A revista Outubro completa vinte anos de existência no momento em que se ampliam, ao redor do mundo e no Brasil, os ataques à liberdade de pensamento e crítica.
“Rosa Luxemburgo e Marielle Franco foram assassinadas porque incomodavam”: entrevista com Michael Löwy
Imanência e tradutibilidade: Marx 1844-1845
Imanência e tradutibilidade: Marx 1844-1845
Resumo: A tradutibilidade das linguagens, tal como no pensamento de Antonio Gramsci, representa uma importante tentativa de renovação do marxismo e, para tal, enfrenta um “território” que Marx e Engels deixaram praticamente inexplorado. Apesar disso, é possível encontrar nos escritos de Marx de 1844-1845 uma rica reflexão a respeito da pluralidade de “vozes” como constitutiva da “essência humana”. Marx tinha por objetivo superar todas as variantes subalternas da atividade especulativa e, para isso, pesquisou a imanência à luz de uma “mundanidade” não absoluta, arbitrária, mas como “necessidade relativa”. A diversidade das línguas como ponto de partida do pensamento e ação críticos.
Palavras-chave: Karl Marx; Imanência; Pensamento político
Immanence and translatability: Marx 1844-1845
Abstract: The translatability of languages, as in the thought of Antonio Gramsci, represents an important attempt to renew Marxism and, to this end, faces a “territory” that Marx and Engels left practically unexplored. Nevertheless, one can find in Marx’s writings of 1844-1845 a rich reflection on the plurality of “voices” as constitutive of the “human essence”. Marx aimed at overcoming all the subaltern variants of speculative activity, and for this he investigated immanence in the light of a non-absolute, arbitrary “worldliness”, but as “relative necessity”. The diversity of languages as a starting point for critical thinking an action.
Keywords: Karl Marx; Immanence; Political Thought
Em busca do elo perdido: sobre a gênese dialética da categoria capital
Em busca do elo perdido: sobre a gênese dialética da categoria capital
Resumo: O presente artigo discute os elementos que conectam os capítulos III e IV do Livro I d’O capital, de Karl Marx, procurando estabelecer um nexo lógico explicativo em relação a transformação do dinheiro em capital. A partir de uma leitura sobre a forma dialética estabelecida pela exposição de Marx, os autores se valem do debate bibliográfico em torno da questão para, a partir dele, apontarem uma interpretação na qual haveria não apenas um método dialético exposto, mas também uma apreciação do caráter histórico ao problema. Dessa forma, a transição do dinheiro em capital seria marcada por uma transformação histórica, por vezes secundarizadas nas análises sobre a obra de Marx.
Palavras-chave: 1. O Capital;2. Dinheiro; 3. Capital
In search of the missing link: about the dialectical genesis of capital as category
Abstract: The following paper discusses the elements that connect both chapters III and IV from Book I of Karl Marx’s Das Kapital, trying to establish an explanatory logical nexus related to the transformation of money into capital. From a reading about the dialectical form established by Marx’s exposure, the authors draw on the bibliographic debate around this question to point out an interpretation in which Marx’s work not only presents a dialectical method, but also an appreciation over the historical feature of this problem. In this sense, the transition between money to capital would be characterized by a historical transformation, a feature underestimated in many analyses around Marx’s work.
Keywords: 1. Das Kapital; 2. Money; 3. Capital
A teoria das classes de Pierre Bourdieu
A teoria das classes de Pierre Bourdieu
Resumo: O presente artigo de Dylan Riley discute os limites de uma interpretação “bourdieusiana” nas ciências sociais a partir da noção de classe social. Ao apontar para as fragilidades do conceito no pensamento de Pierre Bourdieu, Riley assume que a força intelectual do sociólogo francês advém não do seu arcabouço teórico-conceitual, mas sim de uma identificação entre a intelectualidade universitária e o debate acerca da distinçãopromovido por Bourdieu. Dessa forma, ao invés de propor uma sociologia das classes populares, o que o pensamento “bourdieusiano” ofereceria seria um estudo auto-referencial sobre o papel dos intelectuais universitários.
Palavras-chave: 1. Pierre Bourdieu; 2. Distinção; 3. Classes sociais
Bourdieu’s Class Theory
Abstract: The following paper by Dylan Riley discusses the limits of a “bourdian” interpretation in the social sciences from the point of view of social classes. Pointing out the fragility of this concept in Pierre Bourdieu’s work, Riley assumes that his intellectual strength comes not from his conceptual and theoretical framework, but from the identification between intellectuals at the universities and Bourdieu’s debate about distinction. Instead of proposing a Sociology of popular classes, the “bourdian” thinking offers a self-referent study about the role of a college intellectuality.
Keywords: 1. Pierre Bourdieu; 2. Distinction; 3. Social Classes
Entendendo Bourdieu: destruição, recuperação e crítica
Entendendo Bourdieu: destruição, recuperação e crítica
Resumo: O presente artigo de Michael Burawoy discute o legado do pensamento sociológico de Pierre Bourdieu a partir de três diferentes chaves de leitura: a destruição, a recuperação e a crítica, tendo como fim a absorção de alguns dos principais elementos de uma sociologia do conhecimento em moldes “bourdieusianos”. Dessa forma, a partir da análise acerca da obra e do engajamento político de Bourdieu, Burawoy propõe que os marxistas compreendam o pensamento do sociólogo francês de forma crítica não para rechaça-lo ou aderi-lo, mas para avançar criticamente sobre ele.
Palavras-chave: 1. Bourdieu; 2. Sociologia do conhecimento; 3. Marxismo
Making sense of Bourdieu: demolition, recuperation and critique
Abstract: The following paper of Michael Burawoy discusses the legacy in the sociological thinking made by Pierre Bourdieu using three different keys to reading it: demolition, recuperation and critique, aiming to absorb some of its main features that define his sociology of knowledge. Thus, analyzing Bourdieu’s works and his engagement, Burawoy suggests that Marxists acknowledge his main ideas in a critical way, not intending to refute or adhere to it, but to critically advance over it.
