Ler e estudar Gramsci no Novo Milênio


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Ler e estudar Gramsci no novo milênio

Resumo: Antonio Gramsci experimentou diretamente e sob um enorme custo pessoal o colapso da democracia e o estabelecimento de um estado absoluto na Itália. Seu pensamento e sua obra, neste sentido, precisam ser pensados no encontro do marxismo com a defesa da democracia. Para levar adiante hoje este tipo de crítica política que encontramos em Gramsci, é preciso conduzir a mesma pesquisa paciente e minuciosa que ele realizou – e ainda mais, já que muitas mudanças se deram ao longo das décadas nos meios de disseminação da informação e nas infinitas e mais intricadas formas nas quais esta é manipulada, condicionada financeiramente, disposta tecnologicamente, etc. Trata-se de um desafio de maior urgência pois, como Gramsci assinalou, a luta pelos organismos da opinião pública não é nada menos que a luta pelo monopólio do poder que, como estamos vendo em muitos países, incluindo os Estados Unidos, ameaça hoje a própria democracia.

Palavras-chave: 1. Antonio Gramsci; 2. Marxismo; 3. Democracia

Reading and studying Gramsci in the New Millenium

Abstract: Antonio Gramsci experienced directly and at enormous personal cost the collapse of democracy and the establishment of an absolute state in Italy. His thinking and his work in this sense need to be thought of in the encounter of Marxism with the defense of democracy. To carry out this type of political criticism that we find in Gramsci today, it is necessary to conduct the same patient and thorough research that he carried out – and still more, since many changes have occurred throughout the decades in the means of information dissemination and in the infinites and more intricate ways in which it is manipulated, financially conditioned, technologically disposed, and so on. This is a more urgent challenge because, as Gramsci pointed out, the struggle for the bodies of public opinion is nothing less than the struggle for the monopoly of power which, as we are seeing in many countries, including the United States, threatens today the democracy itself.

Keywords: 1. Antonio Gramsci; 2. Marxism; 3. Democracy

Capital, força de trabalho e relações de gênero


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Capital, força de trabalho e relações de gênero

Resumo: O presente texto de Susan Ferguson e David McNally é uma introdução do livro de Lise Vogel, Marxismo e opressão às mulheres, publicado originalmente em 1983 e reeditada em 2013. Trata-se de um ensaio no qual Ferguson e McNally destacam a importância da obra de Vogel e a situam perante uma bibliografia cada vez mais extensa que vem discutindo as relações entre opressões de gênero e o capitalismo no âmbito do marxismo.

Palavras-chave: 1. Opressão de gênero; 2. Marxismo; 3. Feminismo

Capital, Labor-Power and Gender-Relations

Abstract: The following paper, from Susan Ferguson and David McNally, is the introduction of Lise Vogel’s book, Marxism and the Oppression of Women, originally published in 1983 and reedited in 2013. It’s an essay in which Ferguson and McNally point out the importance of Vogel’s work and situate it in front of a bibliography that grows larger and larger, discussing the relations between gender oppressions and capitalism in the scope of Marxism.

Keywords: 1. Gender oppression; 2. Marxism; 3. Feminism

Gênero e trabalho precário em uma perspectiva histórica


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Gênero e trabalho precário em uma perspectiva histórica

Resumo: Este artigo investiga a relação histórica entre gênero e trabalho precário, analisando um estudo de caso das mulheres italianas na segunda metade do século XX. Uma abordagem histórica de gênero mostra que diferentes modos de produção e condições de trabalho estavam presentes simultaneamente em sociedades fordistas e pós-fordistas, e que as mulheres, assim como os migrantes, experimentaram um nível significativo de precariedade, mesmo na chamada era dourada do século XX. A divisão sexual do trabalho e a discriminação baseada em sexo parecem estar no coração da natureza de gênero do trabalho precário, um nexo de longa duração que tem caracterizado sociedades industriais e pós-industriais, como o artigo mostra, em relação ao caso italiano. Ao abordar a questão da precariedade do trabalho como um fenômeno multifacetado, afirma-se que a difusão do trabalho precário na segunda metade do século XX foi diretamente afetada pelas lutas trabalhistas e das mulheres, por um lado, e pelo papel do Estado e da política em definir e redefinir as relações de trabalho na lei, por outro.

Palavras-chave: 1. Fordismo; 2. Pós-fordismo; 3. Trabalho das mulheres

Gender and precarious work in a historical perspective

Abstract: This paper investigates the historical relationship between gender and precarious work, analyzing a case study of Italian women in the 2nd half of the 20th century. Such historical approach of gender shows us that different forms of production and labor conditions were present simultaneously in Fordist and Post-Fordist societies, and that women, such as immigrants, experienced a significative level of precarity, even in the so-called Golden Age of the 20th century. The sexual division of labor and the discrimination based on sex appears to be in the core of the gender nature of the precarious work, a nexus of long duration that has featured industrial and post-industrial societies, as this paper shows about the Italian case. Handling with the question of the precarity of labor as a multifaceted phenomenon, we affirm that the spread of precarious work in the 2nd half of the 20th century was directly affected by working and female struggles by one hand, and by the role of the State and politics defining the working relations in the law, on the other hand.

Keywords: 1. Fordism; 2. Post-Fordism; 3. Women labor

Manufacturing Consent revisitado: uma nova aproximação


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Manufacturing Consent revisitado: uma nova aproximação

Resumo: Este artigo apresenta brevemente a obra Manufacturing Consent, publicada em 1979. Nela, o autor descreve a maneira em que a direção de Allis Chalmers organizava a disciplina do trabalho operário mediante a coerção e o consentimento, em particular por meio do estabelecimento de quotas de produção, o que suscitava uma espécie de jogo social entre os operários. Realiza também uma revisão do método etnográfico usado naquele momento, criticando-o e propondo substituí-lo pelo “estudo de caso ampliado”, que leva em conta o contexto do trabalho, incluindo as trajetórias dos atores, as transformações dos mercados e do papel do Estado, sem esquecer os elementos espaço-temporais como fatores de mudança. Aproveita a ocasião para revisar as publicações recentes que tem abarcado entre os seus objetos de investigação os temas de gênero, trabalho doméstico, trabalhadores migrantes, serviços, sindicalismo, etc. Este artigo sugere que as lutas estariam se descolando da exploração para a comoditização (commodification), acompanhada pelos conflitos relacionados ao consumismo; estes indicariam o início de uma nova era de mobilizações transnacionais que tem alcançado da Europa do Leste à Ásia. A partir disso, o autor retoma as teses de Polanyi, desenvolvidas em A Grande Transformação, atualizando-as com o advento da terceira onda ultraliberal que estende a comoditização à natureza (terra, água e ar) e ao conhecimento, frente ao qual os movimentos do tipo occupy seriam as primeiras respostas.

Palavras-chaves: 1. Consentimento; 2. Coerção; 3. Movimento operário

Manufacturing Consent revisited: a new aproximation

Abstract: The article briefly presents Manufacturing Consent, a 1979 publication directed by Allis Chalmer that deals with the way in which work discipline for manual labourers is organised through coercion and consent, based in particular on the establishment of production quota creating a kind of “game of making out” between works. The author reviews the ethnographic method that had been used at the time. He criticises this approach and suggests a replacement based on an “extended case method” that incorporates the work context and includes actors’ trajectories as well as transformations in markets and the role of the state – without forgetting spatial-temporal factors of change. This becomes an opportunity for the author to review recent publications that have expanded the object of research to include gender, domestic labour, migrant workers, services, trade unions, etc. The article suggests that issues pertaining to the battles witnessed in these domains range from exploitation to commodification and include consumerism. All of these bones of contention have inaugurated a new era of transnational mobilisation extending from Eastern Europe to Asia and inspiring the author to reproduce Polanyi’s Great Transformation thesis, after updating it to include the recent advent of a third, ultra-liberal wave that broadens commodification to include nature (earth, water and air) and knowledge. The first manifestation of this change is the Occupy movement.

