[Resenha a:] HOBSBAWM, Eric. Viva la revolución: a era das utopias na América Latina. Organização: Leslie Bethell. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.


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HOBSBAWM, Eric. Viva la revolución: a era das utopias na América Latina. Organização: Leslie Bethell. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 

Por Bernardo Geraldini

O historiador britânico Eric Hobsbawm teve uma relação bastante intensa com a América Latina. Essa intensidade se nota nas amizades que aí construiu, nas suas várias (e longas) viagens ao continente, realizadas principalmente nas décadas de 1960 e 1970, e na popularidade de que suas obras aí gozaram. Seus escritos sobre a região somam agora cerca de quinhentas páginas, em volume organizado pelo brasilianista Leslie Bethell. 

Não sendo Hobsbawm um latino-americanista (como ele próprio assume), talvez fosse de se esperar que a maioria dos capítulos não seguisse a forma acadêmica tradicional. Evidentemente, e assim como ocorre com sua famosa obra sobre o “breve século XX”, a não conformidade com o dispositivo acadêmico tem alguns traços que devem ser relevados. O primeiro e mais importante deles é a fluidez do texto, que chamará a atenção principalmente de leitoras e leitores que também leram as obras mais propriamente acadêmicas do autor. Assim, em geral, os escritos sobre a América Latina são menos densos, contém menos informações e requerem menos pausas do que, por exemplo, as obras de Hobsbawm sobre o trabalho ou sobre a crise econômica europeia do século XVII. A contraparte dessa fluidez que ficará mais clara para a/o especialista em América Latina é a eventual falta de dados e/ou a ausência de um tratamento sistemático dos mesmos. Entretanto, isso não é problemático, já que proposta deste livro evidentemente nunca foi a de constituir um compêndio ou um “manual” sobre a região. 

Esses traços nos levam àquilo que é, creio, um dos pontos fortes de Viva la revolución: o livro explora a relação que diversas teorias (principalmente sobre consciência de classe, mobilização popular e revolução, mas também sobre neofeudalismo, por exemplo) têm com a situação histórica da América Latina frente ao restante do mundo. Isto é, o caráter ensaístico do texto e o foco em casos específicos (por oposição a tentativas de esgotar os vários fatos e dados sobre a região) deixam amplo espaço para a reflexão sobre como a inserção no mundo capitalista a partir da periferia condiciona os processos históricos desta última. 

Nessa chave de leitura, a parte II do livro, “Estruturas agrárias”, é emblemática: ao tratar do caso do Peru, Hobsbawm afirma que o avanço do capitalismo em meados do século XX fez prosperar um modo de produção que é praticamente indistinguível do feudalismo clássico. E, o que é mais, sua análise não se serve de fatalismos históricos: como ele próprio coloca, é “imprudente confiar demais em explicações históricas” (p. 150), pois seria perfeitamente possível supor que o neofeudalismo tenha sido “uma consequência necessária da decisão de realizar o cultivo da propriedade em condições de escassez de trabalho” (idem). Assim, voltam à tona o caráter sui generis da América Latina (quando em comparação com o centro do capitalismo) e o debate sobre circulação e modo de produção, o que torna o bloco particularmente interessante aos que se dedicam ao estudo do desenvolvimento do capitalismo.

A parte IV, “Revoluções e revolucionários”, também se acorda parcialmente com o modo de análise que enfoca as relações exteriores. Nesse sentido, o capítulo sobre a Revolução Mexicana de 1910 relativiza a autonomia política do México ao cotejar cada movimento dos protagonistas revolucionários (e contrarrevolucionários) com as ações e reações dos Estados Unidos. A Revolução Cubana é tratada em termos similares. Já o capítulo sobre o imperialismo norte-americano e seu papel na América Latina, ao que tudo indica, foi construído com base em resenhas escritas por Hobsbawm. Como algumas das obras resenhadas foram feitas por autores simpáticos à hegemonia norte-americana, o capítulo tem o efeito curioso de demonstrar como o poderio dos Estados Unidos nos vários âmbitos — econômico, político, cultural — parecia limitado a esses autores (e também a Hobsbawm), que escreviam em fins dos anos 1960. Afinal, naquele momento, diversos países “(Cuba, Chile, Peru, Bolívia) se inclinaram para a esquerda” (p. 358). Desse modo, “[as] perspectivas para a esquerda na década de 1970 [eram] animadoras” (p. 359). 

Há pouco, no livro, sobre como Hobsbawm reagiu ao desmentido dessas perspectivas, com possível exceção para o caso do Chile. Pois além de um capítulo escrito em 1971 sobre os limites e possibilidades do regime de Salvador Allende, há uma denúncia apaixonada do golpe de 1973 e do assassinato do presidente: “[…] a esquerda subestimou o medo e ódio da direita e a facilidade com que homens e mulheres bem-vestidos adquirem um gosto por sangue”. (p. 449). No entanto, afinal são poucas as páginas dedicadas à análise do fracasso do regime terminado em 1973.

A parte III, “Camponeses”, trata de tópicos aos quais Hobsbawm se dedicou profissionalmente. A meu ver, é nesta parte que o intelecto poderoso do autor mais salta aos olhos. Isso se verifica na sua erudição, na cautela com que faz a teorização sobre grupos sociais não europeus, na análise comparativa que resulta ao fim, e na espontaneidade com que todos esses elementos são articulados. A inflexão geral do bloco III é a da resposta que os camponeses dão quando pressionados pela modernização. Assim sendo, são descritas a mobilização camponesa e o fenômeno de sua politização, com todos os percalços característicos. Aqui, a influência do marxismo é mais sensível, principalmente no que diz respeito à teoria da história. Por exemplo, lemos que o banditismo social “parece ocorrer em todos os tipos de sociedade humana que se encontram entre a fase evolutiva da organização tribal […] e a sociedade capitalista e industrial moderna” (p. 155). Desse modo, o autor se preocupa não só com os fatos históricos, mas também com um modelo explicativo no qual esses fatos possam se encaixar. Estamos diante, portanto, de um caso prático que encarna a teoria seguida pelo historiador: em Mundos do trabalho, por exemplo, ele coloca que para nos ocuparmos com “as questões realmente significativas sobre as transformações históricas da sociedade”, devemos ter subjacente “um modelo teórico de sociedades e de transformações” (Hobsbawm, 2005, p. 35). 

Ainda sobre a parte III, vale mencionar um capítulo curioso sobre insurreições camponesas, que segue a mesma fórmula de emparelhar teoria e história e cujas questões colocadas (e deixadas em aberto) são bastante instigantes: por que as insurreições são mais frequentes neste ou naquele lugar? O que leva a que determinada região seja palco de movimentos preferencialmente compostos por marginais, foras da lei, e bandidos, enquanto que outras mobilizam comunidades e se baseiam em costumes comuns? Apesar de intrigantes, o fato de esse capítulo (de nove páginas) ser um ensaio inacabado faz com que essas questões fiquem formuladas de maneira algo incompleta. Aqui, por oposição às demais obras de Hobsbawm, faz falta o apreço que o autor tinha por exemplos e casos reais. Além disso, a parte final do capítulo é composta basicamente por aforismos, o que pode torná-lo menos proveitoso para os não iniciados, que talvez não disponham de referências que os permitam ter uma boa interlocução com o texto.

Creio ser possível afirmar que o centro de gravidade da parte III está ligado à teorização que o “velho” Lukács (2003) faz sobre a consciência de classe — teorização, aliás, que é pano de fundo para todo o livro. Assim, os casos de movimentos camponeses no Peru e na Colômbia, por exemplo, são descritos de forma minuciosa e cuidadosa, mas o que de fato surpreende é a concatenação que Hobsbawm faz daquilo que é quase a histoire événementielle desses movimentos com a teoria de Lukács sobre como o capitalismo viabiliza a consciência de classe e o potencial revolucionário. É por este caminho, por exemplo, que é descrito o processo por meio do qual o movimento camponês de La Convención, no Peru, foi potencializado pelos comunistas locais.

Outras temáticas tais como a do subdesenvolvimento e a da teoria da dependência também são bastante mobilizadas, principalmente num bloco de capítulos sobre o regime militar peruano. A leitura que Hobsbawm faz da tentativa de modernização empreendida pelos generais peruanos nos anos 1960 parece bastante sólida, sobretudo ao apontar como a dinâmica do poder mundial limita a margem de manobra dos países periféricos. É nesses termos, e com certa similaridade às propostas de Florestan Fernandes (1987) e Carlos Nelson Coutinho (1985), que Hobsbawm afirma que a inexistência de uma burguesia nacional peruana acabou por largar no colo do Estado (isto é, dos militares) o protagonismo da transformação social. 

Em suma, o motivo que permeia todo o texto é o mesmo que parece ter guiado o autor em sua vida profissional, qual seja, o da interpretação — com vistas à transformação — do mundo. E o que é mais, o historiador interpreta a região com atenção suficiente para não incorrer em erros tais como fazer uso de categorias analíticas estranhas à realidade latino-americana. Está atento, portanto, às “ideias fora do lugar”.

Finalmente, ocorre que os escritos de Hobsbawm das décadas de 1960 e 1970, período de grande agitação na América Latina, carregam uma centelha de otimismo, ao passo que suas reflexões posteriores são mais sóbrias e contam com o que o próprio autor chamou de “a arma final do historiador, a retrovisão” (Hobsbawm, 2013, p. 249). Foi a retrovisão que o permitiu ver que a “era das utopias” nesse continente foi, enfim, menos permissiva à transformação social do que dava a impressão de ser. As forças conservadoras, internas e externas, se mostraram mais vigorosas. No entanto, a passagem cronológica de um tom esperançoso a outro quase melancólico não deve encobrir o profundo senso de indignação que o autor exibe frente à injustiça social. É esse o sentimento que prevalece no livro e que, mais do que servir como desculpa para a resignação, age como estímulo à análise e à mobilização.