Keywords: 1. Bourdieu; 2. Sociology of Knowledge; 3. Marxism
Classe e trabalho no feminino: um olhar sobre a história das mulheres trabalhadoras
Classe e trabalho no feminino: um olhar sobre a história das mulheres trabalhadoras
Resumo: Mulheres sempre trabalharam. Contudo, muitas vezes seus trabalhos dentro e fora de suas casas, foram historicamente sem visibilidade e socialmente desvalorizados. Este breve artigo busca trazer uma análise ampla sobre essa temática da história do trabalho e das mulheres, assim como fazer uma discussão sobre patriarcado, classe, trabalho produtivo e reprodutivo no Brasil e no mundo. Com isso, por meio de debates historiográficos, estatísticas, e demais registros sobre trabalho e mulheres busca-se refletir sobre a condição da classe trabalhadora e na precarização feminina, no passado, no desenvolver da época moderna e do modo de produção capitalista, e no presente, em tempos de crise, migração, mas também de aumento das resistências históricas contra o sexismo, racismo e o capitalismo. Por fim, observa-se também a necessidade da visão e da luta conjunta contra a exploração e opressões, que na atualidade não se desvinculam uma das outras.
Palavras-chave: 1. Mulheres; 2. Trabalho; 3. História
Class and work in the female: a look at history of working women
Abstract:Women have always worked. However, often their jobs inside and outside their homes have historically been socially invisible and devalued. This brief paper aims to bring a broad analysis on this theme of labor and Women’s History, as well as to make a discussion about patriarchy, class, productive and reproductive work in Brazil and in the world. Thus, by means of historiographical debates, statistics, and other records on labor and women, the target of the discussion is to reflect on the condition of the working class and the precariousness of women in the past in the development of the modern era and the capitalist mode of production, and in the present, in times of crisis, migration, but also of increase in the historical resistance against sexism, racism and capitalism. Finally, it is pointed out also the need for a vision and a joint struggle against exploitation and oppression, which today are not dissociated from each other.
Keywords: 1. Women; 2. Labor; 3. History
Raça, classe e marxismo
Raça, classe e marxismo
Resumo: Neste artigo, a autora desenvolve a conexão intrínseca entre racismo e capitalismo no interior do pensamento e política marxista. Em particular, discute as críticas comumente endereçadas aos marxistas de invisibilidade, reducionismo e desvalorização desta questão. Para tal, retoma a noção marxista de exploração, enxergando-a como conceito não apenas imediatamente econômico, mas também relacionado à produção de diversas desigualdades e privilégios.
Palavras-chave: 1. Raça; 2. Classe; 3. Marxismo
Race, Class and Marxism
Abstract: In this article, the author develops the intrinsic connection between racism and capitalism within Marxist thought and politics. In particular, it discusses the criticisms commonly addressed to Marxists of invisibility, reductionism, and devaluation of this issue. To do so, he takes up the Marxist notion of exploitation, seeing it as a concept not only immediately economic, but also related to the production of various inequalities and privileges.
Keywords: 1. Race; 2. Class; 3. Marxism
Gramsci, América, América Latina
Gramsci, América, América Latina
Resumo: Ao contrário do tema Americanismo, que recebeu extensivo tratamento nos Quaderni del carcerede Antonio Gramsci, pouca atenção seu autor deu aos conceitos de América e América Latina. O artigo reconstrói a reflexão gramsciana sobre estes dos conceitos, mostrando como eles são discutidos tendo como referencia a Europa. Com relação à América, o marxista sardo reflete a respeito da possibilidade desta expressar uma nova forma civilizacional na qual os intelectuais encontravam-se enraizados no mundo industrial. A América latina, por sua vez, constituiria um caso particular no qual uma Kulturkampfainda não teria se desenvolvido plenamente e predominariam intelectuais tradicionais vinculados ao clero e às castas militares. Por fim, o artigo mostra como para Gramsci a presença na América e na América Latina de grupos subalternos – negros e indígenas – cujas culturas não poderiam ser reduzidas de modo simples à cultura europeia tornavam mais complexa a investigação sobre a questão política dos intelectuais e a formação dos modernos Estados nacionais.
Palavras-chave: 1. Antonio Gramsci; 2. América; 3. América Latina
Gramsci, America, Latin America
Abstract: Unlike the Americanism theme, which received extensive treatment in the Quaderni del carcere, Antonio Gramsci expended little attention to the concepts of America and Latin America. The article reconstructs Gramsci’s reflection on these concepts, showing how they are discussed with reference to Europe. With regard to America, the Sardinian Marxist reflects on the possibility of expressing a new civilizational form in which the intellectuals were rooted in the industrial world. Latin America, in turn, would be a particular case in which a Kulturkampfwould not yet have developed fully and traditional intellectuals linked to clergy and military castes would predominate. Finally, the article shows how for Gramsci the presence in Latin America and Latin America of subaltern groups – blacks and Indians – whose cultures could not be simply reduced to European culture, configured the research on the political question of intellectuals in more complex field and reoriented to the study of the formation of modern nation-states.
Keywords:1. Antonio Gramsci; 2. America; 3. Latin America
Gramsci, Estado e sociedade civil: anjos, demônios ou lutas de classes?
Gramsci, Estado e sociedade civil: anjos, demônios ou lutas de classes?
Resumo: Como compreender os conflitos sociais quando a mudança de escala da acumulação capitalista envolve transformações brutais no conjunto da vida social? Esta é a questão que orienta a discussão do presente artigo que, a partir de noções gramscianas explora o problema da relação entre capitalismo, democracia e classes sociais no mundo contemporâneo.
Palavras-chave: 1. Hegemonia; 2. Capitalismo; 3. Democracia
Gramsci, State and Civil Society: angels, devils or class struggle?
Abstract: How to understand social conflicts when the scale change of capitalist accumulation involves brutal transformations in the whole of social life? This is the question that guides the discussion of this article, which, based on the writings of Antonio Gramsci, explores the problem of the relationship between capitalism, democracy and social classes in the contemporary world.
Keywords: 1. Hegemony; 2. Capitalism; 3. Democracy
A Internacional Comunista na interpretação dos trotskistas brasileiros
A Terceira Internacional na interpretação dos trotskistas brasileiros
Resumo: A Terceira Internacional surgiu como o partido da revolução mundial, como um centro apto a coordenar os diversos partidos comunistas na obra revolucionária dos países europeus e, como decorrência, nos países coloniais. Tratava-se de quebrar as fronteiras nacionalistas, consideradas como instrumentos da burguesia contra a classe trabalhadora. A ideia de uma revolução vitoriosa implicava, na visão revolucionária imperante, a união de todos os operários em uma pátria proletária. A adesão entusiasta dos comunistas à Internacional Comunista foi interrompida pela opção de Stálin pela revolução em um só país, razão primeira a explicar a dissidência dos trotskistas em relação aos ortodoxos do PCB. Este artigo analisa esse fato, em suas implicações ideológicas e práticas, à luz da interpretação registrada em documentos da lavra dos próprios dissidentes.