Keywords: 1. Consent ; 2. Coercion ; 3. Workers’ movement

O trabalho em perspectiva global: um novo começo


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O trabalho em perspectiva global: um novo começo

Resumo: Nesse breve artigo, procura-se elaborar uma síntese sobre o que ele considera ser um momento derradeiro de enfraquecimento do movimento operário tradicional em âmbito global. Considerando uma série de estatísticas e olhando numa escala mundial, o autor propõe uma reflexão que aponta tanto para a decadência de instituições tradicionais da classe trabalhadora ao mesmo tempo que destaca a força que o trabalho persiste tendo no mundo globalizado. Dessa tensão aponta-se justamente para a formação de um novo movimento dos trabalhadores, menos eurocêntrico, mais atento à questões de raça, gênero, religião e etnia formando-se na esteira dos novos conflitos entre capital e trabalho.

Palavras-chave: 1. Movimento dos trabalhadores; 2. Trabalho global; 3. Partidos políticos

Labor in a global perspective: a new beginning

Abstract: In this short paper, is intended to elaborate a synthesis about what he considers to be a dramatic moment of enfeeblement of the traditional labour movement in a global scale. Considering a series of statistics and looking a worldwide perspective, the author purposes a reflection that points out both the decadence of traditional working-class institutions, and, at the same time, the continuing strength of labour in the globalized world. In this tension, is emphasized the making of a new labour movement, less Eurocentric and more awaken to questions about race, gender, religion and ethnicity, forming itself in the wake of new conflicts of capital and labour.

Keywords: 1. Labour Movement; 2. Global Labour; 3. Political Parties

Brecht e o realismo da resistência ao fascismo


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As visões de Simone Machard: Brecht e o realismo da resistência ao fascismo

Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar uma leitura do texto da peça As visões de Simone Machard (1941-1943, 1957) do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Trata-se de uma análise textual materialista – isto é, um procedimento crítico que busca determinar as relações entre forma literária e processo social – cujo intuito é descobrir de quais maneiras acontece a seleção e a organização de elementos estéticos para representar os meandros subterrâneos de um momento decisivo da história europeia no século XX e que não raramente foi falsificado pela historiografia oficial: a invasão alemã do território francês e a subsequente implementação de um governo colaboracionista com os nazistas.

Palavras-chave: 1. Bertolt Brecht; 2. Realismo; 3. Fascismo

The visions of Simone Machard: Brecht and the realism of the resistance against fascism

Abstract: This article aims to present a reading of the German playwright Bertolt Brecht’s text The visions of Simone Machard (1941-1943, 1957). This is a materialist textual analysis – that is, a critical procedure that seeks to determine the relations between literary form and social process – whose objective is the revelation of which ways the aesthetic elements are selected and organized in order to represent the subterranean meanderings of a decisive moment of European History in the twentieth century and that not rarely was falsified by official historiography: the German invasion of the French territory and the subsequent implementation of a govern of cooperation with the Nazi.

Keywords: 1. Bertolt Brecht; 2. Realism; 3. Fascism

Podemos escrever uma história dos comunistas brasileiros?


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Podemos escrever uma história dos comunistas brasileiros?

Resumo: A historiografia dos comunistas e sobre os comunistas foi sempre um fértil terreno de disputas teóricas e metodológicas da historiografia do Brasil e do mundo. Partindo da polêmica desenvolvida pelo historiador estadunidense Kevin Murphy contra o britânico Eric Hobsbawm em torno das possibilidades de se escrever uma história da Revolução Russa, faço uma discussão sobre o estado atual dos debates historiográficos acerca do tema dos comunistas no Brasil, buscando apreender as dimensões em que a história e a memória se imbricam.

Palavras-chave: 1. Comunistas; 2. Historiografia; 3. Memória

Can we write a history of Brazilian Communists?

Abstract: The historiography of the communists and about the communists has always been a fertile ground for theoretical and methodological disputes in the historiography of Brazil and the world. From the controversy developed by American historian Kevin Murphy against British Eric Hobsbawm around the possibilities of writing a history of the Russian Revolution, I intend to make a discussion about the current state of historiographical debates on the subject of the communists in Brazil, seeking to understand the dimensions in that history and memory overlap themselves.

Keywords: 1. Communists; 2. Historiography; 3. Memory

Amor e morte: transformando sexualidades na Rússia (1914-1922)


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Amor e morte: transformando sexualidades na Rússia (1914-1922)

Resumo: O presente artigo explora uma face pouco conhecida da Revolução Russa: o seu impacto sobre a sexualidade. Para tal, discute criticamente a chamada “revolução sexual” que acompanhou as transformações políticas e econômicas de 1917, particularmente as mudanças na ordem do amor e do sexo na sociedade russa com o colapso das instituições patriarcais a partir da Primeira Guerra Mundial. Desta maneira, reconstrói as transformações no campo da sexualidade no curso da revolução e guerra civil na Rússia e o surgimento de uma nova gama de tensões conforme os bolcheviques instituíam um novo Estado na sociedade russa.

Palavras-chave: 1. Sexualidade; 2. Primeira Guerra Mundial; 3. Revolução Russa

Love and Death: Transforming Sexualities in Russia (1914-1922)

Abstract: The article explores a little known face of the Russian Revolution: its impact on sexuality. To do so, it critically discusses the so-called “sexual revolution” that accompanied the political and economic transformations of 1917, particularly the changes in the order of love and sex in Russian society with the collapse of patriarchal institutions after World War I. In this way, it reconstructs the transformations in the field of sexuality in the course of the revolution and civil war in Russia and the emergence of a new range of tensions as the Bolsheviks founded a new state in the Russian society.

Keywords: 1. Sexuality; 2. First World War; 3. Russian Revolution

[Resenha a:] LOSURDO, Domenico. Guerra e Revolução: o mundo um século após Outubro de 1917. São Paulo: Boitempo, 2017.


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Demian Melo

Nesse ano do centenário da Revolução Russa, a editora Boitempo disponibilizou ao público brasileiro uma das mais importantes contribuições à crítica da historiografia revisionista das revoluções, Guerra e Revolução, do filósofo italiano Domenico Losurdo. O livro foi originalmente publicado em 1996 com o título de Il revisionismo storico: problemi e miti (Losurdo, 1996), mas recebeu em inglês uma nova edição ampliada em 2015 (Id., 2015), sendo esta a base da edição brasileira, onde constam dois novos capítulos.

Autor conhecido do público brasileiro, a contribuição de Losurdo à crítica da historiografia revisionista ainda é pouco visitada em nosso país. É verdade que o debate propriamente sobre o revisionismo não nos é inédito, como, por exemplo, as críticas demolidoras de Eric Hobsbawm e Michel Vovelle ao revisionismo de François Furet sobre a Revolução Francesa, foi publicada no Brasil em 1996 (Hobsbawm, 1996; Vovelle, 2004), ou antes a controvérsia da historiografia alemã (Historikerstreit) da década de 1980 em torno à obra de Ernst Nolte sobre o nazismo.[1] Contudo, e aí está a riqueza da crítica de Losurdo, este autor realiza a articulação dessas duas controvérsias historiográficas num grande debate, qual seja, aquele sobre a revolução socialista no século XX, permitindo identificar as enormes afinidades e circulação entre diferentes contextos revisionistas.

Além disso, Losurdo articula com desenvoltura a historiografia revisionista com o pensamento de autores neoliberais, assinalando as inúmeras semelhanças entre as proposições de Furet, Ernst Nolte, Richard Pipes e autores como Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek. No caso de Pipes, o detrator da Revolução Russa, a menção à von Mises é direta: a atração dos intelectuais pelo anticapitalismo seria um sintoma de sua pouca relevância, mas perigosamente estaria por trás de grandes barbáries no século XX. No entanto, são mais sutis as concordâncias de Furet com Hayek, por exemplo, embora possa ser observada estreita concordância quanto à responsabilização dos “sonhos de engenharia social” no que toca ao surgimento de regimes despóticos, seja no final do século XVIII na França, ou na Rússia soviética do século XX. Nesse terreno, revisionistas e neoliberais se irmanam no esteio burkeano.[2] Em certa medida, Losurdo aponta também para as diferenças entre os historiadores revisionistas e os autores neoliberais, já que estes últimos costumam ser mais extravagantes no espancamento das evidencias empíricas. Trata-se assim de uma obra em que o autor é capaz de localizar o lugar da historiografia revisionista no interior do debate intelectual contemporâneo.

