[Resenha a:] RUBBO, Deni Irineu Alfaro. Párias da Terra: o MST e a mundialização da luta camponesa. São Paulo: Alameda, 2016.


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Joana Salém Vasconcelos

O livro Párias da Terra: o MST e a mundialização da luta camponesa, do sociólogo Deni Rubbo, merece a atenção de todos aqueles que se interessam pela questão agrária brasileira e pela luta social latino-americana. Resultado de sua dissertação de mestrado em sociologia na Universidade de São Paulo, a pesquisa analisa a história das relações internacionais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no olhar de seus dirigentes, contextualizada, por um lado, dentro das dinâmicas da agricultura capitalista mundial entre as décadas de 1980 e 2000 e, por outro, no interior das polêmicas dos marxismos latino-americanos. Com um enfoque original, o estudo do internacionalismo do MST foi usado como chave-mestra para abrir uma série de problemas teóricos e políticos não resolvidos na realidade do capitalismo dependente, no âmbito da luta camponesa brasileira e dos dilemas das esquerdas latino-americanas. Nesse sentido, a pesquisa cumpriu um desafio crucial ao estabelecer um recorte metodologicamente bem definido, ao mesmo tempo capaz de acionar “grandes perguntas”, apresentando um horizonte histórico totalizante.

Diante da delicadeza política do tema “MST”, não é desimportante que Rubbo exponha, logo na Introdução, sua ressalva a trabalhos anteriores que incorreram em “panfletarismos”, seja aqueles que atacam sistematicamente o movimento, tanto quanto aqueles que são “enviesados pela instrumentalização política” (p. 39), tornando-se peças de autoproclamação militante. Reivindicando a máxima de Lukács segundo a qual “nenhuma ideologia é inocente”, Rubbo anuncia a intenção de produzir uma pesquisa com qualidade crítica, sem que para isso precisasse ocultar sua simpatia política com os sujeitos da luta camponesa. Ao recusar o mito da “imparcialidade” das ciências sociais, buscou equacionar o necessário distanciamento crítico com a inevitável tomada de posição, o que em si mesmo já configura outro mérito do trabalho.

Para cumprir seus objetivos, Rubbo realizou uma articulada problematização bibliográfica, além de debruçar-se sobre documentos e jornais do movimento e entrevistar nove de seus dirigentes. A trajetória internacionalista do MST é parte fundamental da história da questão agrária brasileira. Os laços de solidariedade internacional tecidos pelo movimento, cujos valores humanistas e as místicas herdaram da Teologia da Libertação, formaram uma rede orgânica de aliados, muitos dos quais estão atrelados à Via Campesina e à Coordenação Latino-Americana de Organizações do Campo (Cloc), cujas ações ainda incomodam o establishment do capitalismo agrário mundial. Sendo assim, o processo de internacionalização do MST apresenta-se, na voz das suas direções, como uma antítese da mundialização do agronegócio e da “revolução verde”. Nessa luta, Rubbo mostra que a “soberania alimentar” se tornou uma nova síntese programática em face do sequestro do termo “reforma agrária” pelo mercado de créditos rurais do Banco Mundial.[1]

O livro também é fundamental para compreensão do lugar do MST na história dos marxismos latino-americanos, clivados, segundo a análise de Michael Löwy reivindicada pelo autor, em pelo menos três correntes rivais (p. 58). A primeira, o “marxismo eurocêntrico”, predominou nos partidos comunistas de corte stalinista, que importaram acriticamente os modelos europeus da revolução, desconsiderando as peculiaridades do continente latino-americano. A segunda, face reversa do mesmo procedimento, seria o “excepcionalismo indo-americano”, que embora tenha nascido de setores anticapitalistas, rompem com o marxismo e enfatizam de maneira excessiva as particularidades locais, desprezando a importância da dinâmica mundial do capitalismo. Por fim, o autor identifica o “marxismo crítico”, cujo expoente seria José Carlos Mariátegui, adotado como referencial teórico prioritário. Mariátegui propõe um olhar dialético entre os problemas nacionais e a dinâmica do capitalismo internacional, engatados um ao outro de maneira indissociável e irredutível.

Nesse sentido, o livro apresenta um exercício bem costurado de identidade entre a opção teórico-metodológica do autor (o marxismo crítico de Mariátegui) e a trajetória internacionalista narrada pela direção do MST. Ou seja, se no plano teórico-metodológico o autor explica a história deste movimento social a partir dos nexos entre a questão agrária nacional e as tendências do capitalismo mundial, o discurso da direção do MST, por sua vez, aponta que a legitimidade mundial por eles conquistada se deve inescapavelmente à capacidade de leitura e intervenção sobre as idiossincrasias agrárias brasileiras. Segundo o autor, então, o MST teria realizado a experiência de articular dialeticamente os problemas locais dos “párias da terra” ao horizonte internacional da emancipação.

Como resultado deste “internacionalismo dialético” e de um momento histórico marcado pelo colapso da União Soviética, Rubbo mostra que o MST forjou-se na crítica do socialismo real e contribuiu para a emergência de novas narrativas e novos sujeitos protagonistas no seio da luta pela reforma agrária. Nesse sentido, o MST teria combatido, por um lado, a crença etapista na “revolução burguesa” brasileira e, por outro, o otimismo classista em relação à “revolução operária” latino-americana, inserindo, junto à Via Campesina, a prioridade da “resistência indígena, negra e popular” na campanha contra os 500 anos de dominação, em 1992. A ênfase na diversidade da cultura popular também explicaria a força conquistada perante suas bases e em escala internacional.