Palavras-chave: 1. Terceira Internacional; 2. Partido Comunista do Brasil; 3. Trotskismo
The Third International in the interpretation of Brazilian Trotskists
Abstract: The Third International emerged as the national revolution party, a center able to coordinate the diverse communist parties in the revolutionary work of the European countries and, as a consequence, in the colonial countries. It was about breaking the nationalist frontiers, considered as instruments of the upper class against the working class. The idea of a victorious revolution implicated, in the ruling revolutionary vision, the union of all the labor workers in a proletarian nation. The enthusiastic adhesion of the communists to the Communist International was interrupted by Stalin’s choice for the revolution in a single country, the first reason to explain the dissidence of the trotskists in relation to the PCB orthodox. This article analyzes this fact, in its practical and ideological implications, to the light of interpretation registered in documents which belonged to the dissidents themselves.
Keywords: 1. Third International; 2. Brazilian Communist Party; 3. Trotskyism
Trump e os brancos pobres: um neoliberal para chamar de seu
Trump e os brancos pobres: um neoliberal para chamar de seu
Resumo: Este artigo pretende discutir e dar um contorno mais claro à agenda política defendida e implementada por Donald Trump, a partir de uma breve análise da economia política inscrita nos projetos defendidos em campanha e na prática política efetivamente colocada em curso. Para além do discurso eloquente, constantemente atravessado por xenofobia e intolerância, nos concentraremos em demonstrar quais grupos sociais efetivamente obtêm vantagens e lucram com a agenda política defendida pelo presidente. Em vista da miríade de conceitos recentemente utilizados para caracterizar o governo de Trump, que vão do liberalismo conservador ao populismo de direita até o fascismo, entendemos que um esforço nesse sentido é fundamental de modo a evitarmos cair em definições esvaziadas ou panfletárias. Assim, buscaremos apresentar uma definição teórica para a política de Trump nos contornos do conceito de neoliberalismo. Nesse sentido, o empresário e showman, eleito presidente dos Estados Unidos, apesar de se apresentar como defensor carismático dos brancos pobres, representa de fato um projeto neoliberal altamente excludente, violento e racista.
Palavras-chave:1. Trump; 2. Neoliberalismo; 3. Conservadorismo
Trump and the poor white: a neoliberal to call yours
Abstract: This article intends to discuss and provide a clearer definition to Donald Trump’s political agenda from the analysis of the political economy subsumed in campaign projects and his actual political practice. Besides the eloquence in discourse, constantly impregnated by xenophobia and intolerance, the article focuses on demonstrating which social groups actually get advantages and profits from the president’s political agenda. In view of the myriad of concepts recently adopted to characterise Trump’s government, ranging from conservatism to right-wing populism until fascism, an effort in this direction seems fundamental, so we avoid falling into empty or pamphletary definitions. Thus we hold that neoliberalism would be a more appropriate political definition for Trump. Though proffering himself a charismatic defender of the white working class, business and showmanTrump in fact promotes and boosts a neoliberal project, highly excludent, violent and racist.
Keywords:1. Trump; 2. Neoliberalism; 3. Conservatism
[Resenha a:] SEGRILLO, Angelo. Karl Marx: uma biografia dialética. Curitiba: Prismas, 2018.
SEGRILLO, Angelo. Karl Marx: uma biografia dialética. Curitiba: Prismas, 2018.
Por Luccas Eduardo Maldonado
Na capa da edição brasileira do Dicionário do Pensamento Marxista, organizado por Tom Bottomore (2012), está estampado um grande busto de Karl Marx (1818-1883). A face do Mouro, apelido como seus amigos lhe invocavam, circunscreve-se de fotos de György Lukács, Lenin, Friedrich Engels, Herbert Marcuse, Stalin, Rosa Luxemburgo, Mao Zedong, Walter Benjamin, Trotski e Antonio Gramsci. Nessa imagem, existe uma espécie de síntese da disputa interpretativa que, em parte do século XIX e no século XX, ocorreu para com as obras de Marx. No novo milênio, parte desse debate perdeu o seu fôlego, muito devido a derrocada do “socialismo real” e as frustrações derivadas do stalinismo. Contudo, se a reflexão está posta em segundo plano então, a trajetória e a memória do Mouro coloca-se em evidência. Diversos trabalhos a respeito de sua vida foram publicados nos últimos anos e no bicentenário alguns anunciaram-se. A vida de Karl Marx vem sendo profundamente tangida, (re)estudada e disputada por tais obras. Nessa esteira, algo novo elaborou-se faz pouco tempo. Pela primeira vez um escritor brasileiro, Angelo Segrillo, dedicou-lhe um estudo biográfico, Karl Marx: uma biografia dialética (2018).
No Brasil, existe um considerável acervo de livros traduzidos sobre a vida e a obra de Karl Marx. A reunião é tão ampla, significativa e diversificada que não se mostra viável fazer uma ou um conjunto de menções uma vez que invariavelmente realizar-se-á uma série de omissões. A produção nacional, por sua vez, expressa-se de maneira distinta: há um arranjo considerável sobre o pensamento de Marx, porém a condição coloca-se distinta sobre a sua trajetória. Mais precisamente, não existia até então um estudo que englobasse integralmente, da concepção ao epitáfio, os caminhos do Mouro. Um exemplo misto, circunscrevendo ambos os aspectos, é Karl Marx: Vida e Obra de Leandro Konder (1974). Investida interessante e pioneira, mas que acaba dedicando-se muito pouco ao itinerário do prussiano, assim não o contemplando integralmente. Além disso, o livro encontra-se profundamente desatualizado, devido a sua data recuada de lançamento e a extensa bibliografia produzida nas últimas décadas.
Angelo Segrillo, atualmente docente de História Contemporânea no Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), é um expoente raro de pesquisador na academia brasileira. Possui uma formação cosmopolita como poucos, passando por instituições dos Estados Unidos da América, Rússia, Alemanha e Brasil; trajetória que lhe ofereceu um repertório de línguas vasto, característica importante nos seus trabalhos. Em certa medida, seu percurso acadêmico é uma expressão da Guerra Fria, pois, além de frequentar os principais Estados que configuravam essa situação internacional, sua especialidade temática centra-se na história soviética; inclusive, esteve no país dos sovietes fazendo seu mestrado quando o bloco estava a colapsar.