Referências bibliográficas

Coutinho, C. N. As categorias de Gramsci e a realidade brasileira. In: Coutinho, C. N; Nogueira, M. A. (orgs.). Gramsci e a América Latina. Rio se Janeiro: Paz e Terra, 1985.

Fernandes, F. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaios de interpretação sociológica. Rio de Janeiro, Guanabara, 1987.

Hobsbawm, E. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. São Paulo: Paz e Terra, 2005. 

_____. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

Lukács, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[Resenha a:] GOMES, Flávio dos Santos. Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Ed. Claro Enigma, 2015.


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GOMES, Flávio dos Santos. Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015

Por Jairo de Lucena Gonçalves 

Flavio dos santos Gomes é historiador e cientista social, com artigos produzidos no âmbito nacional e no exterior, sobre os seguintes assuntos: história do Brasil colônia, pós-colonial e escravidão. Seu livro está subdividido em treze partes, onde o autor busca trazer fatos muito interessantes ligados aos temas cotidianos do espaço de vivencia dos escravizados e suas resistências. Podemos destacar as redes existentes entre negros dos quilombos e os donos das tabernas ou o próprio contato que estes tinham com negros escravos das fazendas entre outros que aparecerão no decorrer da explanação.

O autor consegue trabalhar com habilidade os temas propostos, nos aproximando do objeto de estudo de uma maneira singular; Gomes escreve de uma forma que somos induzidos a viajar em sua narrativa; têm momentos que quase conseguimos enxergar os acontecimentos. É como se ele tivesse sido uma testemunha ocular dos fatos. Sabemos que tão façanha e aproximação dos fatos só podem ser conseguidas a partir de muitas leituras e reflexões sobre as fontes. 

No primeiro capítulo: um fenômeno hemisférico, conseguimos perceber que o autor demostra a visão dos lusitanos em relação aos quilombos; como se todos tivessem uma organização similar, coisa característica dos europeus de outrora que não enxergavam as diversidades socioculturais. Outro tocante bastante interessante que nos chamou atenção foi a maneira que o negro foi demostrado, aquela imagem de aceitabilidade de sua condição de escravizado foi desconstruída. As imagens construídas foram de pessoas inconformadas com a realidade de aprisionamento e de exploração; que planejavam ações para minar o sistema instituído pelos dominantes. 

No segundo capítulo: Formação, Gomes se preocupa em demostrar as questões embrionárias no surgimento dos quilombos, destacando que os principais integrantes vinham das fazendas, fugitivos dos latifúndios nordestinos, é salientado que, nem sempre a fuga de escravo originava um novo quilombo. Segundo o autor para um quilombo se desenvolver de fato, era necessário que estivesse consideravelmente perto dos aglomerados humanas, assim o comercio era constante. Aqueles extremamente distantes se tornavam de certa maneira enviáveis. É demostrado também a inteligência dos negros em aproveitar problemas relacionados ao cotidiano dos senhores para fugirem. Na terceira parte: Organização, o autor explana as questões ligadas as redes de contado dos quilombos com o “mundo exterior” e como essas relações foram importantes na manutenção destes. Outro ponto bem oportuno que foi demostrado pelo autor foi a questão do crescimento populacional dentro das próprias comunidades de negros fugidos, muitos nasciam dentro do quilombo e não tinham experimentado o gosto amargo da escravidão. 

 No quarto capítulo: Ataque e defesa, Gomes fala sobre o sucesso de muitos quilombos em relação as investidas dos colonos, nessa parte ele considera que o fator de conhecimento geográfico do espaço favorecia o negro quilombola. Algo que nos chamou a atenção, foi o fato ligado ao deslocamento dos quilombos. Em momentos de ataques estes migravam para outras regiões, por esse motivo que era tão difícil acabar com essa “doença” que prejudicava a economia e os interesses das elites de uma época. No quito capítulo: Família, mulheres e cultura, é demostrado duas questões que de certa maneira parece incomodar o autor, a imagem construída em relação aos quilombolas, um discurso do europeu colonizador que sempre justifica suas atitudes em busca do progresso, e a questão do não aparecimento das mulheres. Mulheres que foram importantes para o sucesso e a continuação dos quilombos.

Podemos perceber as questões ligadas as diferenças culturais encontradas nos quilombos, negros de muitas partes da África se encontravam neste local, e suas diferentes maneiras de enxergar o mundo era vivenciado nesses espaços. Na sexta parte: Aquilombados, negociações e conflitos, o autor demostra uma forma diferente de resistência, destacou que alguns negros não vigiam para os quilombos. Ficavam escondidos nas partes mais periféricas das fazendas; o grande objetivo era conseguir melhores condições de vida e direitos. Como por exemplo castigos mais leves e a chance de trabalharem mais dias para si. 

No sétimo capítulo: Misturas étnicas, nesta parte Gomes discute as questões de construções das imagens dos indígenas e do negro em nossa sociedade. O indígena sempre visto com indivíduos inaptos para o trabalho; preguiçosos. Continuamos a reproduzir esse discurso até a atualidade. Ele também aponta para uma relação às vezes conflituosas entre negros e índios. No oitavo capítulo: Nas fronteiras com as guianas, é relatado as questões de comercialização entre os grupos residentes daquela localidade, a interação entre quilombolas e indígenas, é falado de uma espécie de redefinição das fronteiras graças essas relações socioeconômicas existentes. 

No nono capítulo: Formas camponesas coloniais e pós-coloniais, nesta parte Gomes critica a maneira romantizada dos culturalistas em perceberem os movimentos quilombolas. Essa visão que predominou nas construções discursivas sobre o tema no século XX. O autor discorda da visão de Gilberto Freire, que defendia que os indivíduos escravizados aceitavam essa condição. No decimo capítulo: Em torno de palmares, é feita uma amostragem da organização do quilombo enfocando suas questões socioeconômicas; também é mostrado um documento escrito na época que fomentava a destruição de palmares. A carta é rica em detalhes e nos faz entender muitas questões referentes ao funcionamento do Quilombo dos Palmares.

No capítulo: Outros quilombos coloniais, o autor foca seu olhar para os quilombos de Minas gerais, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro em Especial. Podemos destacar as questões que fizeram da BA e de MG as regiões com maior incidência de Quilombos. As atividades açucareiras e mineradoras foram responsáveis pela grande leva de negros escravizados nesta localidade. Em seguida, a História de quilombolas e mocambeiros conta as histórias de indivíduos que residiam na região do Grão-Pará e Maranhão. As lutas, as fugas e as resistências do sistema emposto pela administração lusitana. 

O que mais chama atenção nessa parte é a riqueza de fontes utilizadas por Gomes, ele consegue “costurar” as informações nos dando uma visão de como as coisas se organizavam no século XIX, que aponta na questão da libertação dos escravos, que segundo o autor continuaram a lutar por seus direitos quase inexistentes. Gomes se despede com a parte intitulada: Remanescentes e simbologias dos vários quilombos dos Brasil, onde ele salienta que, as políticas públicas para anteder os descendentes dos escravos foram poucas ou ineficazes em sua maioria. Os quilombos contemporâneos vivem em uma espécie de isolamento social.

O autor enfoca o papel do Movimento Negro na luta pelo reconhecimento cultural e territorial. Muitos são os processos que se estendem na justiça em busca especialmente de demarcações de terra, direito a saúde e a uma educação inclusiva que desmonte essa imagem errônea do negro. O livro de Gomes aguça o olhar, não apenas em quanto pesquisadores do campo da história, mais também, no que se refere ao reconhecimento do ser negro. Temos que concordar que aquele discurso do negro subalterno, criado para ser ensinado as crianças e jovens não se aproxima da realidade vivenciada pelos escravizados de outrora. 

Podemos perceber no transcorrer da leitura que os negros construíram suas redes sociais, e suas táticas de resistências. Em diferentes lugares do Brasil, usando táticas similares foram vencendo, burlando o sistema, criando condições para que hoje, seus sucessores continuem essa empreitada. O livro de Gomes é, portnato, uma leitura acessível e rica de fontes para a reconstrução da resistência negra desde o período colonial até as lutas mais contemporâneas.     

   

     

[Resenha a:] MARKUS, G. Marxismo e Antropologia. O Conceito de “essência humana” na filosofia de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2015.


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MARKUS, G. Marxismo e Antropologia. O Conceito de “essência humana” na filosofia de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

Por Filipe Leite Pinheiro

Primeiro livro de György Márkus (1934-2016) internacionalmente conhecido, Marxismo e Antropologia: o conceito de ‘essência humana’ na filosofia de Marx, teve duas edições húngaras (1965; 1972), foi traduzido para o espanhol (1974), japonês (1975), italiano (1978), inglês (1978), alemão (1981), e recentemente reeditado pela editora alemã Modem-Verlag (2014).

Entre o público brasileiro György Márkus notabilizou-se por Teoria do Conhecimento no Jovem Marx (1974), coletânea de textos nos quais emprega os Manuscritos Econômico-filosóficos para debater problemas fundamentais da teoria do conhecimento. Em uma nota de rodapé ao final do prefácio desta edição, Carlos Nelson Coutinho anuncia que Marxismo e Antropologia seria a próxima obra de Márkus traduzida pela Editora Paz e Terra, que tinha como propósito publicar as obras dos integrantes da Escola de Budapeste. Tal expressão foi cunhada por György Lukács em uma carta ao suplemento literário do The Times, pouco antes de sua morte, em 1971, para referir-se ao grupo de intelectuais engajados no movimento de renovação do marxismo húngaro ao longo dos anos 1960; seriam eles: Agnes Heller, Ferenc Fehér, Mihály Vadja e György Márkus. Contudo, Marxismo e Antropologia somente seria editado no Brasil quarenta anos depois.