Uma ideia permite-lhe articular os revisionismos: o propósito de liquidar a tradição revolucionária, ou melhor, o ciclo revolucionário que vai de 1789 a 1917. O resultado são desabamentos em cadeia, ou um “efeito dominó”,[3] em que a desqualificação de eventos como as revoluções francesa e russa colocam em xeque a compreensão de outros processos históricos e percepções políticas contemporâneos: “Sem a Revolução Francesa não se pode compreender o Risorgimento italiano, claramente influenciado pelo movimento de 1848, pela experiência napoleônica e, antes ainda, pela Revolução Napolitana de 1799.” (Losurdo, 2017. p. 14)

Em suma, como entender a via da construção do Estado moderno italiano sem a compreensão do caso clássico de revolução burguesa ocorrido na França no final do século XVIII? A mesma observação pode ser dirigida ao resultado da desqualificação da Revolução Russa de 1917 representados na historiografia por Pipes, Nolte e Furet:

“Por sua vez, a queda do ‘mito’ do Outubro bolchevique lança uma sombra inevitável sobre a Resistencia antifascista que se desenvolveu internacionalmente, no âmbito da qual exerceram papel preponderante as forças políticas e sociais explicitamente influenciadas pelo bolchevismo. E uma sombra ainda mais inquietante acaba por envolver o movimento revolucionário anticolonial, desde suas origens estimulado e fortemente condicionado pela agitação e pela presença comunista. Autores que não professam explicitamente o revisionismo, embora possam ser nele enquadrados, saúdam com ardor o ‘revival do colonialismo’: junto ao país nascido da Revolução de Outubro, desmoronaram também suas ‘crenças ideológicas’ e o seu ‘cânone sagrado’ de que fazia parte o opúsculo de Lenin dedicado à denúncia do imperialismo” (Ibid., p. 15).

Losurdo não se limita a criticar a historiografia revisionista e traz contribuições importantes no que toca à dinâmica da revolução burguesa na Inglaterra, o país pioneiro do capitalismo. Seria necessário entender o processo de transição ao capitalismo como resultando de três revoluções: a Reforma anglicana, a Revolução de 1640 e a chamada Revolução Gloriosa de 1688 (Ibid., p. 54-57). Desta, desdobra-se a tese, já conhecida e enunciada por vários autores, da revolução americana em duas etapas (p. ex. Moore Jr., 1983), o processo da Revolução Americana (1776-1783) e a Guerra Civil (1861-1865) respectivamente, seguidas pelo período da chamada Reconstrução (1865-1876), como constitutivos da ordem social capitalista. A ampliação do escopo da análise numa perspectiva mais global poderia permitir a Losurdo entender como a própria expansão colonial inglesa e constituição do sistema escravista colonial foram partes fundamentais desta dinâmica de constituição do capitalismo (p. ex. Linebaugh; Rediker, 2008; Wood, 2014), mas sua ideia de articular os três processos como constitutivos da revolução burguesa na Inglaterra já é uma contribuição importante.

Além do debate sobre o revisionismo de Furet e Nolte, os dois capítulos incluídos na edição inglesa e brasileira tratam do revisionismo do imperialismo presente na obra de Niall Ferguson e uma resposta ao Livro negro do comunismo. Essas duas inclusões enriquecem a obra, pois se no caso do Livro negro há uma evidente relação com paradigma histórico anticomunista que é o cerne da corrente revisionista, no revisionismo do imperialismo evidencia-se uma das principais consequências éticas de tal interpretação ao inscrever no horizonte a normalização da barbárie.

Vejamos os contornos gerais do revisionismo histórico.

Reproduzindo uma espécie de leitura canônica do liberalismo conservador sobre 1789, Furet já desde a década de 1960 cunhou a noção de dèrapage [derrapagem] para se referir à fase jacobina da Revolução Francesa, o chamado período do Terror. No livro que escreveu com Denis Richet em 1965, Lá Revolution française os autores apresentaram a tese da dèrapage para distinguir entre um momento autêntico da revolução, restrita ao paradigma liberal (sistema constitucional, divisão de poderes, ainda sob o reinado Bourbon), e um momento sanguinário, onde o igualitarismo rousseauneano conduziu a revolução a “sair dos trilhos”, “derrapando”. Essa tese absolutamente teleológica se conclui com a noção de que o processo de liberalização da França já havia se iniciado sob o Ancien Régime, e que a Revolução devia ser entendida mais como uma espécie de “acidente”.

Em seu livro mais conhecido, Pensando a Revolução Francesa, Furet basicamente acusa a historiografia marxista de ter produzido um “catecismo revolucionário”, interditando o estudo imanente da Revolução de 1789 e associando-a indevidamente à Rússia de 1917 (Furet, 1989 [1978]). Tal é o tom do revisionismo furetiano. Além de resgatar a própria condenação contemporânea da Revolução, do whig irlandês Edmund Burke, pai do conservadorismo, Furet incorpora a leitura de autores como Benjamin Constant para a censura interna do processo revolucionário, onde são exorcizados os propósitos igualitaristas associados a obra de Rousseau e aos jacobinos. Ora, o interlocutor de Hayek que assinaria embaixo de tal revisionismo de Furet é Jacob Talmon, que vê em Rousseau uma espécie de esquizóide totalitário[4]. O que seria a última obra de Furet, O passado de uma ilusão (1995), senão o coroamento desse catecismo liberal escrito ao longo de décadas em livros como Pensando a Revolução Francesa (1989 [1978]) e o seu coorganizado (pretensioso e falho em inúmeros aspectos) Dicionário crítico da Revolução Francesa (1989)?[5]

Quanto a Nolte, sua leitura de que o extermínio de judeus praticado pelos nazistas seria uma “cópia” da “violência asiática” dos comunistas russos (Nolte, 1989) inscreve no horizonte a reabilitação do nazismo, ou sua normalização, como assinalou Habermas (1989). Nolte parte do pressuposto de que se poderia colocar em pé de igualdade uma ideologia que prega o extermínio de um povo (“raça”) dos judeus com a que prega o fim do capitalismo. Antes de mais nada, vale assinalar que o trabalho nolteano é calcado numa perspectiva que dá às ideias um papel demiurgo do real, e ainda que deva ser observado que as ideologias que conquistam o assentimento das massas devam ser tomadas como forças materiais, uma interpretação de qualquer fenômeno histórico baseada apenas nesse terreno será sempre unilateral. Mas, vejamos alguns dos problemas e fragilidades internas da argumentação nolteana.

Em primeiro lugar por sugerir que, à maneira da crítica burkeana à Revolução Francesa, se deva derivar a violência do regime stalinista do marxismo, um procedimento notadamente idealista e ideológico. Em segundo, há um problema quanto ao mérito da comparação entre uma proposta política que defende o fim de uma relação social (e por suposto da existência das classes sociais que lhe dá suporte) de um determinado modo de produção daquela que defendeu o extermínio físico dos judeus, ciganos e a escravidão dos eslavos.

A leitura de Nolte se baseia numa falácia. Afinal, a transposição da tese nolteana para o século XIX levaria a que o movimento pela abolição da escravatura fosse tomado como “exterminacionista” tal como o nazismo, embora fosse evidente que, pretendendo abolir uma relação social como a escravidão os abolicionistas pretendessem liquidar as classes sociais que lhes são subjacentes, senhores de escravos e os próprios escravos. Comparar a proposta de abolição do capital (e da escravidão assalariada que é seu corolário) com o extermínio de judeus é sem dúvida desonesto.

A verdade é que, para Losurdo, o próprio Terceiro Reich pode ser lido como “uma pavorosa onda contrarrevolucionária em relação àquela revolução abolicionista iniciada com o decreto da Convenção jacobina que põe fim à escravatura nas colônias francesas” (Losurdo, 2017, p. 17). Numa abordagem notadamente influenciada por Lukács de A destruição da razão (1959 [1953]), Losurdo entende o regime nazista como “um Antigo Regime ou uma Vedeia de dimensões internacionais” (Ibid., p. 18). Oposta a isso, ao buscar equivalência entre revolução e contrarrevolução, comunismo e nazismo, a operação revisionista de Nolte desqualifica a própria noção de revolução, e nisso se encontra no mesmo terreno de Furet.