Até poucos anos atrás, a aproximação de Segrillo com Marx ocorria fundamentalmente de forma indireta; quer dizer, engajava-se em diversos assuntos conectados ao “socialismo real” que são tangentes ao pensador alemão. Todavia, começou a lançar alguns estudos sobre o pensador prussiano, a apresentar um movimento de aproximação, nos últimos tempos. Existem dois textos interessantes que mostram o caminhar rumo ao projeto biográfico. Um deles conjuga a sua tradicional especialidade temática, a Rússia, com as suas explorações sobre a trajetória do Mouro. Tal ato resultou na redação de um artigo que sintetiza as transformações das posições de Marx diante da Rússia (2017a). A outra investigação, por sua vez a mais importante, destina-se exclusivamente a trabalhar um aspecto do “problema” Karl Marx. Mais precisamente, o escrito realiza uma síntese bibliográfica, um état de l’art, de tudo que já foi elaborado, até aquele momento, sobre a vida de Marx, ou seja, uma revisão bibliográfica das biografias do autor d’O Capital (2017b).
Karl Marx: uma biografia dialética possui significativas ligações com o estudo biográfico publicado por Segrillo. Nesse texto, o docente da USP demonstra avant la lettre, do livro em si, os caminhos que iria percorrer até a concepção da obra. Como o título do trabalho resenhado anuncia, o objetivo do historiador não foi apresentar uma análise original dos caminhos de Marx, no entanto dispor um exame de sua vida a partir da comparação, do cotejo, das investigações já publicadas. Assim, inicialmente oferece o material central que dará sentido a sua finalidade, em artigo, e depois o faz, em brochura. Interessantemente o conceito de dialética, caro para os marxistas, não é manejado na sua acepção aparente, mas diferentemente do esperado remete ao método socrático de concepção do conhecimento: confronta-se premissas em busca de uma maiêutica.
Em grande medida, a biografia de Segrillo fundamenta-se na leitura comparativa das obras predecessoras, no entanto, essa não foi a sua matriz exclusiva, somente a sua faculté maitresse. Na verdade, existe um ajustamento entre as biografias anteriores e uma reunião de documentos que serve para guiar a sua narrativa. As fontes primárias manejadas pelo autor, um conhecedor da língua alemã, originam-se majoritariamente das duas empreitadas mais consolidadas de edição dos textos integrais de Karl Marx e Friedrich Engels: Marx-Engels-Gesamtausgabe(Obras Completas Marx e Engels, Mega), tanto o projeto do início do século XX (Mega1), quanto o que até hoje se entende (Mega2). Tais originais oferecem sentido a narrativa e, com o desenvolvimento da mesma, o pesquisador pondera sobre as posições e interpretações dos outros biógrafos, não obstante também utilize em menor medida outros grupos documentais, como as epistolas de Jenny e Eleanor Marx – respectivamente esposa e filha do pensador.
Karl Marx: uma biografia dialética é um estudo interessante. Possui méritos, principalmente no sentido de erudição do escritor, que dispõe em português diversos textos originalmente em alemão, porém concomitantemente preserva diversas limitações. A sua intenção dialética cumpre-se, todavia seria interessante uma realização mais aprofundada. Um debate que mediasse com maior fôlego os escritos biográficos pretéritos, a ponderar mais claramente e extensivamente as divergências, os conceitos e as opções feitas. Em suma, tencionar alocar os textos em quadros dentro do campo de estudos sobre a vida de Marx. A sua forma de organização e a sua escrita também poderiam ter sido melhor desenvolvidas. Preterir dispor os capítulos a partir dos espaços geográficos ocupados por Marx ao longo de sua vida gerou uma construção profundamente desproporcional, passagens ou muito grandes ou muito pequenas, que pode levar o leitor a perder-se.
A investida possui duas grandes virtudes: uma em si e outras além de si. A primeira refere-se à qualidade de divulgação do livro que, nolens volens, se tornou um título de introdução ao tema, um bom caminho preliminar para se confrontar o itinerário do Mouro, conquanto haja outros textos que igualmente possam fazê-lo. No entanto, não só, inclui-se também nesse sentido o seu caráter de pedra fundamental, isto é, o trabalho de Segrillo oferece as bases, mostra os caminhos, para aqueles que desejam desenvolver movimentos semelhantes. A segunda virtude encontra-se na posição que Karl Marx: uma biografia dialética ocupou nos estudos biográficos de Karl Marx. Nos últimos anos, um americano (Sperber, 2013), um inglês (Jones, 2016) e um alemão (Neffe, 2017) publicaram três importantes investigações sobre o pensador; mais recentemente, outro autor germânico anunciou que também prepara uma contribuição.[1]Configura-se, assim, uma disputa, que existe há muito mas parece estar intensificando-se nos últimos anos, sobre a vida e a memória de Karl Marx. Em certa medida, um brasileiro editar um trabalho nesse domínio mostra a presença e o posicionamento do interesse nacional diante dessa querela; contudo, não obstante o intento, há muito para ser feito ainda no sentido qualitativo.[2]
Referências bibliográficas
Bottomore, Tom (org.). Dicionário do pensamento marxista. 2º ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
Jones, Gareth Stedman. Karl Marx: Greatness and Illusion. Londres: Allen Lane, 2016.
Konder, Leandro. Karl Marx: Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1974.
Neffe, Jürgen. Marx: Der Unvollendete. München: C. Bertelsmann, 2017.
Segrillo, Angelo. Karl Marx: uma biografia dialética. Curitiba: Editora Prismas, 2018.
_____. Karl Marx e a Revolução Russa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 30, n. 61, p. 479-496, maio-agosto 2017a.
_____. Karl Marx: um balanço biográfico. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 43, n. 3, p. 601-611, setembro-dezembro 2017b.
Sperber, Jonathan. Karl Marx: A Nineteenth-Century Life. Nova York: Liveright Publishing Corporation, 2013.
Notas
[1]Trata-se de Michael Heinrich. Alemão, membro da Mega2, que promete para os próximos anos uma trilogia dedicada a Karl Marx.
[2]A sintética reflexão do último parágrafo devo fundamentalmente as missivas trocadas com Horacio Tarcus. As conclusões são de minha responsabilidade, porém, não as alcançaria sem esse diálogo. Por isso, agradeço-lhe.