A despeito da conhecida passagem de Pensamento Vivido na qual Lukács (1999, p. 143) afirma que Márkus não foi seu aluno, enfatizando a aproximação intelectual tardia de ambos, Coutinho (1974, p. 13) observa que Márkus se apropria não apenas da problemática juvenil de Lukács, mas também de muitas das soluções empregadas em sua maturidade. Se esta problemática já figura no ensaio de Márkus sobre jovem Marx, redigido em 1958, em Marxismo e Antropologia, publicado em 1965, aquelas soluções tomam forma particular. Tal posicionamento reaparece no artigo intitulado “Discussões e tendências na filosofia marxista”, redigido em 1968 e publicado como último capítulo de Teoria do Conhecimento no Jovem Marx.

Marxismo e Antropologia traz como tese principal a centralidade do conceito de essência humana para o pensamento de Marx. Segundo seu autor, a desconexão com este conceito conduz à antinomias insolúveis e coloca a necessidade de esclarecer sua relação com a totalidade do corpus textual de Marx, considerando a antropologia filosófica de Marx “não a partir da expressão mais tradicional, ‘concepção filosófico-antropológica’, mas sim como a ‘ontologia do ser social marxiana’, expressão cunhada por György Lukács” (p. 18). Nesse sentido, é perceptível que a antropologia filosófica apresentada por Márkus se afasta de perspectivas positivistas e cientificistas da disciplina, referindo-se principalmente à análise histórica do conceito de essência humana, do mesmo modo que Lukács em sua maturidade.

Influenciado por seu mentor, Márkus interpreta o pensamento de Marx como uma resposta à grande questão filosófica das essências, expressando um tertium datur para o dilema de Parmênides e Heráclito. Um mérito da contribuição do autor é estender esta crítica aos correlatos destes posicionamentos filosóficos no campo marxista: no primeiro caso, a essência humana é interpretada como um atributo fixo e a-histórico derivado antropologicamente de uma verdadeira natureza do ser humano, como no moralismo de Erich Fromm (1962); no segundo caso, a essência humana é totalmente dissolvida nas estruturas sociais, como no relativismo histórico de Louis Althusser (2015). Ao longo do ensaio Márkus defende uma definição móvel e histórica do conceito de essência humana que permite compreender dialeticamente a relação entre o agir humano e as estruturas sociais.

Em sua defesa da centralidade do conceito de essência humana, Márkus remete principalmente aos Manuscritos Econômico-filosóficos, mas também mobiliza o conjunto de textos à época disponíveis para embasar a defesa de seu ponto de vista. Dentre suas referências figuram tanto textos da  juventude de Marx, como a Crítica da filosofia do direito de Hegel, quanto textos da maturidade, como os Grundrisse  e os três livros de O Capital.

No primeiro ensaio, “O Homem como Ser Natural Universal”, Márkus começa se perguntando “O que é homem nos termos de Marx?”. O autor observa que, na totalidade de seus textos, Marx caracteriza o ser humano como ser sensorial, físico, natural, trazido à existência por processos naturais e não conscientes; um ser que faz parte da natureza, e é resultado da evolução das espécies. Como ser natural vivo, o ser humano é finito e limitado quanto às capacidades e necessidades, e dirige seus impulsos para objetos a ele exteriores, indispensáveis à efetivação de suas forças essenciais; ou seja, são seres dependentes e condicionados.

Enquanto atividade reprodutiva humana, o trabalho difere da atividade reprodutiva dos animais pelo aumento das forças produtivas disponíveis e pela aquisição de novas capacidades. A atividade reprodutiva animal limita-se a consumir objetos naturais, imediatamente apropriados da natureza, por conterem certas propriedades físico-químicas; de modo que sua meta e suas capacidades para atingi-lo são fixadas por sua constituição biológica, moldada pela evolução e, portanto, imutável no curto prazo. Por isso, há uma gama limitada de regularidades naturais em torno das quais o comportamento animal é orientado, caracterizando-se por um modo de viver inato. Já a atividade reprodutiva humana elabora objetos apropriados da natureza através da mediação do trabalho e submete as forças da natureza às suas necessidades, ao passo que também reproduz consigo certo grau de subordinação à natureza.

Incialmente pressupostos de toda a ação humana, no decurso do desenvolvimento social as necessidades humanas são socialmente produzidas, passando a orientar a produção. Esta inversão na relação entre necessidades e atividade produtiva reflete-se em uma tendência à crescente produção e elaboração social das necessidades. Produzem-se deste modo a gradual humanização das necessidades biológicas e originam-se necessidades puramente sociais, como a organização política, o Estado, a moral, a ciência, etc. A condição de ser natural capaz de produzir socialmente a sua própria natureza conduz à crescente universalização do ser humano no plano natural.

No segundo ensaio, “O Homem como ser Natural, Social e Consciente”, Márkus estende sua análise a outros dois planos, sociedade e consciência. O autor enfatiza o caráter social, comunal e genérico do ser humano, destacando que a essência humana somente se confirma no ato da produção, que, por sua vez, é um ato social na medida em que as próprias forças produtivas das quais dispõem os indivíduos possuem caráter social. Nesse sentido, a atividade do indivíduo produtor também é sempre uma atividade sócio-histórica, já que seus instrumentos de trabalho são eles mesmos resultado da apropriação de forças produtivas trazidas à existência pelas gerações pregressas.

O plano da consciência é outro atributo da atividade humana destacado por Márkus. Como atividade mediadora entre a necessidade e sua satisfação, o trabalho pressupõe a não-coincidência entre motivo da ação e seu objeto, o que torna necessário a ideação prévia. Ao elaborar o objeto natural de maneira consciente através do trabalho, o sujeito que trabalha se separa do objeto trabalhado, e se coloca diante dele como sujeito. Com a conclusão do processo de trabalho o resultado obtido no objeto trabalhado retroage sobre o plano previamente estabelecido pelo sujeito, viabilizando a subordinação de forças da natureza antes desconhecidas à satisfação de novas necessidades, e, consequentemente, uma prática cada vez mais consciente.

Márkus frisa que a consciência é sempre consciência de algo e tem sempre uma orientação objetual, ou seja, é sempre intencional. Se por um lado, a consciência aparece como reprodução mental da realidade a qual se refere, por outro, aparece como produção mental de objetivos, ideais e valores que se realizam por meio da atividade prática nesta realidade. Mesmo a consciência sensível não pode ser concebida como uma recepção passiva ou contemplativa, mas sim como uma forma de atividade produtiva, que envolve a seleção e apropriação de certos estímulos da natureza. Um último pressuposto importante da consciência é a linguagem e a comunicação, ou seja, algum grau de intersubjetividade e a possibilidade de expressar para os outros e para si mesmo algo que se deseja fazer.

No terceiro e último ensaio, “Essência humana e a História”, Márkus retoma os três aspectos principais do conceito de essência humana discutidos anteriormente, estendo-os e aprofundando-os. De acordo com a sua concepção, a essência do homem pode ser encontrada no trabalho, na sociabilidade e na consciência, assim como a universalidade que abarca e se manifesta em cada um destes momentos. Para o autor o ser humano é um ser natural, social e consciente, em processo de constante universalização. Tal definição repousa sobre uma caracterização móvel do conceito de substância, que o permite destacar esta universalização constante. Estes elementos presentes na reflexão de Márkus certamente são resultado de sua assimilação da contribuição madura de Lukács.

 

Referências bibliográficas

Althusser, L. Por Marx. Campinas: Editora Unicamp, 2015.

Coutinho, C. N. Prefácio. In: Márkus, G. Teoria do conhecimento no jovem Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

Fromm, E. O Conceito Marxista de Homem. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1962.

Lukács, G. Pensamento vivido: autobiografia em dialogo de György Lukács. Entrevista a  István Eórsi e Ersébert Vezér. São Paulo/Viçosa: Estudos e Edições ad Hominem; Editora da UFV,1999.

Márkus, G. Teoria do conhecimento no jovem Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

[Resenha a:] Arruzza, Cinzia; Bhattacharya, Tithi; Fraser, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.


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ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto.São Paulo: Boitempo, 2019.

Beatriz Rodrigues Sanchez [1]

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O livro “Feminismo para os 99%” de autoria de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, é inspirado no que as autoras chamam de “nova onda de ativismo combativo” que tem se espalhado ao redor do mundo, em vários continentes. Em um contexto de ascensão conservadora e autoritária em diversos países, os movimentos feministas têm aparecido como uma das principais forças capazes de se opor ao fechamento das democracias. Diante desse processo, reagir aos retrocessos não é suficiente. É preciso encontrar as possibilidades emancipatórias de superação do capitalismo a partir da proposição de alternativas radicais. É essa tarefa que o manifesto “Feminismo para os 99%” publicado nesse ano se propõe a cumprir.

Essa resenha será dividida em duas partes. Na primeira, resgataremos o pensamento de ativistas feministas que vieram antes de nós e que compartilham os pressupostos contidos no manifesto. Entre elas, estão as mulheres que criaram o Coletivo do Rio Combahee, nos EUA, e Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus, escritoras brasileiras. Na segunda parte, o manifesto será analisado à luz da obra da própria Nancy Fraser, uma das autoras do manifesto.

Na dedicatória do manifesto, as autoras escrevem: “Para o coletivo Combahee River, que anteviu o percurso desde cedo, e para as grevistas feministas polonesas e argentinas, que estão abrindo novos caminhos hoje”. Dessa maneira, as autoras articulam as lutas do passado e do presente, fazendo com que os caminhos desbravados por nossas antecessoras não sejam esquecidos. Nesse mesmo sentido é que resgataremos o pensamento de algumas teóricas, escritora e ativistas que antecederam o manifesto.