A desqualificação do conceito de revolução encontra lugar importante na noção de totalitarismo (Loff, 2014). Recuperando a dinâmica interna da obra da filósofa alemã Hannah Arendt, cujo livro Origens do totalitarismo (1949) é um marco importante nessa discussão, Losurdo lembra como nesse livro a autora ainda fazia questão de diferenciar a ditadura revolucionária de Lenin do regime terrorista e totalitário de Stalin, distinção que irá desaparecer em sua obra posterior, Da Revolução (1963).[6] Nesse último livro, Arendt vai juntar-se definitivamente à onda revisionista.

Losurdo lembra também como, entre as determinações históricas do fenômeno totalitário presente na obra de 1949 o tema dos massacres coloniais é fundamental. Ora, é justamente o tema colonial e especialmente das lutas anticoloniais que são esquecidas e desqualificadas na historiografia revisionista, certamente pela dificuldade de nesse terreno dá continuidade à desqualificação da tradição revolucionária de 1789-1917. Como é possível, por exemplo, descolar a única revolução de escravos vitoriosa na história da humanidade, aquela realizada em São Domingos (atual Haiti) entre o final do XVIII e início do XIX, e a tradição igualitária jacobina? Como descolar o vasto movimento anticolonialista ocorrido na Ásia e na África no século XX sem contabilizar a influência do chamado à autodeterminação dos povos presentes na obra de Lenin, no apelo para a transformação da guerra imperialista (a Primeira Guerra Mundial) numa guerra civil revolucionária, nas primeiras resoluções da Internacional Comunista a respeito da questão colonial e do próprio papel da URSS no apoio aos movimentos de libertação colonial?

Como demonstra Losurdo, a comparação da questão colonial demole o propósito revisionista de igualar a União Soviética com o Terceiro Reich. A admiração que Hitler tinha para com o modelo do Império Colonial Britânico é em geral recalcado na historiografia revisionista.

“O modelo de Hitler se baseia no império colonial da Inglaterra, cuja função e missão civilizadora ele leva em altíssima consideração: ‘desde o fim do Sacro Império Romano não houve na Europa um Estado superior ao da Inglaterra’. No momento do triunfo do Eixo [1942], Hitler se mostra bastante preocupado com o ‘estado de anarquia que persistirá na Índia quando da partida dos ingleses’; a Ucrânia é o ‘novo Império das Índias’, e seus habitantes, assim como os da Europa oriental em geral, são insistentemente definidos como ‘indígenas’; o fürher adverte até mesmo os italianos para que se atenham ao modelo colonial inglês no Egito e na África” (Losurdo, 2017, p. 120).

Em Guerra e Revolução o autor mostra como figuras como Winston Churchill e Henry Ford vinculavam a Revolução soviética a uma suposta “conspiração judaica” (Ibid., p. 222). E embora seja um truísmo mencionar que ambos viram com bons olhos à ascensão de Mussolini e Hitler para “conter o comunismo”, e que Ford tenha sido financiador do movimento nazista, tais elementos são comumente negligenciados na historiografia revisionista que prefere encontrar uma suposta “raíz jacobina no comunismo e no fascismo”, como o fazem Furet, Nolte e consortes. Em uma palavra, o que é recalcado na historiografia revisionista é a relação do capitalismo com o fascismo. E como bem disse Horkheimer, “quem não quiser falar de capitalismo deverá também calar-se no que diz respeito ao fascismo”.

Guerra e Revolução vem em boa hora no debate intelectual brasileiro e pode ajudar a iluminar outros debates importantes entre historiadores brasileiros, particularmente aquele centrado nos estudos sobre a ditadura militar. Como campo de batalha, a memória sobre o século XX encontra-se sobre forte ofensiva no front revisionista. E como esse “inimigo não cessa de vencer”, será necessário “atiçar no passado a centelha da esperança”, pois “nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer” (Benjamin, 2012. p. 12).

Referências bibliográficas

Benjamin, W. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

Cardoso, C. F. História e poder: uma nova história política? In,: Cardoso, C. F.; Vainfas, R. (orgs.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

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Lukacs, G. El asalto a la Razón. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1959.

Nolte, E. O passado que não quer passar. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 25, p. 10-15, 1989.

_____. La Guerra Civil Europea 1917-1945. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1994.

Traverso, E. Interpretar el fascismo. Notas sobre George L. Mosse, Zeev Sternhell y Emilio Gentile. Ayer, n. 60, p. 227-258, 2005.

Vovelle, M. Combates pela Revolução Francesa. Bauru: Edusc, 2004.

Wolfreys. J. Twilight Revolution: François Furet and the Manufacturing of Consensus. In: Wolfreys, J.; Haynes, M. (orgs.). History and Revolution: Refuting Revisionism. Londres: Verso, 2007.

Wood, E. M. O império do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.

[1] Os dois artigos que iniciaram essa controvérsia, de Ernst Nolte e Jürgen Habermas, foram publicados no Brasil em Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 25, 1989.

[2] E não por acaso no início da década de 1982 Furet ajudou a fundar e foi presidente do think tank Foundation Saint-Simon, dedicado à defesa da economia de mercado, da crítica ao “totalitarismo” e defesa da democracia representativa.

[3] Como na tradução brasileira.

[4] Para uma crítica interessante por parte de um sofisticado autor liberal, ver Merquior (1990: 38).

[5] Outras críticas ao revisionismo de Furet que confluem nesse mesmo sentido pode ser lidas em Hobsbawm (1996), Vovelle (2004) e Wolfreys (2007). Sobre os problemas do Dicionário, o saudoso Ciro Flamarion Cardoso escreveu que Furet teve a “audácia de ignorar de todo a obra de Albert Soboul, um historiador marxista que, pelo contrário e sem dúvida alguma, era um especialista da Revolução Francesa com abundante pesquisa baseada em fontes primárias” (Cardoso, 2012. p. 48).

[6] Esse ponto é emblemático da fase da obra de Losurdo quando escreveu o livro aqui comentado, já que na década de 1990, no contexto de crise e tentativa de refundar o comunismo italiano, tinha uma lavra mais ecumênica em relação à tradição marxista, mencionando, por exemplo, a figura de Leon Trotsky em chave positiva, e pouca disposição de defender Stálin. Uma postura muito distante dessa encontra-se na obra posterior de Losurdo, culminando na hagiografia que escreveu sobre o ex-dirigente soviético. Nesta a liquidação do antigo grupo dirigente do partido bolchevique, entre os quais Trotsky e Bukharin, é referida como uma “terceira guerra civil”. Como bem disse um amigo virtuoso, uma “estranha guerra civil onde só um lado morre”. (Losurdo, 2010).

[Resenha a:] MARANHÃO, Carlos. Roberto Civita. O dono da banca. A vida e as ideias do editor da Veja e da Abril. SP, Companhia das Letras, 2016.


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Carla Luciana Silva

Uma pessoa que escreve na sua agenda “coitus interruptus: FHC phone call” tem a certeza de que esse registro vai figurar em sua biografia. Tem também um ego inflado, e uma grande satisfação na vida, aquela de quem tem certeza de que é influente e que, portanto, seus objetivos de vida foram atingidos. Ajudou a eleger o presidente. Recebe suas ligações e atende em qualquer momento, mesmo que isso interrompa seu ato sexual, afinal, as ligações sempre vêm atrás de um conselho. É isso que se depreende no livro: “os políticos e o presidente da República vivem me chamando” (Maranhão, 2016, p. 406).

À historiadora couberam páginas e páginas tentando mostrar essa simbiose entre o presidente e o editor, sempre com cuidados e senões (Silva, 2009), para agora, em poucas linhas, aparecer essa síntese brilhante: Roberto Civita amava FHC e tudo que ele representava no Brasil. Mas dito por um historiador, pode ser acusado de teoria da conspiração. Contado como uma bela biografia, talvez seja levado mais a sério como indício das relações entre imprensa e poder no Brasil.