[Resenha a:] MIGUEL, Luis Felipe. Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória. São Paulo: Boitempo, 2018.
MIGUEL, Luis Felipe. Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória. São Paulo: Boitempo, 2018.
Por Alexandre Marinho Pimenta
Não seria exagero qualificar o último livro de Luis Felipe Miguel como uma obra múltipla, em diversos sentidos e dimensões. Em primeiro lugar, por abrigar um conjunto variado de artigos e comunicações apresentados pelo autor, ao menos desde 2014, nos principais e mais prestigiados espaços acadêmicos do país para sua área. Tais produções, por sua vez, contemplam uma impressionante gama de temáticas e campos teóricos, trabalhados e articulados exaustivamente pelo autor em competentes revisões de literatura junto a contribuições singulares. Hegemonia, democracia, violência, classe, gênero, formação de preferências e participação política, dentre outras categorias e conceitos, transitam na obra do autor formando um retratado multidimensional de seu objeto e preocupação central. Como em outros livros do autor[1], a sessão da bibliografia, por si só, indica-nos que não estamos diante de um produto da Ciência Política convencional: um profundo diálogo com a Filosofia Política e, sobretudo, com as Ciências Sociais como um todo se mostra um pressuposto para a produção teórica de Miguel.
Em segundo lugar, não se trata apenas de uma obra teórica, mas de um manifesto político sui generis. A intervenção de Miguel, invariavelmente, na atual conjuntura, ganha e ganhará uma conotação política. Afinal, estamos diante de um intelectual, professor emilitante, e como tal, cada vez mais exposto e perseguido pelo contexto de “desdemocratização” (p. 7) vivenciado pelo nosso país. Seus algozes vão desde patrulheiros da Escola Sem Partido que rondam as universidades e as redes sociais pelo país, até, mais recentemente, o dito Ministro da Educação, Mendonça Filho, que tentou censurar sua disciplina “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, na Universidade de Brasília. Disciplina esta, abre-se parênteses, que se multiplicou em várias de universidades pelo país e tem sofrido graus variados de perseguição política, midiática e judicial.
Todavia, não é apenas pela pessoa de Luis Felipe Miguel que o livro ganha um espectro político propriamente dito. Isso acontece pelo próprio conteúdo e pretensão da obra, cujo título expõe de maneira didática. Miguel fala e intervêm em nossa conjuntura sem fazê-lo diretamente (fora a introdução, as orelhas de Juarez Guimarães e, de certa forma, os dois últimos capítulos): é principalmente através de sua prática teórica que o autor apresenta uma colaboração ao trágico momento da “política emancipatória”. Prática esta, como dita acima, feita com muita maestria e nenhum amadorismo.
De maneira geral, Miguel, seguindo outros teóricos políticos contemporâneos de perspectiva crítica, apostana democracia. Isso quer dizer que, longe de se resumir a um engodo da burguesia para com as classes dominadas, a democracia compreende, teórica a praticamente, um território em disputa de importância significativa para as classes e grupos sociais dominados e oprimidos, resistentes aos sistemas que os subjulgam – capitalismo, patriarcado etc. Essa disputa, o autor tenta realizar através de uma crítica imanente, mobilizando o conceito radical e originário de democracia em contraponto à “democracia vigente” (p. 9) – gesto, a seu ver, semelhante ao que os dominados fizeram ao longo da história em sua resistência. E, paralelamente, privilegiando a dimensão conflituosa possibilitada pela noção de democracia, em oposição a formas políticas mais autoritárias. Dimensão esta, também “aproveitável”, eventualmente, para a resistência dos dominados [2].
Ao abrir a caixa-preta da democracia para a teoria crítica, Miguel caminha – e com razão – com muita cautela e até ceticismo em sua argumentação e comentários. Sabe muito bem que boa parte desta teoria não conseguiu equacionar de maneira coerente e eficiente o problema/paradoxo democrático. Seja por desconsiderá-lo por completo, como dito acima; ou por não enxergar os limites inerentes da institucionalidade vigente e do apego ao consenso (pensemos numa Mouffe ou num Habermas)… Ou seja, por afundar-se, em última instância, na prisão do liberalismo.
Assim, arriscaríamos dizer, um dos focos de crítica possíveis à sua proposta é o quanto o autor consegue se equilibrar nessa corda – e o quanto esta corda oferece à política emancipatória contemporânea um horizonte. Dito com palavras mais próximas as do autor, se se alcança êxito em introduzir “duplamente” (p. 10) a categoria dominação na teoria democrática: de um lado como reprodução de desigualdades e opressões, de outro como espaço de resistência e emancipação.
Ao se dirigir a uma nova teoria democrática, de característica fortemente “negativa”[3]e ainda embrionária, Miguel pretende enfrentar diretamente a desorientação e desorganização da esquerda contemporânea, marcada pela falência do socialismo real, da social-democracia e sofrendo com imensas dificuldades diante de transformações sociais e crises de representação e representatividade. Uma teoria democrática nova se faz necessária, por fim, para se escapar tanto do utopismo quanto do imediatismo, e conseguir conectar liberdade e igualdade num único projeto político (p. 222).
Bem, já dizia Kafka que a corda do caminho verdadeiro está estendida no chão, e se destina muito mais a fazer tropeçar do que servir de ponte. E a nosso ver a proposta de Miguel apresente lacunas e falhas consideráveis, sobretudo no tocante capitalismo, democracia e emancipação[4]. O autor demonstra ciência à incrível capacidade do capitalismo sobreviver e se reproduzir sob e com a democracia – só ver os capítulos 2 e 8. Mas, aparentemente, o contexto de desdemocratização neoliberal faz Miguel – assim como tantos outros – se aferrar à democracia como bandeira em si[5].
Com essa postura, por exemplo, não consegue se questionar até que ponto se chegou nessa esquina da história pelo fato da esquerda elevar a democracia como valor (no limite, “universal”) – inclusive no Brasil. Ou melhor, até que ponto os limites da social-democracia se relacionam por esta prestar tributo, centralmente, à democracia. No mesmo sentido, o contrassenso histórico de experiências históricas de democracia radical, como os soviets, terem surgidas não sob a defesa explícita da democracia, por exemplo, também é algo que não encaixa na proposta de Miguel. Há aqui algo que resiste à lógica formal e à casualidade simples.