No ano de 1977 foi publicado nos EUA o texto de autoria do coletivo Combahee River intitulado “The Combahee River Collective Statement”. O coletivo Combahee River foi uma organização feminista composta por intelectuais e ativistas como Audre Lorde, que atuou em Boston entre os anos 1974 e 1980. Esse texto é considerado uma espécie de manifesto do movimento feminista negro nos EUA, pois influenciou os trabalhos posteriores de autoras que viriam a ser referências não somente para os movimentos feministas estadunidenses, mas também para feministas de outros países, como Angela Davis, bell hooks e diversas outras. Logo no início do texto, as ativistas do coletivo declaram que:

“A afirmação mais geral da nossa política no tempo presente seria a de que nós estamos ativamente comprometidas na luta contra as opressões racial, sexual, heterossexual e de classe, e vemos como nossa tarefa particular o desenvolvimento de uma análise e prática integradas baseadas no fato de que os principais sistemas de opressão são interligados. A síntese dessas opressões cria as circunstâncias das nossas vidas.” (Combahee River CollectiveStatement, 1977, tradução nossa)

É impressionante o fato de que esse texto tenha sido escrito no ano de 1977, muito antes de o conceito de interseccionalidade ter sido cunhado por Kimberlé Crenshaw (2002). O conceito de interseccionalidade tem sido utilizado contemporaneamente para expressar a ideia de que diversos eixos de opressão além do gênero marcam as experiências de vida das mulheres. No entanto, como é possível perceber por esse trecho, essa ideia já havia sido afirmada pelas feministas do Combahee River Collective na década de 1970. A articulação entre gênero, raça, classe e orientação sexual feita pelas autoras do Coletivo do Rio Combahee é totalmente coerente com as afirmações contidas no manifesto do Feminismo para os 99%.

No Brasil, teóricas e ativistas negras também foram precursoras ao afirmar a necessidade de articulação entre as dimensões de gênero, raça e classe. Ao mesmo tempo em que o coletivo Combahee River e, posteriormente, Angela Davis, bell hooks e outras teóricas feministas estadunidenses afirmavam a necessidade de incorporação da dominação de classe e de raça em um projeto político feminista radical, no Brasil, teóricas e escritoras como Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus caminhavam na mesma direção.

A trajetória de Lélia Gonzalez se confunde com a trajetória das primeiras organizações de mulheres negras brasileiras (RATTS e RIOS, 2010). Nascida no ano de 1935, em Belo Horizonte, filha de uma trabalhadora doméstica de ascendência indígena e de um trabalhador ferroviário negro, entrou na universidade em meados dos anos 1950, quando teve contato com o movimento negro. No ano de 1980, na reunião do Grupo de Trabalho “Temas e problemas da população negra no Brasil”, no IV Encontro Anual da ANPOCS, Lélia Gonzalez apresentou o texto intitulado “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Em um trecho do texto a autora afirma:

“O fato é que, enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar nossa reflexão, ao invés de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que nos eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais. Os textos só nos falavam da mulher negra numa perspectiva sócio-econômica que elucidava uma série de problemas propostos pelas relações raciais. Mas ficava (e ficará) sempre um resto que desafiava as explicações.” (Gonzalez, 1983, p. 225)

Nesse trecho, Lélia Gonzalez aponta para as especificidades das opressões vividas por mulheres negras e critica as ciências sociais brasileiras por, de maneira geral, incorporarem o racismo apenas a partir de uma perspectiva econômica, não levando em consideração outras dimensões dessa opressão. Além disso, a autora defende que a articulação entre as categorias de raça, classe, sexo e poder é necessária para que as estruturas de dominação da sociedade possam ser identificadas. Dessa forma, racismo, sexismo e classismo são para ela eixos estruturantes da dominação e sua imbricação faz com que as mulheres negras pobres ocupem uma posição desigual na estrutura social em relação às mulheres brancas e de classe média. Como consequência, para Lélia Gonzalez, nenhum movimento de mulheres pode ser considerado realmente feminista se não levar em consideração as especificidades vividas pelas mulheres negras. Essas afirmações também são totalmente convergentes com o manifesto Feminismo para os 99%.

Carolina Maria de Jesus, por sua vez, foi catadora de papel e viveu na favela do Canindé em São Paulo. Em seu livro “Quarto de despejo”, publicado pela primeira vez em agosto de 1960, a autora também articula, a partir de sua própria experiência, as opressões de gênero, classe e raça. A obra é uma reunião de cerca de vinte diários escritos por Carolina Maria de Jesus e editados pelo jornalista Audálio Dantas. Alguns trechos revelam a capacidade da autora em imbricar capitalismo, racismo e sexismo:

 “Passei no açougue para comprar meio quilo de carne para bife. Os preços era 24 e 28. Fiquei nervosa com a diferença dos preços. O açougueiro explicou-me que o filé é mais caro. Pensei na desventura da vaca, a escrava do homem. Que passa a existência no mato, se alimenta com vegetais, gosta de sal mas o homem não dá porque custa caro. Depois de morta é dividida. Tabelada e selecionada. E morre quando o homem quer. Em vida, dá dinheiro ao homem. E morta enriquece o homem. Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com essas desorganizações.” (Jesus, 2014, p. 70)

Talíria Petrone, atualmente deputada federal pelo PSOL, escreveu o prefácio à edição brasileira do manifesto Feminismo para os 99%. No texto, ela chama atenção para outro trecho da obra de Carolina Maria de Jesus que também impressiona por sua força e concretude:

“A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago. (….) Eu escrevia as peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me: É pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro minha pele negra e meu cabelo rústico. Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta” (Ibid., 2014, p. 44)

Esses dois trechos do diário de Carolina Maria de Jesus corroboram a tese defendida pelas autoras do Feminismo para os 99% de que o feminismo necessariamente deve ser anticapitalista e antirracista, em oposição às tendências contemporâneas do feminismo liberal, que separa a luta de classes da luta feminista.

Tendo como base esses pressupostos, partiremos para a análise do manifesto à luz da obra de Nancy Fraser, uma das principais teóricas da tradição da teoria crítica e uma das autoras do manifesto.

Em primeiro lugar, é possível afirmar que o manifesto representa uma evolução em relação a obras anteriores da autora, já que desenvolve de maneira mais complexa a noção de justiça social. Anteriormente, o conceito de justiça elaborado por Fraser incorporava as dimensões da redistribuição material e do reconhecimento cultural (FRASER, 2001). Mais recentemente, a dimensão da representação política também foi incorporada pela perspectiva da filósofa (FRASER, 2009).  Essa concepção de justiça foi formulada pela autora como uma crítica a leituras marxistas mais tradicionais que, de modo puramente economicista, olhavam apenas para a opressão capitalista como fonte de injustiças. Desse ponto de vista, a crítica feita por Fraser é semelhante à crítica formulada por Lélia Gonzalez apresentada anteriormente.

No manifesto do Feminismo para os 99%, uma formulação ainda mais complexa de justiça é apresentada. De acordo com as autoras, a crise contemporânea do capitalismo articula as dimensões da economia, da política, da cultura e do meio ambiente. Como consequência, a luta feminista deve ser necessariamente internacionalista, ecossocialista e antirracista. Isso significa que a noção de justiça que antes era tridimensional (redistribuição, reconhecimento e representação) passa a ser multidimensional e aberta para novas dimensões.

Outros dois elementos presentes no manifesto são desenvolvimentos de textos mais recentes de Fraser: a suposta oposição entre o reacionarismo conservador e o neoliberalismo progressista e a dicotomia artificial entre políticas identitárias e luta de classes.

No manifesto, as autoras defendem a necessidade de criação de um novo horizonte utópico que vá além da oposição entre reacionarismo conservador e neoliberalismo progressista. As consequências negativas que o neoliberalismo progressista traz para uma sociedade verdadeiramente justa já haviam sido abordadas por Fraser em outros textos (Fraser, 2018). As reivindicações feitas por parte dos movimentos feministas para que as mulheres sejam líderes em grandes empresas seriam um exemplo do que Fraser chama de neoliberalismo progressista, uma vez que a quebra do teto de vidro não questiona a estrutura do capitalismo e perpetua a exploração de mulheres mais pobres, especialmente as mulheres não brancas. As greves de mulheres ao redor do mundo, especialmente na Polônia e na Argentina, animaram essa reflexão contida no manifesto ao comprovar que uma alternativa socialista ainda pode estar no horizonte utópico de emancipação dos movimentos feministas.

Um outro ponto tratado pelo manifesto diz respeito ao combate à dicotomia entre políticas identitárias e luta de classes. O feminismo liberal, ao separar essas duas noções, acaba se tornando mais uma vez convergente com o capitalismo e, consequentemente, com a opressão das mulheres, especialmente as mulheres não-brancas. As autoras defendem que as políticas identitárias e a luta de classes estão imbricadas, o que acaba borrando as fronteiras entre público e privado. Nas palavras das próprias autoras:

 “A nova onda feminista tem potencial para superar a oposição obstinada e dissociadora entre “política identitária e política de classe”. Desvelando a unidade entre “local de trabalho” e “vida privada”, essa onda se recusa a limitar suas lutas a um desses espaços”. (Arruzza et al., 2019, p. 34)

Esses aspectos demonstram o caráter radical do manifesto, que pretende nada mais nada menos do que ser uma atualização do Manifesto Comunista de Marx e Engels. Ao longo de todo o texto, assim como no manifesto marxista, teoria e prática se juntam para apresentar alternativas ao capitalismo, nesse caso o capitalismo neoliberal, com muita beleza e poesia. Dois trechos do manifesto são especialmente bonitos. Encerro essa resenha com eles:

“Em resumo, a nova onda de ativismo feminista combativo está redescobrindo a ideia do impossível, reivindicando tanto pão como rosas: o pão que décadas de neoliberalismo tiraram de nossas mesas, mas também a beleza que nutre nosso espírito por meio da euforia da rebelião.” (ARRUZZA et al, 2019, p.36)

“O feminismo para os 99% é um feminismo anticapitalista inquieto – que não pode nunca se satisfazer com equivalência, até que tenhamos igualdade; nunca satisfeito com direitos legais, até que tenhamos justiça; e nunca satisfeito com a democracia, até que a liberdade individual seja ajustada na base da liberdade para todas as pessoas”.  (Ibid., 2019, p. 123)

Referências bibliográficas

Arruzza, C.; Bhattacharya, T.; Fraser, N.Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.