A biografia de Roberto Civita nas suas primeiras dezenas de páginas parece que não vai passar de uma hagiografia. Elogios e admiração transparecem a todo momento. Mas o texto surpreende. Não que passe a ser crítico, mas por ser um trabalho bem feito, muito rico, de grande valor para qualquer pesquisador da história da imprensa brasileira recente. É uma leitura envolvente, sobretudo para quem conhece um pouco do universo sobre o qual a trajetória do biografado vai se desenvolver, a história da revista Veja, seus bastidores, suas relações de outra forma apenas suspeitas, são desvendadas na biografia. A relação de fundo é com a editora Abril. Mas a menina dos olhos, o centro de tudo, era a revista Veja. Civita recebia seu exemplar e rabiscava-o totalmente, apontando erros e discordâncias aos editores. O autor da biografia nos jura que ele não interferia nas matérias antes de serem publicadas, a não ser em situações excepcionais narradas no livro. Em todo caso, atesta que a linha editorial era acertada por Civita previamente, e era conferida sempre: “eu não mudo capa. Eu mudo diretor!” (Maranhão, 2016, p. 414) Essa frase de Civita é comprovada ao longo da obra.

Além disso, Civita não deixava lugar a dúvidas: “em termos de opinião, seguimos uma linha. Do contrário, faremos uma revista anódina, sem cor, sem posição. Os leitores sabem o que pensamos. Não preciso agradar a todo mundo” (Ibid., p. 420). É uma frase ambígua. Para quem se coloca sempre ao lado “dos fatos”, a questão de uma revista não é agradar, e sim, estar correta diante dos fatos. Mas, mais fundo que isso, aqui é a negação de ser portadora de um programa de ação, o que é contraditório ao indicar que a revista deve “ter posição”, e isso não é uma questão de gosto, e sim de identidade política.

Biografia oficial, cronológica, previa 37 entrevistas com a finalidade de formular uma autobiografia. Oito foram realizadas, veio a morte do biografado. O autor, que fora funcionário da Abril por mais de quarenta anos, teve que usar a sua experiência jornalística e contatos que só ele (como escolhido pelo biografado) teria para sair atrás da história. Sorte dos leitores que não vão ler o relato de alguém que se achava o melhor em tudo que fazia, e sim, o relato que está longe de ser imparcial, mas que permite na leitura o exercício da reflexão histórica.

Como alertara Bourdieu (2006), uma biografia não é uma história de vida, mas uma trajetória, relacionada com uma história. A primeira reflexão dessa história, que salta aos olhos, é que o mundo que envolveu na constituição da editora Abril foi um mundo de ricos. Milionários. Que não hesitavam em gastar milhões em férias com amigos no Caribe, ou mais de 200 mil em um jantar no restaurante Fasano. Riqueza inatingível para os mortais leitores, mas parcialmente compartilhada com seus executivos, diretores, sócios. Seria eventualmente jogada em pílulas através de matérias que mostravam e exaltavam a riqueza nas páginas das revistas do Grupo Abril. Tudo isso era necessário para criar um campo de proximidade e unidade entre eles. Uma unidade que pegava a todos, especialmente aqueles jornalistas que tinham uma origem de esquerda, mas que se renderiam ao pensamento da revista. Eurípedes Alcântara, um dos diretores da revista, diria que ele mesmo fora no passado militante de esquerda (chegou a editar a revista Teoria e Debate do PT), mas que era “a UDN dos trotskistas (…) já era conservador quando era de esquerda” (Maranhão, 2016. p. 416).

O autor não tem qualquer problema em identificar “um pensamento” de Veja, um conjunto restrito de ideias, a defesa do capitalismo inconteste, o anticomunismo, o “livre mercado” formavam a essência dessas ideias. Nas palavras de Civita, tudo isso se somava a um desejo de “fazer algo para o Brasil”. Diante disso, a tese da criação de um “sujeito Veja” (Silva, 2009) fica confirmada e atestada. Esse sujeito era o porta-voz das posições da grande empresa que se tornou a Editora Abril. O autor insiste ao longo da obra em uma autonomia editorial, mas absolutamente amarrada aos princípios do capitalismo. O anticomunismo não é um simples discurso, mas uma prática sistemática. Entretanto, há uma falta, provavelmente proposital, que é o silenciamento absoluto sobre as relações de classe, as relações de outros centros formuladores de políticas e pensamento por parte da editora Abril. Está certo que Roberto centralizava, mas é equívoco fazer supor que isso vem apenas de sua cabeça. O livro silencia sobre isso, mencionando a formação que ele teve ainda na década de 1950 no Estados Unidos. Isso pode ajudar a explicar um sentido de posição, mas não as alterações que vão sendo feitas ao longo das décadas para se readequar às mudanças do capitalismo no Brasil.

As relações sociais burguesas são amplas: Banco Safra, Banco Itaú, editora Abril, presidente FHC, sentados à mesa ou conversando ao telefone. Uma simbiose de quem sabe o que é gastar dinheiro. O espírito empreendedor, a criação do impossível arriscando o que não tinha, o homem que se faz, não sozinho, mas com seus parceiros de fé. Mas como formulam “o que fazer”? Sobre isso não há nada dito. Além disso, há, em profusão, conflitos intraclasse. São vários os conflitos com a Globo e com o Grupo Folha apontados na obra e que merecem maior estudos. Algumas dessas questões são sempre passıveis de desconfiança para os pesquisadores, mas podem ser facilmente atestadas por quem está lá, degustando seu uísque e seu iate no Mediterrâneo. Reuniões em Nova York ou Londres aparecem a todo momento, sempre que algo muito importante precise ser decidido. Qual o contexto das reuniões e quem é consultado? Não sabemos.

Faz sentido mostrar Roberto Civita como um norte de sua empresa. Ele agia como uma espécie de manual de redação, embora não houvesse um oficialmente. Definia princípios para os jornalistas, muito reverberados desde os cursos Abril de jornalismo, até a criação de um MBA na área.[1] Há uma passagem em destaque sobre “como se lidera o mercado de revista”, atribuída a Civita. Dentre os itens em destaque, ressalta-se “localize sua empresa em São Paulo, de preferência na década de 1950”, o que explicita que a Abril era um caso único, e também “conheça seu mercado”. Essa tecla é rebatida como a chave do sucesso, tanto que o subtítulo do livro é “o homem da banca”. Isso se deve ao fato de que ele dizia sempre que é necessário “conhecer o leitor”, saber o que ele queria, conversar com os jornaleiros, fazer pesquisas. Uma fórmula nova. Mas uma fórmula muito questionável, na medida em que nos parece que a segmentação sempre foi uma forma de ajudar a formar o próprio leitor (Silva, 2008), atingindo todos os aspectos da sua vida.

O livro mostra bem os momentos de crise da editora Abril. Inicialmente a crise gerada pela criação da revista Veja, que já era conhecida, mas é bem esmiuçada na obra. E posteriormente, nos anos 2000, quando o Grupo Abril investe na televisão, com a TVA, que quase levou a empresa à falência. No primeiro caso, insistência e perseverança; no segundo, choque de gestão, enxugamentos, remodelação estrutural, mantém-se o grupo. A narrativa nos permite perceber que os caminhos diante da reestruturação produtiva que se construía nos anos 1990 também atingiram em cheio o Grupo Abril. Há detalhes desse processo que tem a ver com o alto custo da tecnologia para a instalação de televisão paga, o que levou a uma dívida que beirava um bilhão de reais! (Maranhão, 2016, p. 377) A saída foi a venda de capital para grupos estrangeiros, processo esse que foi facilitado no final do Governo de Fernando Henrique Cardoso.

Um dos elementos bastante tocados na obra é a “troca de guarda” de Veja. Chave do sucesso da editora, sempre foi difícil lidar com o nome à frente da revista. Inicialmente, o problema se relaciona a Mino Carta, há uma vasta discussão sobre ele, uma espécie de história passada a limpo para responder ofensas que Mino teria feito ao longo da vida contra Roberto. Mas o mais interessante são os conflitos nos anos 1990. Primeiro o conflito envolvendo Mario Sergio Conti, que foi o diretor da época de maior alavanca da revista, aquela do impeachment de Fernando Collor. Conti em sua obra (Conti, 2012) insinua que a Veja recebia dinheiro para publicar matérias, o que evidentemente foi imperdoável para a imagem da editora. Entretanto, a troca de favores entre revista e anunciantes não é uma relação direta, ela mereceria um estudo mais aprofundado, com acesso a informações de bastidores que são difíceis ao historiador. Houve momento de discordância editorial, por exemplo, na Exame, quando foi dirigida por Rui Falcão, que viria a ser presidente do PT. Há um reconhecimento da existência de profissionais de esquerda. Alguns deles mudam de posição (seria o caso, mais à frente de Reinaldo Azevedo). Ao mudarem de posição, eles têm necessariamente que se adequar à linha editorial. Se não o fizerem, estão fora do projeto como ocorreria com Falcão. Se o fizerem, mostram como as ideias de direita seriam superiores. As revistas não são em nenhuma medida um “terreno em disputa”.