Ao apostar na democracia para fugir do desprezo tático e do radicalismo, de um lado, e do apego à institucionalidade, de outro, ou seja, por razões justas e pertinentes, o autor, no entanto, coloca-se problemas que bloqueiam certas perspectivas emancipatórias, à primeira vista contraintuitivas[6]. Assim, as questões da tática e da estratégia não se equacionam bem: o risco é a paralisia prática ou a colonização via liberalismo, que está sempre à porta.
Junto a esse apego, há uma imensa abertura semântica do conceito de democracia, que, se serve bem à denúncia política, talvez não funcione tão bem na teórica e estrategicamente. Aliás, Miguel é o primeiro a afirmar que a democracia não é um terreno neutro: mas a plasticidade que este impõe a tal conceito, não acaba tornando-a um significante vazio? Ou ainda: recorrer à etimologia não imprime artificialmente valores à democracia, reforçando-a como uma ideologia por excelência? (Afinal, onde ela de fato existiu, na Grécia Antiga escravagista e sexista? Certamente não[7].)
Talvez uma das formas de Miguel sair do labirinto que entrou por boas razões fosse adjetivar a democracia na qual se está teorizando e lutando por, abandonando uma noção geral. Seria aquela democracia participativa? Radical? Socialista? Emancipatória?
Todavia, as palavras têm história[8]e não podemos negar que a discussão sobre superação do capitalismo e democracia, na esquerda, liga-se necessariamente a uma perspectiva oposta à noção de revolução – ver a II internacional, o kruschevismo, o eurocomunismo, etc. O termo democracia, no século XX, foi, na prática, um cavalo de Tróia do liberalismo para reforçar a esperança numa via pacífica, institucional, para fora do capitalismo. E sabemos onde isso foi parar: para ainda mais dentro do capitalismo, na sua gestão propriamente dita ou no retorno ao capitalismo, como na União Soviética e China. Hoje, na fascistização galopante[9]. Focar sobremaneira na democratização, na forma política, eclipsou a dimensão da força, necessária à desestruturação dos aparelhos de dominação e exploração capitalistas[10]. Assim como forçou nosso campo a falar sob a e na língua capitalista[11]: a democracia não foi exatamente o termo que se opôs ao socialismo na Guerra Fria? Não foi sob sua bandeira que a dominação se aprofundou e se realiza as mais brutais intervenções imperialistas? A unanimidade da democracia foi concomitante à derrota das tentativas de transição ao socialismo.
A dificuldade de dirimir confusões e contrabandos semânticos está ligada a um histórico político não tão simples de ser apagado. Ora, o marxismo possui o polêmico termo ditadura do proletariado. “A forma política[12]desta ditadura ou dominação de classe do proletariado é a ‘democracia social’ (Marx), a ‘democracia de massa’, a ‘democracia até o fim’ (Lênin)” (AlthusserapudMotta, 2014, p. 30). Ruim para a denúncia política, mas mais coerente teórica e estrategicamente? Por que a esquerda não pode retomá-lo e o atualizá-lo? Miguel já respondeu a essa pergunta de certa forma, em outra ocasião[13]. Mas achamos que a provocação vale a pena ser retomada, não de forma ingênua e nostálgica, e sim visando um balanço mais justo e coerente com nosso passado. E retomar questões já respondidas, de certa forma, é o destino daqueles que escolheram o destino difícil de não se acomodar – como o autor nos alerta na bela última página do livro.
Referências bibliográficas
Edelman, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016.
Lazagna, Angela. Lenin e a atualidade do princípio de ditadura do proletariado. Lutas Sociais, São Paulo, v. 21, p. 109-124, 2017.
Miguel,Luís Felipe.Democracia e representação:territórios em disputa. São Paulo: Unesp, 2014.
_____. Consenso e conflito na democracia contemporânea. São Paulo: Unesp, 2017.
_____. A democracia e a Rússia revolucionária. Blog da Boitempo, 28 de ago. 2017a. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/08/ 18/a-democracia-e-a-russia-revolucionaria/
Motta, Luiz Eduardo. A respeito da questão da democracia no marxismo (a polêmica entre Althusser e Poulantzas). Revista Brasileira de Ciência Políica, n. 13, p. 19-51, 2014.
Pimenta, Alexandre Marinho. Um novo esforço ou um esforço novo?Resenha do livro “Só mais um esforço” (2017), de Vladimir Safatle. Lavrapalavra, 2017. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2017/10/24/um-novo-esforco-ou-um-esforco-novo/.
Toledo, Caio Navarro de. A modernidade democrática da esquerda: adeus à revolução? Crítica Marxista, São Paulo: Brasiliense, v.1, n.1, p.27-38, 1994.
Zizek, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.
Notas
[1]Importante lembrar que o livro ora resenhado representa, segundo o próprio autor, “o ponto – provisório – de chegada de uma agenda de pesquisa teórica consubstanciado também em outros dois livros anteriores” (Miguel,2018, p. 9. Ver Miguel, 2014 e 2017). Nesse sentido, pontos aqui criticados certamente foram mais desenvolvidos em momentos anteriores, apenas sintetizados de forma muito sumária na introdução do último elemento da “trilogia”.
[2]Nesse ponto, Miguel se aproxima das recentes reflexões de Étienne Balibar sobre a “democratização da democracia” em contraposição ao cenário de desdemocratização neoliberal. O francês, infelizmente, está ausente entre as referências, junto com outras figuras de peso que rondam a temática, como Wendy Brown e Jaques Rancière. Aliás, esse último Balibar é bem distante do Balibar da década de 1970 que defendia o conceito de ditadura do proletariado no PCF e curiosamente esse debate setentista da teoria marxista do estado será o ponto de chegada de nossa breve polêmica com Miguel e sua aposta na democracia.
[3]“Já se sabe o que nãose quer, já se sabe contrao que se luta” (Miguel, 2018, p. 221).
[4]Ao não tratarmos da efetividade de sua aposta para combate de outras dominações, como a de gênero, nosso texto terá a aparência de defender a centralidade, única e exclusiva, da dimensão classista. Mas isso ocorre por conta do enfoque privilegiado.
[5]Inspiramo-nos aqui no trecho de Toledo: “para significativos setores da esquerda, a defesa da democracia não deve ter mais um valor tático, mas adquirir um valor estratégico, umvalor em si mesmo” (1994, p. 28).