Combahee River Collective. The Combahee River Collective statement. [1978]. In:Smith, B. (org.). Home girls: a black feminist anthology. New Jersey,Rutgers University Press, 2008.

Crenshaw,K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, n. 10, v. 1, p. 171-188, 2002.

Fraser, N.Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: Souza, J. (org.)Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UnB, 2001.

_____. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado.Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 77, 2009.

_____. Do neoliberalismo progressista a Trump – e além. Revista Política & Sociedade, v.17, n. 40, 2018.

Gonzalez, L.Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Silva, L. A.et al. Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Ciências Sociais Hoje, Brasília: ANPOCS, 1983.

Jesus, C. M.Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.

Ratts, A.; Rios, F. Lélia Gonzalez. São Paulo: Summus/Selo Negro, 2010.

Nota

[1]Doutoranda e mestra em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. É formada em Relações Internacionais pela mesma Universidade. É pesquisadora do Grupo de Estudos de Gênero e Política da Universidade de São Paulo.

[Resenha a:] Anderson, Perry. Duas revoluções: Rússia e China. São Paulo: Boitempo, 2019


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ANDERSON, Perry. Duas revoluções: Rússia e China. São Paulo: Boitempo, 2019.

Por Fernando Cauduro Pureza

ACESSE AQUI O PDFNo momento em que escrevo esta resenha, posso afirmar que temos uma carência, no mercado editorial brasileiro, de livros acerca da história e da historiografia chinesa. Mesmo alguns dos sinólogos mais famosos do mundo atual possuem poucas peças traduzidas que chegaram até o Brasil. Alguns manuais importantes, como o livro de Jonathan Spence, Em busca da China Moderna, já não é reeditado há alguns anos. O compêndio China, uma nova História, de John King Fairbank e Merle Goldman, também segue esgotado e de difícil acesso. O livro do historiador sino-americano, Immanuel Hsu, The rise of Modern China, sequer adentrou no mercado editorial brasileiro e mesmo sinólogos mais contemporâneos, como Elizabeth J. Perry ou Merle Goldman, são praticamente desconhecidos em nossas universidades. No próprio campo das esquerdas, o famoso artigo de Isaac Deutscher, “Maoism: Its origins and outlooks”, publicado em 1964, nunca foi traduzido para o português. Essa lacuna, por si só, já torna o livro de Perry Anderson, Duas revoluções: Rússia e China, um verdadeiro marco para futuras reflexões sobre a China, ampliando o leque de leituras para historiadores e para a própria esquerda refletir sobre o passado recente chinês.

Apesar do título fazer referência a Rússia e China, a edição do livro não deve deixar dúvidas: o foco central de análise é a experiência do socialismo chinês contemporâneo. O prefácio de Luiz Gonzaga Belluzzo, a réplica de Wang Chaohua e o posfácio de Rosana Pinehiro-Machado são reflexões sobre a questão chinesa, no qual a experiência soviética e o seu colapso são dados laterais para considerações mais profundas. Dessa forma, se o leitor espera uma reflexão comparativa em todos os textos da edição, ele irá encontrá-la apenas no texto de Perry Anderson, que dá título ao livro. Para fins dessa resenha, pretendo deixar de lado os textos de Luiz Gonzaga Belluzzo e Rosana Pinheiro-Machado. Não obstante sejam interessantíssimos, eles abrem e fecham a discussão apontando para possibilidades analíticas oriundas tanto do ensaio de Anderson como da resposta de Chaohua. Permito-me aqui, contudo, concentrar-me nesses dois autores e problematizar inicialmente a comparação que Perry Anderson sugere e dá título ao livro.

Talvez se possa questionar, de fato, até que ponto essa reflexão é encontrada. Para Anderson, a questão de fundo é o contraste entre o desfecho da Revolução Chinesa e o desfecho da Revolução Russa. E, se por um lado, a história da primeira segue seu curso ainda nos dias de hoje, a segunda, com a dissolução da União Soviética, tornou-se a história de uma debacle. E para poder pensar sobre o que ele chama de “impressionante contraste” entre ambas, Anderson subdivide a sua reflexão em quatro pontos: as diferenças entre os agentes políticos das duas revoluções, as condições objetivas que os partidos encararam no curso das reformas, as consequências concretas das políticas que adotaram e, por fim, quais legados de longa duração que eventualmente condicionaram os desfechos dos processos revolucionários. De cada subdivisão, Anderson constrói um subcapítulo e procura trabalhar com uma perspectiva comparada.

Seria enfadonho reproduzir ipsis litterisos argumentos do autor, mas em linhas gerais pode se apontar algumas questões importantes para uma reflexão comparada dos processos revolucionários. Um exemplo disso é que Anderson afirma que, enquanto o PCCh teria maior penetração social na comunidade camponesa chinesa durante os anos de guerra civil, a guerra civil russa viu uma consolidação mais violenta do partido bolchevique. A partir dessa consideração, se subentende uma lógica que, enquanto no caso soviético a revolução precedeu a guerra civil, no caso chinês, a guerra civil precedeu a revolução. O resultado é que no processo revolucionário chinês haveria uma penetração e uma coesão muito mais profunda do que o caso russo – e nesse aspecto, o discurso da identidade nacional é um fator crucial, ainda mais considerando a pluralidade de identidades nacionais que coexistiram durante a experiência soviética. Disso resultam outras experiências contrastantes como a Revolução Cultural chinesa e a coletivização dos campos na União Soviética stalinista que, não obstante o alto custo humano de ambas, estariam em dissonância quanto aos seus objetivos e os meios. Nesse sentido, o texto de Anderson ecoa diretamente algumas das concepções de Isaac Deutscher, em especial naquilo que ele apontava como impasse do maoísmo ao não aderir o internacionalismo revolucionário.

Todavia, a partir do segundo subcapítulo, Anderson passa a concentrar esforços nas mutações e aqui os saltos temporais talvez fiquem mais evidentes. As eras Kruschev e Brejnev passam a ser comparada com o governo de Deng Xiaoping. As mutações tornam-se fenômenos de conjunturas históricas diferentes e que se aproximam após a morte de Mao Zedong. Dessa aproximação, Anderson destaca que as distâncias geracionais em relação aos jovens e as revoluções que seus pais e até mesmo os avós participaram, se acentuam durante os anos 1970 e 1980. É o momento em que as intelligentsias dos partidos comunistas e ao corpo burocrático do Estado tiveram que dar uma narrativa revolucionária a milhares de jovens que não viveram esse processo – ou aquilo que Jonathan Spencer chamou de “o gostinho da revolução” (Spence, 1995, p. 512). Nesse ponto, a máquina chinesa mostrou-se operacional numa escala que a União Soviética não poderia consolidar. A descentralização política, como ressalta Anderson, era uma constante da experiência chinesa e que permita um grau de autonomia política dos dirigentes comunistas muito diferente daquela que experimentavam os dirigentes soviéticos.

Isso, contudo, não exime a análise de Anderson de certos recursos retóricos laudatórios que, no final, mostram-se constrangedores, com doses de orientalismo (ao afirmar a força das “tradições geoculturais chinesas em relação à modernização russa do século XIX) e um psicologismo pueril. O elogio aos dirigentes chineses pós-Mao Zedong, o autor os descreve como dotados de uma “têmpera leninista: radicais, disciplinados, criativos – capazes a um só tempo de paciência tática e de experimentação cautelosa, das iniciativas mais ousadas e das guinadas mais dramáticas”. (Anderson, 2019, p. 46-47) Assim, haveria uma espécie de grande continuidade entre os momentos dramáticos da Grande Marcha até os anúncios das primeiras reformas do “socialismo de via chinesa” promovidos por Deng Xiaoping. Aquilo que antes era uma discussão sobre autonomia política e consolidação de reformas passa a ser uma discussão sobre o caráter dos dirigentes chineses. E se esse é um ponto determinante de diferença na comparação entre as reformas de Deng e de Gorbachev, é importante que se diga que aqui Anderson anuncia uma ruptura com o argumento de Isaac Deutscher, que afirmava a importância do fervor chinês pelo “internacionalismo leninista” (Deutscher, 1964).

A retidão das reformas passa a ser tônica das partes seguintes do ensaio – a formação das “Empresas de Povoados e Aldeias” e das “Zonas Econômicas e Especiais” da era Xioping passam a ser o resultado de líderes que defenderam e protegeram a descentralização política e a relativa autonomia local. E o fizeram justamente por manterem essa “têmpera leninista”. Todavia, enquanto isso, a União Soviética mergulhava em colapso…as reformas de Gorbachev soçobraram e a estrutura burocrática do partido não acompanhou as mudanças desejadas na estrutura da sociedade. Nessa tensão, a falta de uma “têmpera leninista” talvez tenha apressado o colapso da União Soviética. Como o próprio Anderson afirma, “talvez a diferença mais decisiva entre a Rússia e a China residisse no caráter de suas lideranças políticas” (Anderson, 2019, p. 46).

Disso decorre que as duas últimas partes do ensaio passam a focar exclusivamente em como o Partido Comunista Chinês manteve seu domínio político, não obstante as reformas que empreendera desde 1978 – a União Soviética sequer aparece e a Rússia não merece mais do que uma nota de rodapé após o colapso do regime. No plano chinês, Deng Xiaoping mostra-se um guru sábio que, diante dos protestos de 1989, não adere ao liberalismo e entende o recuo ao capitalismo como um movimento estratégico. A larga escala da privatização econômica, que serviu de impulso ao desenvolvimento das décadas posteriores, possibilitou que a China se tornasse a “oficina do mundo”. Os líderes chineses, dotados de um caráter excepcional, passam a conduzir um processo de reformas que passa a ser visto como um “retorno” a um cenário econômico anterior ao século XIX (de acordo com as teses de Kenneth Pomeranz e Giovanni Arrighi) e a China encontra-se com o seu passado. Esse encontro, como ressalta Anderson, não é desprovido de tensões – inclusive de lutas de classes, com trabalhadores sendo tratados de modo abusivo e impiedoso, ou de camponeses espoliados de suas terras e meios de subsistência. E se a China agora resume seu lugar na economia política global, não a faz desprovida de tensões.