Algo curioso, que já fora percebido, mas que não tínhamos certeza das motivações, foi a opção durante o período de Tales Alvarenga à frente da revista por uma linha editorial mais “de serviço”, de comportamento, de “sociedade”: “a revista passou a publicar reportagens sobre problemas conjugais, o poder do cérebro, viagens à Disney, dietas, o crescimento dos carismáticos na Igreja católica e perfis de personagens como o apresentador Ratinho e o escritor Paulo Coelho” (Maranhão, 2016, p. 360). Foi um período apenas, logo substituído pela volta à política na capa da revista. Essa postura seria sempre necessária para manter o poder de Roberto Civita já que Veja era “um corpo à parte da empresa. A república da Veja”, (Ibid., p. 361) E por isso precisa “ter dentes”: “não pode ser um leão desdentado”, nas palavras do diretor que substituíra Tales, Eurípedes Alcântara. Mesmo assim, o livro atestava a fidelidade de Tales: “na redação era de conhecimento geral que ele, simpático ao liberalismo e ao sistema capitalista, não gostava da esquerda, defendia as privatizações do governo Fernando Henrique e se opunha à presença do Estado na economia” (Ibid., p. 359).

Do ponto de vista político, há um conflito claramente colocado. Já havíamos percebido que no primeiro momento do governo Lula a revista não fez oposição direta. Pelo contrário, apoiou as medidas econômicas que estavam sendo seguidas pelo PT da “Carta aos Brasileiros” (Silva, 2006). Maranhão mostra que “naquele primeiro ano, não foi dada nenhuma capa contra o presidente em início de mandato” (Maranhão, 2016, p. 412). É preciso que nos debrucemos mais sobre esse período mais recente, mas o livro aponta um caminho frutífero.

A ojeriza ao PT e seu projeto seria corporificada em uma figura, José Dirceu. A admiração teria levado a uma tentativa de acordo mais explícito? Maranhão relata que “em pelo menos uma ocasião, Roberto se impressionou com o que José Dirceu lhe expôs. ‘Ele fala como se fosse um de nós’, disse”. E em seguida o autor explicita as palavras do novo Presidente do Grupo, Maurizio Mauro: “José Dirceu, não Lula, é que deveria ser o alvo de suas preocupações. ‘Se ele for o sucessor, estamos fritos’” (Ibid., p. 394). São enigmáticas essas palavras, mas há uma admiração e uma tentativa de transformá-lo em seu interlocutor? Ou há um medo que justificaria acabar com seu possível crescimento?

De qualquer forma, há aqui uma sinalização importante para a cristalização do antipetismo que se aprofunda após o Mensalão. Não é à toa que José Dirceu seria alvo de campanhas que ‘permitiram punição contra ele no processo do Mensalão. É um tema a ser aprofundado.

Roberto Civita morreu em 2013. A Abril seguiu o processo de reestruturação imposta às empresas de comunicação nos anos 2010. Mas, contra prognósticos, Veja segue existindo.

Claro que esse livro vai servir, em grande medida, como uma espécie de autoajuda para empresários, que irão admirar o homem que do nada criou um quase império. Muito criativo, muito corajoso, pronto para os grandes desafios que ele mesmo criava. De outro lado, para historiadores que se preocupam com as formas da dominação burguesa no Brasil, sem querer ter sido isso, o livro é uma grande leitura.

Referências bibliográficas

Bourdieu, P. A ilusão biográfica”. In.: Figueiredo, J.; Ferreira, M. (orgs.) Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

Conti, M. S. Notícias do Planalto. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Maranhão, Ca Roberto Civita. O dono da banda. A vida e as ideias do editor da Veja e da Abril. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

Silva, C. L. O “admirável mundo” de Veja: influências sociais de uma revista de informação”. Historia Actual On Line, n. 15, p. 89-105, 2008.

_____. A Carta ao Leitor de Veja: um estudo histórico sobre editoriais. Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v. 32, n. 1, p. 89-107, jan.-jun. 2009.

_____. Veja e o PT: do “risco Lula” ao “Lula light”. Lutas Sociais, n. 15-16, 2006.

_____. VEJA: o indispensável partido neoliberal. Cascavel: Edunioeste, 2009.

[1] Dirigido por Eugenio Bucci, o curso formou 79 alunos (Maranhão, 2016, p. 431).

[Resenha a:] SENA JR., Carlos Zacarias (org.). Capítulos de história dos comunistas no Brasil. Salvador: UFBA, 2016.


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Lucas de Oliveira

A publicação, no atual contexto, de um livro sobre história dos comunistas no Brasil é importante em muitos sentidos. Em primeiro lugar, porque nesta obra a diversidade de temas se ajusta a uma multiplicidade de perspectivas que permite iluminar as transformações porque passou, em sua longa trajetória, o objeto a que estão dedicados os textos dos autores e autoras aqui reunidos: o PCB. Além disso, estes capítulos – que são plurais – fazem parte de um esforço combatente contra o esquecimento e a desagregação que busca, a todo tempo, avançar contra a história das experiências de lutas e organizações populares.

Organizada por Carlos Zacarias de Sena Júnior, professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia, a coletânea reúne uma série de onze artigos produzidos nos marcos do Seminário sobre os Comunistas no Brasil realizado na Bahia em junho de 2012, recordando o cumprimento dos 90 anos do PCB. Os textos aparecem agrupados em três partes definidas cronologicamente: I – “Das origens à Aliança Nacional”; II – “Resistência e legalidade”; e por último III – “Do manifesto de Janeiro de 1948 à Declaração de Março de 1958 e além”. A amplitude cronológica abarcada por estes Capítulos torna possível a realização de uma apreciação crítica a respeito da trajetória dos comunistas no país, fundamental para o aprendizado político a que Marcos Del Roio faz referência no prefácio: “Não só para saber dos erros, das derrotas, mas também dos momentos de glória e luta heroica contra a exploração capitalista e a opressão colonial”.

Na Introdução, a pena de Carlos Zacarias ergue-se uma vez mais contra as armadilhas das leituras ideologicamente seletivas sobre o passado, já bem designadas algures como revisionistas. Partindo de uma reflexão a respeito das distintas interpretações sobre a Revolução Russa e seus desdobramentos, o autor chama a atenção para as importantes ausências, no mercado editorial brasileiro, de bibliografia sobre o tema. Em seguida, analisa a trajetória da historiografia sobre o PCB, avaliando suas principais tendências desde os anos 1960. Aludindo à distopia teórica lançada sobre parte historiografia a partir da debacle do chamado “socialismo real”, o autor demonstra como nas últimas duas décadas assistiu-se a um giro conservador em algumas publicações sobre o tema. Por isso, o questionamento que dá título a seu texto “Por que uma história dos comunistas brasileiros?”, soa também como um manifesto, um demarcador de posições que serão exploradas ao longo do livro. Inserindo estes Capítulos nos debates intelectuais vigentes, Carlos Zacarias de Sena Júnior lembra que “não podemos conceder essa história tão cara aos militantes e à própria historiografia brasileira (…) a uma abordagem que inspire, nem de longe, algum tipo de anticomunismo”.

A primeira parte do livro, “Das origens à Aliança Nacional Libertadora (ANL)”, é inaugurada por um texto de Marly de Almeida Gomes Vianna intitulado “Observações sobre ideias socialistas, anarquistas e comunistas na imprensa (1902-1924)”. Conhecedora do tema e autora de obras importantes sobre o assunto, Vianna analisa os veículos de imprensa vinculados a essas distintas vertentes do incipiente movimento operário brasileiro buscando entender como aqueles trabalhadores compreendiam sua situação e que tipo de política buscaram levar a cabo no enfrentamento da dominação capitalista. Assim, através da leitura de panfletos, volantes, revistas como Movimento Comunista e de jornais de grande tiragem como A Guerra Social, Na Barricada, Guerra Sociale, A Lanterna e A Voz do Trabalhador, Marly Vianna consegue identificar importantes diferenças nas análises conjunturais, nas estratégias de construção orgânica e na elaboração de projetos políticos por cada uma dessas correntes. Aponta também para aspectos em comum: o esforço árduo para constituir-se enquanto vanguarda política de uma classe em formação.