[6]Rosa, em sua clássica polêmica contra Bernstein, dizia que a única forma de defender a democracia, mesmo a limitada e formal burguesa, era estar sob a bandeira do socialismo. A incompreensão dessa lógica não intuitiva (a democracia talvez seja apenas efeito colateral de outra cena/contradição social) une figuras um tanto díspares da esquerda nacional: Miguel e Safatle, cujo último livro também foi resenhado por mim, no site Lavrapalavra (Pimenta, 2017).
[7]Mais um curto-circuito curioso, contraintuitivo: ao tentar fugir do utopismo de noções como comunismo, não se estaria abraçando também outra utopia, sob um nome mais palatável e aparentemente mais realista? É nesse sentido que Zizek, um desafeto de Miguel, chama Piketty de utópico ao buscar que a democracia controle o capitalismo. Se ambas as palavras estão “corrompidas” (cada uma à sua maneira) porque abraçar uma e não à outra? Tentaremos uma resposta mais à frente.
[8]O mesmo poderíamos dizer sobre igualdade e liberdade (mais polêmico ainda: civilização). Ambas não estão em demasia ligadas à problemática liberal? Miguel não pretende, e aparentemente nem defende, uma “ruptura epistemológica” para sua teoria da democracia. Outra forma de criticar sua proposta seria analisar até que ponto essa postura possui efeitos deletérios à emancipação.
[9]Ou o que Badiou tem chamado de “fascismo democrático” diante de Trump.
[10]“Destruir o Estado burguês, para o substituir pelo Estado da classe operária e dos seus aliados, não é juntar o adjetivo ‘democrático’ a todos os aparelhos de Estado existentes,é mais do que uma operação formal e potencialmente reformista, é revolucionar na sua estrutura, na sua prática e ideologia os aparelhos de Estado existentes” (AlthusserapudMotta, 2014, p. 31). Diríamos também que superar os limites da social-democracia não é apenas trabalhar com um conceito mais amplo de democracia.
[11]E aprendemos com Edelman, citado por Miguel (2018, p. 41), que uma linguagem em comum nunca é apenas uma questão comunicacional, mas política. Traduzir (também) é dominar. Em A legalização da classe operária, vemos que a história jurídica dessa classe, de suas conquistas e direitos, é, no fundo, a história de uma derrota do ponto de vista estratégico. Ao impor sua linguagem à luta política operária, “a burguesia ‘apropriou-se’ da classe operária; impôs seu terreno, seu ponto de vista, seu direito” (Edelman, 2016, p. 112). Há debates, nesse sentido, em que nãose deve participar, “na medida em que essa participação, ainda que se pretenda crítica, significa que foram aceitas as coordenadas básicas da maneira como a ideologia dominante formula o problema” (Zizek, 2008, p. 346).
[12]O Balibar da década de 70, importante ressaltar, opõe-se à noção de ditadura do proletariado como forma política/de governo. Seria mais preciso falar, com Lenin, de período histórico contraditório, um novo estágio da luta de classes (Lazagna, 2018).
[13]Ver Miguel (2017),. Assim como se supõe que a posição de Miguel frente ao que estamos chamando debate setentista se aproxima muito mais ao “último” Poulantzas em seu “sofisticado” “compromisso democrático” (Miguel, 2018, p. 56) ao enfocar a internalização da luta de classes nos aparelhos de estado burguês. Um bom apanhado sobre esse debate, incluindo a posição de Poulantzas, está presente no artigo já citado de Motta (2014). E uma boa pergunta para atualizar o debate seria: após o advento do neoliberalismo, essa permeabilidade aumentou ou diminuiu?
[Resenha :] PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.
PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.
Por Thais Hoshika
Não há dúvidas de que Evguiéni B. Pachukanis (1891-1937) foi o filósofo que mais avançou na crítica marxista do direito, responsável por nos oferecer as bases sobre as quais o fenômeno jurídico deve ser analisado ao identificar a intrínseca relação entre forma jurídica e forma mercadoria e, portanto, a especificidade do direito no capitalismo.
Sua essencial contribuição à construção de uma teoria materialista do direito condensa-se em sua obra central, qual seja, Teoria geral do direito e marxismo, na qual o autor propõe, utilizando-se do método da economia política[1], a identificação das categorias abstratas fundamentais à compreensão do direito enquanto conjunto de relações sociais específicas.
Tal como Marx inicia a análise da economia política pela mercadoria, Pachukanis inicia o estudo do direito pela categoria do sujeito de direito que, diferente do que tratam as doutrinas jurídicas tradicionais, não é uma categoria jurídica construída arbitrariamente pela mente do jurista, mas é constitutivo não apenas à própria forma jurídica como também é essencial para a própria realização da esfera da circulação mercantil, tornando esta possível.
A identificação da forma sujeito como o átomo indivisível da forma jurídica e sua relação espelhada para com a forma mercadoria é, sem dúvidas, a maior contribuição do autor. A mercadoria tem como característica a qualidade de ser um meio de troca com relação a outra mercadoria devido ao seu substrato social em comum: o trabalho abstrato. Da mesma forma que “um produto do trabalho adquire propriedade de mercadoria e se torna o portador de um valor”, para que a esfera da circulação mercantil se realize é necessário que os homens, reificados, adquiram “um valor de sujeito de direito” (p. 120), na qual desaparecem as particularidades e relações concretas de exploração entre eles, e estes se tornam portadores de direitos, livres proprietários privados de mercadorias equivalentes, cujo exercício dessa igualdade e liberdade formal decorre dessa capacidade volitiva que todo sujeito de direito tem de dispor de sua mercadoria.
Uma das importantes implicações decorrentes da identificação da categoria do sujeito de direito e seu papel fundamental na reprodução do circuito estruturante da sociabilidade capitalista é o fato de que a forma jurídica não provém diretamente de uma relação de dominação consciente de classe ainda que, evidentemente, não se possa excluir esse fator, mas cujo substrato reside nas próprias relações jurídicas contratuais de troca de mercadorias, pertencentes a uma dinâmica de dominação abstrata que independe da vontade dos indivíduos.
Nesse sentido, a forma de dominação capitalista tem um desenvolvimento “natural” próprio, em que a subjetividade dos indivíduos é capturada e estes são constituídos como sujeitos de direito pelas suas condições reais de existência, naturalizando as formas sociais do capitalismo que, devido à sua forma de universalidade, fazem com que o caráter socialmente determinado dessas formas adquiram um caráter de eternidade (ver Edelman, 1976).