O interessante, contudo, é que o caráter enigmático pelo qual termina o ensaio serve como ensejo para o texto de resposta da pesquisadora e militante chinesa, Wang Chaohua. Exilada nos Estados Unidos desde 1990, Chaohua foi uma das lideranças da Associação Estudantil Autônoma de Beijing e ajudou a liderar os protestos estudantis na praça Tiananmen. Essa apresentação por si só deixa claro que a ênfase da crítica da autora está justamente na apreciação de Anderson sobre a China. E suas críticas são enfáticas: ao contrário do que Perry Anderson escrevera, ela entende que as reformas chinesas promovidas por Deng Xiaoping não são uma continuidade de aspectos positivos do período revolucionário, mas sim um processo de supressão dessa continuidade.

Essa é uma questão crucial para o argumento de Chaohua: a ideia de continuidade da revolução precisa ser repensada em toda a sua estrutura. A autora questiona, por exemplo, por que Anderson compara uma revolução de 1917 e outra de 1949 quando havia a possibilidade de comparar com o processo revolucionário chinês de 1911, que instaurou a República da China. Da mesma forma, Anderson ignoraria o envolvimento de soviéticos e chineses no apoio a revolucionários durante a Guerra Fria e sequer comenta que, dessa distinção, o PCCh jamais levou adiante uma bandeira maoísta de solidariedade internacional – de fato, os princípios da política externa formulada pelo chanceler Zhou Enlai apostaram constantemente na autonomia dos povos. Essas diferenças não são pequenas e acabam deflagrando uma forma completamente diferente pelas quais ambos países, Rússia e China, adentram no período de reformas. Por um lado, a experiência chinesa seria cheia de avanços e refluxos desde o período de 1911. Por outro, a experiência soviética seria marcada pela consolidação do poder do PCUS, não obstante eventos como a Guerra Civil, a Segunda Guerra Mundial e as disputas entre as lideranças pós-Stalin.

A ideia de Chaohua de começar a ver avanços e refluxos em processos revolucionários avança e consolida também a compreensão de crises e reformas como elementos em tensão. As reformas podem ser oriundas de crises – por exemplo, entender a Revolução Cultural como consequência decorrente das lutas internas do PCCh após o fracasso do Grande Salto para Frente, ou que as reformas de Deng Xiaoping foram acompanhadas de uma estagnação econômica que já durava mais de década na China, com crise de abastecimento em mercados locais e uma disputa fracionista na cúpula do partido após a morte de Mao Zedong. Essas crises, antes e durante o período das reformas, são ignoradas por Anderson, mas são centrais na crítica de Chaohua. Para ela, é a partir dessas tensões que podemos chegar a uma análise sobre as reformas que fuja da inevitabilidade histórica que a análise de Anderson propõe.

Ao invés de secundar a tese de uma “têmpera leninista” dos antigos dirigentes, Wang Chaohua aposta na manipulação dos anciãos, capazes de reestruturar o partido em um processo pouco democrático e de perseguição interna profunda. Treze anos após a morte de Mao, três líderes máximos do partido tinham sido removidos dos seus cargos. A crise política era consolidada pelos próprios dirigentes, que procuravam neutralizar qualquer iniciativa que visasse reformular o Estado sem a aquiescência de Deng. A partir do governo de Jiang Zemin (1989-2002), inaugurava-se uma fase onde o chefe do Partido passou a assumir, simultaneamente, o cargo de chefe de Estado e de comandante militar supremo – uma novidade que perdura até hoje (Chaohua, 2019, p. 96).

O que sobra quanto a imagem de Deng Xiaoping não é mais o dirigente experimentado, inovador e prudente, mas sim um político cuja guinada rumo ao conservadorismo era clara já na década de 1980 – mas tão logo as reformas econômicas fossem bem recebidas, não haveria o que temer. O sinal de abalo, contudo, veio em 1988. Zhao Ziyang, primeiro ministro na época, passou a advogar a necessidade de uma política de reajuste de preços, diante da liberalização econômica dos anos anteriores. Todavia, uma das consequências das reformas era a intensa migração campo-cidade, uma constante do desenvolvimento chinês da época. Ao chegarem na cidade, os camponeses tinham a promessa de empregos mais bem remunerados, mas o custo de vida subira para além do desejado – o que afetou bastante os estudantes que saíam de cidades, vilas e aldeias rurais para estudar nas grandes cidades, rompendo com o isolamento dos períodos anteriores. Assim, os eventos de 1989 não seriam meros distúrbios em prol de reformas ocidentalizantes, mas possuem uma base material fundamental para pensarmos inclusive a participação de trabalhadores e trabalhadoras nos protestos na praça Tiananmen (Vukovich, 2013, p. 45-46). Cair nessa narrativa, como salienta Chaohua, é cair na narrativa promovida por Xiaoping de que nada é mais importante que a “estabilidade” – ou seja, acreditar que os protestos são rupturas numa ordem a qual o partido se esforça para manter sólida e irredutível.

Ainda que a autora considere que o texto de Anderson apresenta um futuro nebuloso, no qual a China reencontra-se com seu passado sob os perigos de uma modernidade incerta, Chaouhua apresenta uma contra-narrativa importante. Ela considera que o próprio socialismo chinês é, hoje, um instrumento legitimador de práticas voltadas para a acumulação de capital e para a expropriação de pessoas dos seus bens comuns. Embora o capital financeiro, estatal ou estrangeiro, seja a grande força transformadora da sociedade chinesa na era pós-reformas, a legitimidade política de transformações como o despejo de camponeses nas barragens do Yang-Tsé ou a remoção de pastores na Mongólia Interior acaba residindo no discurso oficial de “socialismo de via chinesa” ou “sociedade harmoniosa”. No final das contas, para Chaohua a esquerda precisa compreender esse processo, portanto, para além de uma grande continuidade na qual uma “têmpera leninista” imemorial guia as lideranças chinesas de Mao Zedong a Xi Jinping.

Isso não é um alerta inocente. Como Daniel Vurkovich alertou em seu livro China and Orientalism: Western knowledge production and the P.R.C., os pesquisadores sinólogos não podem se ver diante do falso dilema entre um historicismo comparativo e um relativismo ahistórico (Ibid., p. 15). O ensaio de Anderson sem dúvida enfrenta esse dilema, mas por vezes escorrega tanto no primeiro aforismo como no segundo.

Quando se propõe a uma comparação, Anderson pega proporções completamente distintas da história russa e da história chinesa, ignorando questões como a própria noção de revolução presente nos dois contextos, bem como as crises e as reformas que formam um sentimento de idas e vindas de um processo caótico como costumam ser processos revolucionários. Ainda que seja louvável responder a pergunta sobre porque um processo deu certo e outro não, essa comparação historicista esbarra em questões chave para qualquer um que análise processos revolucionários, ou seja, o seu significado para os agentes, bem como seus avanços e seus recuos.

Por sua vez, há momentos em que o culturalismo entra em cena e as ações dos dirigentes chineses passam a receber um tom psicologizante e laudatório, como se fosse suficiente explicar grandes processos sociais pelo “caráter das lideranças políticas” (Anderson, 2019, p. 46). Além disso, a ideia de “tradições geoculturais” da China serve para criar uma noção de história imóvel, de longuíssima duração, onde o Estado chinês “jamais sofrera a rivalidade de qualquer Estado comparável da região” até meados do século XIX – ignorando, possivelmente, as guerras civis e as invasões mongóis no território chinês. A atemporalidade faz parte de um discurso orientalista, como ressalta Edward Said (Said,2003, p. 65), uma espécie de história – e também geografia – imaginária, capaz de demarcar as diferenças entre eu e o outro. O tempo “intemporal” é uma marca que passa a impressão de “repetição e força” (Ibid., p. 81), consolidando um objeto sólido, apreensível, pouco sujeito a transformações.

Talvez seja exagero afirmar que a história da China, presente na análise de Perry Anderson, seja essa demonstração de tempo estático característica do orientalismo. Ainda assim, a crítica de Chaohua aponta para limites nos quais as esquerdas, ao olharem para a história da China, não podem se deixar seduzir por “têmperas leninistas” ou por tradições imemoriais. Se a crítica ao capital é o que caracteriza os socialistas de todo o mundo, debruçar-se sobre a experiência chinesa, por sobre suas revoluções e suas reformas, talvez seja a melhor forma de encarar também as metamorfoses do capital e seus deslocamentos geográficos nas últimas décadas.

Referências bibliográficas

Anderson, P.Duas revoluções: Rússia e China. São Paulo: Boitempo, 2018.

Chaohua, W. O partido e sua história de sucesso: uma resposta a “Duas revoluções”. In: Anderson, P. Duas revoluções: Rússia e China. São Paulo: Boitempo, 2018.

Deutscher, I. Maoism: Its origins and its outlooks” Socialist Register/ Le Temps Modernes, 1964.  Disponível em: https://marxists.architexturez.net/archive/deutscher/1964/maoism-origins-outlook.htm

Said, E.Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras. 2003.

Spence, J. Em busca da China moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Vukovich, D. China and Orientalism: Western knowledge production and the P.R.C.London and New York: Routledge, 2013

[Resenha a:] Karepovs, Dainis. Pas de Politique Mariô! Mario Pedrosa e a Política. Cotia/SãoPaulo: Ateliê Editorial/Fundação Perseu Abramo, 2017.


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Karepovs, Dainis. Pas de Politique Mariô! Mario Pedrosa e a Política. Cotia/SãoPaulo: Ateliê Editorial/Fundação Perseu Abramo, 2017.