No capítulo seguinte, “Notas sobre as primeiras movimentações comunistas na Bahia e na Região Cacaueira”, Marcelo da Silva Lins, professor da UESC, procura acompanhar os primeiros passos do PCB na Bahia, apontando para a dificuldade em definir uma “certidão de nascimento” para a organização no estado. Nesse sentido, lançando mão de livros de memórias de antigos militantes e de pesquisa documental nos arquivos da repressão, o autor procura reconstruir a trajetória inicial dos comunistas na Bahia desde meados de 1925, quando das primeiras filiações formais, até as conflituosas relações estabelecidas com a ANL dez anos mais tarde.

A trajetória de Antônio Maciel Bonfim é abordada no artigo de Raimundo Nonato Pereira Moreira em perspectiva biográfica. Investigando a formação política e o percurso intelectual de seu personagem, o autor procura operar uma reavaliação “do itinerário de um indivíduo transformado em farrapo humano pelo aparelho repressivo” e, além disso, “submetido a um impiedoso processo de liquidação política pelos companheiros de partido”. Assim, é lançando mão de fontes documentais memorialísticas e jornalísticas que Moreira escreve o seu “Antônio Maciel Bonfim ou ‘o celebre Miranda’: entre a história e a memória”.

A primeira parte do livro se encerra com o texto “1935: A Manhã e a ‘Campanha dos 50” de Dainis Karepovs a respeito da chamada “Campanha dos 50%”. Tomando como fonte principal o jornal carioca A Manhã, cuja linha editorial esteve fortemente influenciada pela atuação dos comunistas no período analisado, o autor se aproxima das formas de construção do movimento de estudantes na luta por “abatimentos nos meios de locomoção e diversão”. Deslindando as formas específicas de vinculação entre o movimento e a ANL, Karepovs acompanha a trajetória da Campanha entre agosto e novembro de 1935, quando começa a se desarticular, em partes por conta das férias escolares, em partes pela utilização crescente do “tacão da repressão política”.

“O território do tornar-se: pelas ruas e esquinas o intelectual baiano se fez comunista”, escrito por Rafael Fontes, inaugura a segunda parte do livro, enfrentando reflexões a respeito da conformação urbana da cidade de Salvador na primeira metade do século XX, acerca dos intelectuais em geral e dos intelectuais comunistas e do rol por eles ocupado naquele cenário.

Carlos Zacarias de Sena Júnior colabora, nesta segunda parte do livro, com o artigo intitulado “O esteio da ordem: comunistas, greves e sindicatos no Brasil (1945-1948)”. Desde o título, o artigo aponta para os conflitos enfrentados pelo PCB a partir de sua aposta na perspectiva de coexistência pacífica adotada pelos Partidos Comunistas vinculados a Moscou, associada à tentativa de aliança com setores tidos como progressistas da burguesia em nome do desenvolvimento nacional. Nesse sentido, ao longo do texto, Zacarias demonstra como a defesa de soluções políticas e econômicas “dentro da ordem e do respeito mútuo entre as classes” por parte da organização coincidia com sua política de colaboração de classes e de defesa irrestrita do que entendia ser a “paz democrática”.

Em seguida, Raquel Oliveira Silva analisa a implantação, em Salvador, dos Comitês Populares Democráticos (CPD) a partir de 1945 em artigo intitulado “O PCB e os Comitês Populares Democráticos em Salvador (1945-1947)”. Utilizando periódicos publicados no período, inclusive O Momento, vinculado ao Partido, Silva discute a forma como esses Comitês constituíram um esforço por parte do PCB em se aproximar de setores populares não pertencentes aos espaços sindicais.

“Insubordinação das bases do PCB frente às orientações dos Manifestos de Janeiro de 1948 e Agosto de 1950”, escrito por Ede Ricardo de Assis Soares, já faz parte da terceira parte do livro. Nesse texto, o autor discute as discordâncias surgidas no PCB de Alagoinhas, cidade do interior baiano, com relação às alterações dos Manifestos de Janeiro de 1948 e Agosto de 1950, demonstrando peculiaridades interessantes no que diz respeito à atuação dos comunistas em pequenos núcleos e cidades do interior.

Na sequência, o texto assinado por Frederico José Falcão, “A declaração de Março de 1958 na história do PCB”, se debruça sobre o horizonte político adotado pela organização a partir de finais da década de 1950. Analisando documentação interna do Partido e utilizando entrevistas realizadas a seus antigos membros, o autor procura compreender a repercussão dos debates ao redor da famosa Declaração no interior do partido, atentando para as transformações que ela provocou.

Em “A contradição principal: PCB e outros comunistas entre a ‘classe’ e a ‘nação’ (1956-1959)”, o professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, Eurelino Coelho, analisa as formulações em torno da chamada “Questão Nacional” entre marxistas brasileiros. Acompanhando os debates entre os marxistas do PCB e “os outros” (vinculados à Polop e, principalmente, à Liga Socialista Independente), o autor busca demonstrar – refutando afirmações em contrário – que essa além de ter sido uma questão frontalmente enfrentada pelo marxismo brasileiro, na prática, significou muito para a definição da estratégia revolucionária adequada à situação brasileira.

Por fim, o artigo de Muniz Gonçalves Ferreira “Um capítulo não escrito da história do comunismo brasileiro: a trajetória e as funções da Revista Internacional (Problemas da Paz e do Socialismo) no período: 1958-1990” encerra o livro com uma interessante análise sobre o papel cumprido, ao longo de uma extensa trajetória, pela Revista Internacional (Problemas da paz e do Socialismo) avaliando as relações entre o que ali circulava e as políticas e concepções adotadas localmente pelo PCB, destacando o papel formador e organizador da revista..

Pela diversidade dos temas que aborda e das questões que contêm, não é hiperbólico dizer: este é um livro importante. Lançado num contexto em que amplos setores da sociedade flertam com visões de mundo apoiadas no anticomunismo mais recalcitrante, o panorama que a obra oferece demarca posições políticas. No oceano da história dos comunistas, aqui aparecem textos em diferentes níveis de profundidade, de alcance, de horizonte. Todos eles, no entanto, a recordar que “o mar da história é agitado” e a contribuir no resgate de experiência dos trabalhadores em sua luta por emancipação.

[Resenha a:] DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016


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Rafaela Cyrino

O livro de Angela Davis “Mulheres, raça e classe” nos fornece um rico material de análise e reflexão, fundamental para a construção de um projeto político comprometido com uma transformação revolucionária que nos conduza a uma sociedade livre de qualquer tipo de opressão. O entrelaçamento realizado pela autora entre os componentes econômico, político e ideológico do modo de produção escravista e capitalista, nos permite enxergar como as diversas opressões se combinam e se entrecruzam na sustentação de projetos de dominação de classe. Além disto, Davis discute, a partir de realidades históricas concretas, como estas opressões criam, de maneira recorrente, ideologias de suporte, práticas de exploração e estratégias políticas de coerção, dominação e controle dos grupos dominados, as quais interferem, de maneiras contraditórias, na história dos diversos movimentos de luta e resistência, como o movimento abolicionista, o movimento antiescravagista, o movimento sufragista, o movimento de mulheres, o movimento associacionista, a luta pelos direitos reprodutivos, entre outros.

Angela Davis inicia o seu rico percurso histórico resgatando as bases do sistema escravagista, em que os negros, tratados como coisas, eram vistos apenas como unidades de trabalho lucrativo e não como seres humanos (p. 17). No sistema escravagista o povo negro, definido como propriedade, foi submetido a formas violentas de coerção, domínio e controle, em um sistema caracterizado por uma desumanização cotidiana materializada em atos cotidianos de tortura, estupro, espancamento, chicotada, entre outros. Apesar da crueldade e da insanidade do sistema escravista e do intenso processo de dominação do povo negro, minimizada, segundo Angela Davis, pela literatura da escravidão, a autora pontua as estratégias de resistência e de luta do povo negro, consubstanciadas em revoltas, fugas e sabotagens, resgatando personagens importantes na história de resistência do povo negro, como a abolicionista Sojourner Truth.