Assim, uma vez apontado que a especificidade do direito no capitalismo é determinada pela forma jurídica, é fundamental a crítica tecida por Pachukanis com relação ao conteúdo material da regulamentação jurídica. Não excluindo a importância de se analisar o conteúdo das normas jurídicas, o autor ressalta que a própria forma dessa regulamentação deve ser compreendida como uma forma historicamente determinada, posto que, apesar de não dependerem de seu conteúdo concreto, as categorias jurídicas fundamentais podem ser deduzidas logicamente das normas de direito positivo.
Caso a análise recaia apenas sobre o conteúdo das normas jurídicas, o resultado é a procura nesse conteúdo das necessidades materiais e interesses de determinada classe. Em outras palavras, é o mesmo que dizer que o direito é o direito burguês porque o conteúdo de suas normas favorece a classe capitalista, que não se trata de uma proposição falsa, mas que não alcança a especificidade do fenômeno jurídico e abarca em si a possibilidade de uma compreensão transhistórica da forma jurídica[2], além de ser insuficiente para explicar a existência de normas jurídicas cujo conteúdo (a princípio) é contrário aos interesses imediatos da classe burguesa.
Outra importante contribuição à crítica marxista do direito é a articulação que o autor tem ao tratar da relação jurídica e norma jurídica em que, ao contrário da doutrina jurídica juspositivista, que compreende a norma jurídica como a pressuposição lógica e necessária da relação jurídica, Pachukanis aponta para o verdadeiro fundamento do direito, identificando não apenas a primazia da relação jurídica como também e, essencialmente, desvelando as bases reais e a especificidade dessa relação que, em sua forma mais básica, corresponde aos próprios atos de troca da esfera da circulação mercantil. O fenômeno jurídico, portanto, não pode ser reduzido nem esgota-se na norma objetiva, pois considerada isoladamente a norma não passa de uma abstração vazia.
Mas não é apenas isso.
Devido ao seu substrato histórico real, as abstrações jurídicas fundamentais à compreensão do direito não podem ser analisadas de outra maneira senão enquanto inseridas na complexidade das relações sociais, das quais são expressão.
Daí a necessidade em se destacar especialmente as comparações que Pachukanis faz entre as categorias jurídicas e as categorias econômicas da crítica à economia política (cf. Marx, 2017) porque elas revelam a importância da relação entre norma (direito objetivo) e relação jurídica (direito subjetivo).[3]
Assim, o autor afirma que compreender o direito a partir de sua decomposição em direito objetivo e direito subjetivo é tão importante quanto a decomposição da mercadoria em valor de uso e valor de troca (duplo caráter da mercadoria). Nesse sentido, a norma jurídica considerada isoladamente não passa de uma fórmula vazia justamente por configurar uma categoria que pode pertencer a qualquer momento histórico. Entretanto, e é isso que faz com que a norma jurídica adquira determinação histórica, ela não pode ser compreendida sem a relação jurídica dos sujeitos encarnados na esfera da circulação mercantil.
Além disso, e isto é essencial para a compreensão da maneira como os juristas tradicionais apreendem o fenômeno jurídico e como o direito aparece, o autor demonstra que a convicção de que a norma jurídica engendra a relação jurídica e o sujeito é tão equivocada como afirmar que o valor apenas “se manifesta nas flutuações de preço (p. 101). Disto é possível extrair a seguinte proposição: de que, da mesma maneira que o preço é a forma como o valor aparece, a norma jurídica é a forma como a relação jurídica e o sujeito aparecem, afirmando-o e velando-o ao mesmo tempo.
A principal dificuldade no estudo do direito está no fato de que, ao passarmos das categorias abstratas para a análise da totalidade concreta, o direito aparece com todas as suas determinações, havendo uma conformação entre forma política estatal e forma jurídica, na medida em que o direito aparece como a própria norma jurídica proveniente de regulamentação estatal. Posto isso, não há como tratarmos do direito sem uma compreensão materialista do Estado e da especificidade da forma política[4]pois, não obstante o fato de que o poder político estatal confere “clareza e estabilidade à estrutura jurídica”, ela “não cria seus pressupostos” (p. 104).
Em uma sociabilidade cuja forma de mediação é a mercadoria, composta por sujeitos dotados de subjetividade jurídica para dispor livremente de si, não pode o Estado apresentar-se como aparelho pertencente a determinada classe, pois o próprio Estado é permeado por essa mesma subjetividade jurídica, se apresentando como um poder público, ou seja, “um poder que não pertence a ninguém em particular, que está acima de todos e que se endereça a todos (p. 148), o poder de uma norma objetiva imparcial” (p. 146).
Expostos os principais aspectos dos cinco primeiros capítulos, a obra conta com mais dois capítulos, a saber, “direito e moral” e “direito e violação do direito”. No primeiro, Pachukanis descreve a forma ética da sociabilidade capitalista, apresentando a ligação estreita entre sujeito moral e sujeito de direito. No último, por sua vez, o autor trata do direito e processo penal que, uma vez determinado pela forma jurídica, assume a própria forma da equivalência dos atos de troca mercantil.
De fato, a advertência inicial feita por Pachukanis na obra aqui discutida revela-se perfeitamente cabível diante do fato de que o autor não esgotou todos os problemas relacionados à teoria geral do direito[5]. Mas ele nos deixou um legado ainda mais importante, que é justamente a identificação das categorias estruturais para a compreensão do fenômeno jurídico e que, portanto, constitui a base teórica incontornável para a crítica marxista do direito.
Referências bibliográficas
Edelman, Bernard. O direito captado pela fotografia. Coimbra: Centelha, 1976.
Kashiura, Celso N. Dialética e forma jurídica. In: O discreto charme do direito burguês. Campinas: Unicamp, 2009.
Marx, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
_____. O Capital. São Paulo, Boitempo, 2017.
Mascaro, Alysson L. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.
Naves, Marcio B. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2008.
Notas
[1]Para o primeiro capítulo remete-se ao método da economia política, ver Karl Marx (2008).
[2]A respeito da relação entre forma e conteúdo, ver Celso N. Kashiura (2009).
[3]Em um plano mais concreto, o mesmo problema em se compreender o direito objetivo/ subjetivo transpõe-se para a relação entre direito público/privado.
[4]Sobre o conceito de “conformação” e para uma leitura completa da forma política estatal, ver Alysson L. Mascaro (2013).
[5]Para uma leitura indispensável da obra de Pachukanis, ver Marcio B. Naves (2008).