Por Luccas Maldonado [1]

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A segunda década do século XXI mostra-se como um momento privilegiado na temática biografias; ano-pós-ano trabalhos interessantes, ricamente documentados e cuidadosamente escritos, são publicados. Personagens como Getúlio Vargas, Mário de Andrade, Francisco Julião, Caio Prado Júnior, Lima Barreto, Carlos Marighella, Luiz Carlos Prestes e outros mais foram tangidos. Dentro dessa lista, mostra-se perceptível a atenção que as figuras da esquerda brasileira despertaram entre os escritores. Desde a publicação de Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundode Mario Magalhães (2012), parece existir uma curiosidade para com esse perfil.[2]Nesse sentido, filiados históricos do Partido Comunista Brasileiro (PCB), como Prestes, Marighella e Prado Júnior, foram extensivamente e qualitativamente explorados. No interior do movimento, os trotskistas, por sua vez, ainda não haviam sido palco de grandes atenções, pelo menos até então: Dainis Karepovs (2017) veio dispor a sua contribuição por meio de uma biografia de Mario Pedrosa.

Pas de Politique Mariô! Mario Pedrosa e a Política é o segundo livro de Karepovs que se dedica à história do trotskismo brasileiro. O primeiro, que na prática é a sua dissertação de mestrado, é um amplo estudo do conflito entre a direção nacional do PCB e o Comitê Regional de São Paulo no final dos anos 1930 – processo que resultou, após intervenção da Internacional Comunista (IC), em um profundo racha na organização. Tal obra, intitulada Luta Subterrânea(2003), é um trabalho paradigmático, devido ao amplo exercício documental, nos estudos do trotskismo brasileiro e da história do Partido Comunista pós-insurreição de 1935. De sua autoria, existem também artigos em revistas acadêmicas e coletâneas; além de ser um dos organizadores, junto de Fulvio Abramo, de uma reunião de documentos ligados à história da primeira geração de trotskistas brasileiros, Na Contracorrente da História(1987). Karepovs possui também pesquisas dedicadas ao PCB e à República Velha, como a sua tese de doutoramento (2006); a apresentar, dessa forma, um considerável repertório e domínio sobre a história política brasileira.

  Pas de Politique Mariô! […] possui pouco menos do que 300 páginas. Sua composição como projeto expositivo conta com duas seções delimitadas e uma não. A primeira, a não explícita, trata-se de uma reunião de três textos introdutórios: dois de Karepovs e um rubricado pela docente da UNESP, Isabel Loureiro. As seções seguintes, intituladas “Mario Pedrosa e a Política” e “Mario Pedrosa sob o olhar emocionado de seus companheiros”, em certa medida rememoram en passant aampla coleção de História da República empreendida pelo historiador Edgard Carone na segunda metade do século XX – docente da USP que fora orientador de doutorado do autor da biografia. Em resumo, Carone dividiu o período republicano em diversos momentos e, para cada um deles, elaborou uma brochura de análises e outra de documentos.[3] Karepovsrealiza o mesmo movimento, mas em menor projeção, no seu estudo sobre Pedrosa: um espaço analítico e outro documental.[4]

  Pedrosa foi um personagem complexo. Sua trajetória caracteriza-se por duas grandes faces holísticas: uma artística e outra política. Divisão que se confunde em uma amálgama ao se encarar a sua vida. Por exemplo, a aproximação para com as concepções de esquerda deu-se concomitantemente ao acercamento do surrealismo; processo que similarmente desdobrou-se com a avant-gardeadmirada pelo biografado, a qual se ligou ao socialismo e ao protesto contra a Primeira Guerra Mundial. Os dois rostos de Pedrosa são arranjos analíticos, construídos pelos estudiosos nas suas descrições e interpretações, que não existiram na realidade objetiva. Essa particularidade constituiu-se como importante detalhe a respeito da obra elaborada por Karepovs uma vez que, na sua narrativa histórica, faz uma opção por dispor, em primeiro plano, o itinerário político desse homem, a descrever as atividades artísticas somente tangencialmente, quando incontornáveis.[5] Para o autor da investigação, existiria um sentido, um “fio de continuidade”, responsável por oferecer coerência ao percurso do biografado: a manutenção de uma posição marxista, “foi um daqueles que jamais abriram mão do marxismo” (Karepovs, 2017, p. 23). Exatamente esse longo trajeto, que comtempla todo o interim da existência de Pedrosa, é uma marca do livro: o primeiro a estudá-lo integralmente.[6]

O estudo elaborado por Karepovspossui nove capítulos organizados diacronicamente, os quais são divididos a partir de mudanças qualitativas na posição política do personagem. Inicia-se na militância de Pedrosa dentro do PCB e na sua atuação junto de Leon Trotsky, quando ajudou a organizar a Oposição de Esquerda e a IV Internacional no Brasil e na América Latina. O capítulo dedicado às conexões com o revolucionário bolchevique é o mais extenso, certamente por ser uma temática investigada anteriormente pelo autor e com considerável bibliografia acerca. Desenvolve-se com o trabalho empreendido pelo personagem no jornal Vanguarda Socialista e com a sua filiação e participação no Partido Socialista Brasileiro (PSB), a transpassar pela frequente e intensa oposição que fez a Getúlio Vargas e seus correligionários no interim.

Segue com a expulsão da legenda socialista, devido à colaboração em um outro grupo político (Ação Democrática), e pondera sobre o aprofundamento analítico desenvolvido a partir do final da década de 1950, quando começou a refletir a respeito da problemática da Revolução Brasileirae cambiou as suas leituras para um viés mais elaborado, a considerar a questão agrária, os limites da participação na democracia e a história brasileira como um processo mais amplo de embates e interesses; tal momento reflexivo levar-lhe-ia à redação de dois importantes livros, componentes de um único projeto, os quais são a magnum opus política de Pedrosa (1966; 1966). E encerra-se com o exílio, primeiro chinelo, depois francês, os estudos e escritos permeados de influência da teórica alemã Rosa Luxemburgo e a participação na fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) de Mario Pedrosa. Nas últimas passagens da obra, Karepovs levanta uma interessante e polêmica interpretação a respeito do caráter que os textos de Pedrosa iriam adquirir nas suas últimas décadas. Na perspectiva do autor, o antigo militante trotskista possuiria uma expressiva originalidade na sua concepção do imperialismo, a pautar questões relacionadas com as consequências da expansão capitalista nas margens da economia mundial e o subdesenvolvimento de maneira inovadora e original; seria um uso matutino da Anschauungde Rosa Luxemburgo que somente anos depois começaria a ser explorado mais profundamente por outros intelectuais, como por exemplo por David Harvey.

O caráter seletivo da narrativa histórica traz consigo, per se, uma opção por parte do especialista do seu ofício, quer dizer, os trabalhos históricos “são, de saída, abusos do esquecimento” por elegerem aquilo que será destacado e ao mesmo tempo lançarem ao ostracismo, pela não escolha, o que suspostamente desinteressa (Ricoeur, 2007, p. 455). Perspectiva interessante, pois, pode ser manejada como um componente, conjugado com uma precisa matriz conceitual, para se fazer uma sucinta consideração acerca do local ocupado pela nova investida de Karepovs. Pedrosa foi um exemplar inspirador de um tempo e de uma sociedade, carregou na sua vida intensidades, conhecimentos e caminhos notáveis; um espírito de uma época. No entanto, é preciso indagar: o autor, por meio da documentação reunida, selecionada e evidenciada, revela o que sobre os espaços sociais ocupados e influenciados pelo personagem; ele esteve nas margens ou no centro do processo histórico; fez aquilo que lhe era esperado ou rompeu com a tendência para instituir o novo?

A opção de Karepovs preteriu um homem que, por diversas vezes, traçou o menos evidente. Elegeu ser marxista em um país no qual a sociedade civil nunca tomou formas amplas, ainda mais: foi um trotskista, a ala mais maldita das esquerdas. Abraçou a carreira de crítico de arte em um ramo secundário do jardim das musas que frequentemente destratou filhos seus. Originário da elite econômica e política brasileira, com pai dentro do parlamento, traiu a própria classe. Assim, fixou-se em uma existência pária, capaz de revelar o que foge do configurado, sobre o inesperado na armação das estruturas. A notoriedade do gênero biográfico está na capacidade de esmiuçar, pelo precisão dos contextos, os aspectos do repetitivo/dominante ou do marginal/inesperado.[7] A narrativa histórica de Pas de Politique Mariô! evidencia o segundo âmbito: a vida de um homem que, tendo tudo para seguir os rumos mais casualísticos, construiu o imprevisível. Contudo, isso não quer dizer que o estudo caia na armadilha do exclusivismo sui generis; pelo contrário, intenta explicar pela diferença o estrutural, quer dizer, pela militância socialista de uma biografia, aspectos do sistema político brasileiro e outras questões mais.

A concluir, Karepovs é autor de um trabalho interessante e qualitativo; será   provavelmente um marco nos estudos de Pedrosa, por ser o primeiro a traçar o seu itinerário do princípio ao fim. Como autor, não obstante seja distante das elaborações teóricas e prefira com maior afinidade a descrição, não cai nas ilusões e nos perigos que envolvem a escrita biográfica, como as elencadas por Pierre Bourdieu (2006). Diante das possíveis ponderações originárias desse pensador francês, o qual afirma que a vida é um processo demasiadamente longo para se procurar uma racionalidade ipso fato/em si mesma, o escritor brasileiro integra seu objeto dentro de um contexto histórico e social, a estar, portanto, mais próximo da ciência do que da literatura – assim, talvez o Mario Pedrosa de Karepovs não fosse executado pelo júri de L’Étranger (Camus, 1977). Como um exercício pioneiro, carece de proporcionalidade, passagens são ricamente exploradas e documentadas e outras rapidamente tangidas e de um exercício contextualista mais aprofundado, ele é existente conforme o enunciado, porém, necessita de raízes mais assentadas, algo mais próximo do que fez Quentin Skinner (1996; 2010) com Maquiavel, Louis Fischer (1967) com Lênin ou Jonathan Steinberg (2015) com Bismarck. Condições que certamente derivam da origem do projeto, não pensado para ser um livro unitário, mas sim uma introdução de um volume na coleção Mario Pedrosa na extinta editora Cosac Naify. Conforme o próprio autor elucida em umas das suas introduções, Pas de Politique Mariô! não pretende ser uma biografia definitiva do personagem, no entanto, a pedra fundamental de uma construção que está para ser feita.