Em seu livro, Rubbo destaca que, ao contrário da lógica de obediência que hierarquizava os partidos comunistas das Internacionais, a Via Campesina e a CLOC se sustentariam pelo princípio da autonomia, pelo respeito às instâncias de decisão dos aliados e pela administração democrática das diferenças políticas (p. 234). Os documentos do MST indicam a valorização do aprendizado com as experiências dos povos amigos, componente importante na formação política e educação popular das suas bases, por meio das místicas, palestras, cursos, intercâmbios e nomes de assentamentos que enaltecem, sobretudo, a identidade latino-americana no contexto brasileiro[2].

Por fim, considerando que pesquisas relevantes são aquelas que suscitam novas perguntas, apontaremos quatro questões que, embora tenham sido tangenciadas pelo autor, nos parece que não receberam a devida atenção – talvez porque fragilizassem a hipótese central do “internacionalismo dialético” do MST. Em primeiro lugar, o autor concentra em três páginas (p. 266-269) a crítica de militantes que participaram da missão de solidariedade internacional no Haiti, iniciada em janeiro de 2009. Dois deles foram entrevistados e subscrevem a “Carta de Saída” assinada por 51 militantes em 2011. Entre as divergências se destaca o método hierarquizado da missão, pautado por ordens externas e pelo esvaziamento do poder de decisão in loco pelos militantes em campo – “a linha política já estava dada (…), nós éramos só tarefeiros”, alegou Vanderley, um dos dissidentes entrevistados (p. 267). Contudo qual seria o conteúdo político do que se apresentou, na narrativa de Rubbo, como uma “divergência de método”?

Apesar de parecer circunstancial e específica, essa polêmica nos parece tocar no desconfortável território de contradições ao qual o MST se lançou na sua relação com os governos petistas. O autor classifica como “internacionalismo bifronte” a prática do MST a partir de 2003, constatando que, às suas políticas internacionais de movimento, se agregou uma relação especial com o Estado brasileiro. Teria o conteúdo da querela no Haiti alguma relação com o comando brasileiro da controversa operação Minustah? Seria um momento em que o “internacionalismo dialético” foi substituído pela relação prioritária e acrítica do MST com o Estado? Teria o “internacionalismo bifronte” se concretizado como linha auxiliar de uma missão oficial? O livro nos deixa estas dúvidas.

A segunda questão é decorrente da primeira e permanece também dentro do escopo de objetivos do autor: como se organizou o financiamento do internacionalismo do MST? Para além das doações dos comitês de amigos do MST ao redor do mundo, das campanhas de cotização e trabalho militante, dos convênios com os governos de Cuba e Venezuela, quais outros recursos financeiros auxiliaram a construção das relações internacionais do MST? Qual seria, enfim, sua base material? O autor não se dedicou sistematicamente a esse problema, que nos parece decisivo para identificar as margens de independência política do movimento em relação ao Estado.

Um terceiro ponto seria a problematização dos limites da escolha metodológica em relação à “voz das direções”. Se por um lado a escolha delimitou um recorte consciente e representativo, por outro, deixou lacunas que poderiam ser desenvolvidas com uma abertura para a “escuta das bases”. Entre eles, o mapeamento empírico da diversidade e complexidade de posicionamentos políticos no interior do movimento, que poderia enriquecer a análise das suas contradições. Um quarto e último ponto seria a ausência de uma explicação sobre o funcionamento do grupo político Consulta Popular, que efetivamente compõe a maioria da direção do MST. Embora mencione o debate sobre a ambivalência de um movimento social que por vezes se comporta como partido (p. 87), ao omitir o papel da Consulta Popular nessa caracterização, a identificação dos sujeitos políticos do “internacionalismo bifronte” torna-se nebulosa. Isto é, ao escutar a “voz da direção”, talvez fosse interessante tornar mais minucioso o desenho dos agrupamentos da vanguarda.

Por fim, ao contrário de diminuir a relevância e profundidade do livro de Rubbo, as quatro problematizações levantadas indicam que se trata de uma “pesquisa viva”, tornando-se leitura indispensável para quem pretende conhecer a história do MST e atuar qualificadamente na luta social brasileira.

Referências bibliográficas

Bethel, L. O Brasil e a “ideia” de América Latina em perspectiva histórica. Estudos Históricos, v. 2, n. 44, p. 289-321, jul.-dez. 2009.

Boff, L. Brasil: a memória é subversiva. In: Nepomuceno, E. A memória de todos nós. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2015.

OEA. Carta de Punta del Este. Reunión Extraordinaria del Consejo Interamericano Económico y Social al Nivel Ministerial. Documentos Oficiales. Punta del Este, Uruguay, 5 -17 de ago. 1961.

Petras, J.; Laporte Jr., R. Cultivating Revolution. The United States and Agrarian Reform in Latin America. New York: Random House, 1971.

 

[1] Cabe uma ressalva: a captura do termo “reforma agrária” pelo mercado ocorreu ainda antes dos anos 1990. Em 1961, a Aliança Para o Progresso, comandada por órgãos de inteligência dos Estados Unidos, mimetizou o discurso das “reformas estruturais” na Carta de Punta del Este (oea, 1961). Era uma resposta dos Estados Unidos à revolução cubana, utilizando a CEPAL como “trampolim”. Desde então, o termo “reforma agrária” foi sendo recheado com os imperativos da modernização capitalista e encomendada pelos Estados Unidos para seus governos aliados na América Latina (Petras; Laporte Jr., 1971).

[2] Para explicar esse “latino-americanismo de esquerda”, seria interessante que o autor recorresse à hipótese de Leslie Bethel (2009) sobre as origens da distância identitária entre Brasil e América Latina, que remetem ao século XIX; tanto quanto ao amálgama mais recente, forjado no calor da resistência contra as ditaduras de segurança nacional e na memória comum de seus traumas (cf. Boff, 2015).