sempre uma atividade sócio-histórica, já que seus instrumentos de trabalho são eles mesmos resultado da apropriação de forças produtivas trazidas à existência pelas gerações pregressas.
O plano da consciência é outro atributo da atividade humana destacado por Márkus. Como atividade mediadora entre a necessidade e sua satisfação, o trabalho pressupõe a não-coincidência entre motivo da ação e seu objeto, o que torna necessário a ideação prévia. Ao elaborar o objeto natural de maneira consciente através do trabalho, o sujeito que trabalha se separa do objeto trabalhado, e se coloca diante dele como sujeito. Com a conclusão do processo de trabalho o resultado obtido no objeto trabalhado retroage sobre o plano previamente estabelecido pelo sujeito, viabilizando a subordinação de forças da natureza antes desconhecidas à satisfação de novas necessidades, e, consequentemente, uma prática cada vez mais consciente.
Márkus frisa que a consciência é sempre consciência de algo e tem sempre uma orientação objetual, ou seja, é sempre intencional. Se por um lado, a consciência aparece como reprodução mental da realidade a qual se refere, por outro, aparece como produção mental de objetivos, ideais e valores que se realizam por meio da atividade prática nesta realidade. Mesmo a consciência sensível não pode ser concebida como uma recepção passiva ou contemplativa, mas sim como uma forma de atividade produtiva, que envolve a seleção e apropriação de certos estímulos da natureza. Um último pressuposto importante da consciência é a linguagem e a comunicação, ou seja, algum grau de intersubjetividade e a possibilidade de expressar para os outros e para si mesmo algo que se deseja fazer.
No terceiro e último ensaio, “Essência humana e a História”, Márkus retoma os três aspectos principais do conceito de essência humana discutidos anteriormente, estendo-os e aprofundando-os. De acordo com a sua concepção, a essência do homem pode ser encontrada no trabalho, na sociabilidade e na consciência, assim como a universalidade que abarca e se manifesta em cada um destes momentos. Para o autor o ser humano é um ser natural, social e consciente, em processo de constante universalização. Tal definição repousa sobre uma caracterização móvel do conceito de substância, que o permite destacar esta universalização constante. Estes elementos presentes na reflexão de Márkus certamente são resultado de sua assimilação da contribuição madura de Lukács.
Referências bibliográficas
Althusser, L. Por Marx. Campinas: Editora Unicamp, 2015.
Coutinho, C. N. Prefácio. In: Márkus, G. Teoria do conhecimento no jovem Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
Fromm, E. O Conceito Marxista de Homem. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1962.
Lukács, G. Pensamento vivido: autobiografia em dialogo de György Lukács. Entrevista a István Eórsi e Ersébert Vezér. São Paulo/Viçosa: Estudos e Edições ad Hominem; Editora da UFV,1999.
Márkus, G. Teoria do conhecimento no jovem Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.