A autora discute, de maneira magistral, de que maneira, com a abolição da escravatura e a ascensão do chamado “trabalho livre”, ocorre uma reconfiguração das diversas opressões (de classe, sexo e raça). Este processo, abordado por Heleieth Saffioti em A mulher na sociedade de classes, significa a seleção de caracteres sexuais, raciais e de classe para operarem como marcas sociais que permitem hierarquizar os membros da sociedade de acordo com “as necessidades e conveniências do sistema produtivo de bens e serviços (SAFFIOTI, 2013. p. 60). Angela Davis, ao abordar a reconfiguração que visa legitimar e consolidar a dominação de classe capitalista, discorre sobre as diferentes tarefas, trabalhos e ideologias que são destinadas aos diversos grupos oprimidos. Assim, enquanto foram destinados às mulheres negras, em um primeiro momento, no período pós-abolição, o trabalho na agricultura e no serviço doméstico, sujeito a condições de exploração extremas e perpetuador de práticas de violência (como o abuso sexual por parte dos patrões), para as mulheres brancas pobres foi destinado o extenuante trabalho na fábricas, enquanto para as mulheres burguesas de classe média foi destinado a tarefa de cumprirem com dedicação a “nobre missão” de “ser mãe e dona de casa”, missão esta sustentada pela ideologia da maternidade, com forte viés racial e de classe.

Davis, ao historicizar a ascensão do culto à maternidade e à feminilidade no século XIX, como um subproduto da industrialização, discute como este culto legitimou a clivagem provocada pelo capitalismo industrial entre economia doméstica e economia pública, ao enfatizar o papel das mulheres como mães, protetoras e donas de casa, circunscritas a um espaço doméstico, definido doravante como não produtivo. Entretanto, Davis, além de discutir, do ponto de vista capitalista, a funcionalidade desta ideologia, ressalva o seu viés racista e classista, pois a ideia de mulher veiculada pelo mito da feminilidade não incluia nem as escravas do regime escravagista, que, “aos olhos de seus proprietários, não eram realmente mães” (p. 19), mas apenas reprodutoras e nem as traballhadoras superexploradas nas fábricas, que não se adequavam bem ao modelo burguês de “dona de casa”.

Ao mostrar como as ideologias são marcadas pelas hierarquias e clivagens que constituem a sociedade de classes, Davis discute como as opressões anteriores são ressignificadas de maneira a legitimar a dominação de classe tipicamente capitalista. Entretanto, e este me parece ser um ponto fundamental do seu livro, o estabelecimento dos nexos causais entre capitalismo, sexismo e racismo traz à tona uma história não linear, repleta de contradições, entre diversos movimentos e lutas de resistência das mulheres, dos negros e da classe trabalhadora.

Nesta história, a autora destaca, para cada período analisado, a configuração econômica, política e ideológica, em que sobressaem interesses e prioridades diversas, revelando como, em uma sociedade hierarquizada, aquilo que é definido como uma demanda política das “mulheres“ pode se configurar de maneira a defender interesses particulares, de uma determinada classe ou grupo social. Davis observa que, no interior do movimento das mulheres, em seus primeiros anos, constituído principalmente por mulheres brancas e de classe média, pouco se discutia as condições sociais da população branca trabalhadora, as quais constituíam a maioria do proletariado. Entretanto, mesmo que as líderes do movimento das mulheres lutassem prioritariamente pela concessão do voto às mulheres, enquanto a massa das trabalhadoras estivesse mais preocupada com os seus problemas imediatos (salários, jornadas, condições de trabalho), houve, mesmo com um viés de classe, um maior envolvimento do movimento de mulheres nas lutas operárias das mulheres no período pós-guerra.

Por intermédio de uma análise histórica consistente, Davis, ao mesmo tempo em que aborda o “profundo vínculo ideológico, entre racismo, viés de classe e supremacia masculina” (p. 81), discute o racismo presente no movimento sufragista feminino. A autora mostra, a partir de relatos históricos, como a disputa política pelo direito ao voto para as mulheres, motor do movimento sufragista, significou, em determinados contextos, como no período pós-Guerra Civil, uma estratégia de exclusão das demandas das mulheres negras por este mesmo direito, sob o argumento da conveniência (de que a defesa do voto das mulheres negras poderia dificultar a conquista do voto feminino). O argumento da conveniência evocado assinala uma mudança na correlação de forças no interior mesmo do movimento de mulheres, o qual se afasta da causa antiescravista que havia anteriormente abraçado com entusiasmo. Davis não omite desta história como a Nawsa (Associação Nacional pelo Sufrágio das Mulheres Americanas), caracterizada por Shulamith Firestone (1976) como altamente conservadora, além de reproduzir a ideologia da maternidade, adota o argumento da supremacia racial para negar o direito de voto às mulheres negras. (p. 130). Como observa Davis, neste caso específico, nenhum tipo de sororidade entre as mulheres brancas e negras foi possível. Que a evocação desta história nos sirva de lição contra o divisionismo e como fomento para o desenvolvimento de uma consciência política ampliada que busque combater os diversos sistemas de opressão que configuram esta sociedade.

Como a história evocada por Angela Davis não é uma história linear e única, mas repleta de contradições, a autora e militante nos dá diversos exemplos de alianças solidárias e sinceras entre mulheres brancas, negras, trabalhadoras e burguesas, as quais estiveram, em muitos contextos, fortemente unidas em defesa, por exemplo, do direto à educação para a população negra. Davis evoca como um exemplo marcante de sororidade que as mulheres brancas tinham em relação às mulheres negras, o engajamento político de mulheres como Myrtilla Miner e Prudence Crandall, as quais “sacrificaram a própria vida ao tentar transmitir conhecimentos às jovens negras” (p. 110). Como nos lembra a autora, “A união e a solidariedade entre (as mulheres negras e brancas) ratificaram a eternizaram uma das promessas mais férteis da nossa história.” (p. 116), indicando que a “sororidade entre as mulheres brancas e negras era de fato possível e, “desde que erguida sob uma base firme poderia levar ao nascimento de realizações transformadoras” (p. 112).

Ao recuperar a trágica história de segregação racial nos Estados Unidos, Davis demonstra como os movimentos antiestupro e antilinchamento de negros foram enfraquecidos por ideologias racistas, como o mito que representa o homem negro como estuprador e a mulher negra como promíscua. Tais mitos, ao operarem imprimindo as marcas de animalidade e bestialidade na população negra, tanto incitaram agressões racistas quanto foram uteis à superexploração da população negra pelo sistema capitalista. Se é verdade, afirma Davis, que, no movimento feminista houve quem se deixou cair na armadilha destas ideologias racistas, entre elas a feminista radical Shulamith Firestone, a autora não deixa de apontar o papel de “corajosas mulheres brancas que sofreram oposição, hostilidade e até ameaças de morte (p. 197) pela cruzada que empenharam contra os linchamentos da população negra.

Prosseguindo com o seu compromisso de mostrar as contradições históricas e as diversas maneiras de se relacionar com as clivagens constitutivas do sistema, Angela Davis denuncia a prática eugenista e racista que impôs a parcelas importantes da população negra e pobre norte-americana (sobretudo as mulheres porto-riquenhas, negras, de origem mexicana e indígena) uma esterilização compulsória. Davis procura compreender, a partir desta realidade histórica, uma clivagem importante que ocorreu na luta das mulheres pelos direitos reprodutivos. A autora observa, novamente, como o viés de classe e o racismo se infiltraram no movimento pelo controle de natalidade desde a sua infância, distanciando as feministas que lutavam pela “maternidade voluntária”, vista como um caminho para o acesso a uma carreira profissional , e a classe trabalhadora e pobre, engajada na luta pela sobrevivência econômica e submetida ao “dever” de restringir o tamanho de sua família.

Angela Davis, militante negra, feminista e marxista, através de uma análise teórica crítica e consistente das múltiplas contradições que se expressam nas sociedades de classes, indica que uma política feminista verdadeiramente radical deve lutar contra todas as opressões, estabelecendo os nexos causais entre capitalismo, sexismo e racismo e combatendo toda forma de divisonismo que a desvie do seu caráter revolucionário.

Referências bibliográficas

Saffioti, Heleieth. A mulher na sociedade de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

Shulamith, Firestone. A dialética do sexo. São Paulo: Labor do Brasil, 1976.