 

Referências bibliográficas

Abramo, F.; Karepovs, D. Na Contracorrente da História: Documentos da Liga Comunista Internacionalista (1930-1933). São Paulo: Brasiliense, 1987.

Arantes, O. B. F. Mario Pedrosa: itinerário crítico. 2º ed. São Paulo: Cosaf Naify, 2004.

Bourdieu, P. “A ilusão biográfica”, in: AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos & Abusos da história oral. 8º ed. Rio de janeiro: FGV, 2006.

Camus, A. L’Étranger. Paris: Gallimard, 1977.

Coelho, J. M. Entrevista: Edgard Carone. A República em capítulos: como trabalha um historiador que já até o que estará pesquisando em 1980. Veja, 11 fev. 1976, p. 3-4; 6.

Fischer, . A vida de Lênin. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 2 v.

Karepovs, D. Pas de Politique Mariô! Mario Pedrosa e a Política. Cotia; São Paulo: Ateliê Editorial; Fundação Perseu Abramo, 2017.

_____. A classe operária vai ao Parlamento: o Bloco Operário e Camponês do Brasil (1924-1930). São Paulo: Alameda, 2006.

_____. Luta subterrânea: o PCB em 1937-1938. São Paulo: Hucitec; Unesp, 2003.

Magalhães, M. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2012.

Marques, J. C. N. Solidão Revolucionária: Mario Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1993.

Martins, J. S. Florestan: Sociologia e Consciência Social no Brasil. São Paulo: Edusp, 1998.

Pedrosa, M. A Opção Imperialista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

_____. A Opção Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

Pericás, L. B. Caio Prado Júnior: uma biografia política. São Paulo, Boitempo, 2017.

_____. Os Cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010.

Reis, D. A. Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos. Cia das Letras, 2014.

Ricoeur, P. A História, a memória, o esquecimento. Campinas: Ed. UNICAMP, 2007.

Skinner, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.

_____. Maquiavel. Porto Alegre: L&PM, 2010.

Steinberg, J. Bismarck: uma vida. Barueri: Amarilys, 2015.

Notas

[1] Mestrando em História na Universidade de São Paulo.

[2] Para dois títulos, além do de Magalhães, que desenvolveram interessantes estudos, cf. Caio Prado Júnior: uma biografia política. (Pericás, 2017); Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos(Reis, 2014).

[3] Para mais informações sobre o projeto de história da República de Carone, cf. Entrevista: Edgard Carone. A República em capítulos: como trabalha um historiador que já até o que estará pesquisando em 1980 (Coelho, 1976).

[4] Há de se demarcar que tal prática não é exclusiva dos dois autores, por exemplo, Luiz Bernardo Pericás (2010) fez algo semelhante em Os Cangaceiros.

[5] Para um estudo que evidencia a “face” artística de Pedrosa, cf. Mario Pedrosa: itinerário crítico (Arantes, 2004).

[6] Existem diversos estudos sobre a vida e a obra de Pedrosa, porém, todos com limitações temporais, para um exemplo, cf. Solidão Revolucionária: Mario Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil(Marques, 1993).

[7] Utiliza-se como base para essa descrição a síntese conceitual que José de Souza Martins fez das abordagens biográficas de Florestan Fernandes. “As situações ambivalentes e limites reaparecem em seus diferentes estudos sob a forma de ruptura com o conformismo e com o destino. Se por um lado as biografias que documentam o repetitivo são por ele consideradas fundamentais para a compreensão do funcionamento da sociedade, por outro são igualmente fundamentais as biografias transgressivas e as personalidades divergentes” (1998, p. 95).

[Resenha a:] SEGRILLO, Angelo. Karl Marx: uma biografia dialética. Curitiba: Prismas, 2018.


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SEGRILLO, Angelo. Karl Marx: uma biografia dialética. Curitiba: Prismas, 2018.

Por Luccas Eduardo Maldonado

Na capa da edição brasileira do Dicionário do Pensamento Marxista, organizado por Tom Bottomore (2012), está estampado um grande busto de Karl Marx (1818-1883). A face do Mouro, apelido como seus amigos lhe invocavam, circunscreve-se de fotos de György Lukács, Lenin, Friedrich Engels, Herbert Marcuse, Stalin, Rosa Luxemburgo, Mao Zedong, Walter Benjamin, Trotski e Antonio Gramsci. Nessa imagem, existe uma espécie de síntese da disputa interpretativa que, em parte do século XIX e no século XX, ocorreu para com as obras de Marx. No novo milênio, parte desse debate perdeu o seu fôlego, muito devido a derrocada do “socialismo real” e as frustrações derivadas do stalinismo. Contudo, se a reflexão está posta em segundo plano então, a trajetória e a memória do Mouro coloca-se em evidência. Diversos trabalhos a respeito de sua vida foram publicados nos últimos anos e no bicentenário alguns anunciaram-se. A vida de Karl Marx vem sendo profundamente tangida, (re)estudada e disputada por tais obras. Nessa esteira, algo novo elaborou-se faz pouco tempo. Pela primeira vez um escritor brasileiro, Angelo Segrillo, dedicou-lhe um estudo biográfico, Karl Marx: uma biografia dialética (2018).

No Brasil, existe um considerável acervo de livros traduzidos sobre a vida e a obra de Karl Marx. A reunião é tão ampla, significativa e diversificada que não se mostra viável fazer uma ou um conjunto de menções uma vez que invariavelmente realizar-se-á uma série de omissões. A produção nacional, por sua vez, expressa-se de maneira distinta: há um arranjo considerável sobre o pensamento de Marx, porém a condição coloca-se distinta sobre a sua trajetória. Mais precisamente, não existia até então um estudo que englobasse integralmente, da concepção ao epitáfio, os caminhos do Mouro. Um exemplo misto, circunscrevendo ambos os aspectos, é Karl Marx: Vida e Obra de Leandro Konder (1974). Investida interessante e pioneira, mas que acaba dedicando-se muito pouco ao itinerário do prussiano, assim não o contemplando integralmente. Além disso, o livro encontra-se profundamente desatualizado, devido a sua data recuada de lançamento e a extensa bibliografia produzida nas últimas décadas.

Angelo Segrillo, atualmente docente de História Contemporânea no Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), é um expoente raro de pesquisador na academia brasileira. Possui uma formação cosmopolita como poucos, passando por instituições dos Estados Unidos da América, Rússia, Alemanha e Brasil; trajetória que lhe ofereceu um repertório de línguas vasto, característica importante nos seus trabalhos. Em certa medida, seu percurso acadêmico é uma expressão da Guerra Fria, pois, além de frequentar os principais Estados que configuravam essa situação internacional, sua especialidade temática centra-se na história soviética; inclusive, esteve no país dos sovietes fazendo seu mestrado quando o bloco estava a colapsar.

Até poucos anos atrás, a aproximação de Segrillo com Marx ocorria fundamentalmente de forma indireta; quer dizer, engajava-se em diversos assuntos conectados ao “socialismo real” que são tangentes ao pensador alemão. Todavia, começou a lançar alguns estudos sobre o pensador prussiano, a apresentar um movimento de aproximação, nos últimos tempos. Existem dois textos interessantes que mostram o caminhar rumo ao projeto biográfico. Um deles conjuga a sua tradicional especialidade temática, a Rússia, com as suas explorações sobre a trajetória do Mouro. Tal ato resultou na redação de um artigo que sintetiza as transformações das posições de Marx diante da Rússia (2017a). A outra investigação, por sua vez a mais importante, destina-se exclusivamente a trabalhar um aspecto do “problema” Karl Marx. Mais precisamente, o escrito realiza uma síntese bibliográfica, um état de l’art, de tudo que já foi elaborado, até aquele momento, sobre a vida de Marx, ou seja, uma revisão bibliográfica das biografias do autor d’O Capital (2017b).

Karl Marx: uma biografia dialética possui significativas ligações com o estudo biográfico publicado por Segrillo. Nesse texto, o docente da USP demonstra avant la lettre, do livro em si, os caminhos que iria percorrer até a concepção da obra. Como o título do trabalho resenhado anuncia, o objetivo do historiador não foi apresentar uma análise original dos caminhos de Marx, no entanto dispor um exame de sua vida a partir da comparação, do cotejo, das investigações já publicadas. Assim, inicialmente oferece o material central que dará sentido a sua finalidade, em artigo, e depois o faz, em brochura. Interessantemente o conceito de dialética, caro para os marxistas, não é manejado na sua acepção aparente, mas diferentemente do esperado remete ao método socrático de concepção do conhecimento: confronta-se premissas em busca de uma maiêutica.

Em grande medida, a biografia de Segrillo fundamenta-se na leitura comparativa das obras predecessoras, no entanto, essa não foi a sua matriz exclusiva, somente a sua faculté maitresse. Na verdade, existe um ajustamento entre as biografias anteriores e uma reunião de documentos que serve para guiar a sua narrativa. As fontes primárias manejadas pelo autor, um conhecedor da língua alemã, originam-se majoritariamente das duas empreitadas mais consolidadas de edição dos textos integrais de Karl Marx e Friedrich Engels: Marx-Engels-Gesamtausgabe(Obras Completas Marx e Engels, Mega), tanto o projeto do início do século XX (Mega1), quanto o que até hoje se entende (Mega2). Tais originais oferecem sentido a narrativa e, com o desenvolvimento da mesma, o pesquisador pondera sobre as posições e interpretações dos outros biógrafos, não obstante também utilize em menor medida outros grupos documentais, como as epistolas de Jenny e Eleanor Marx – respectivamente esposa e filha do pensador.

  Karl Marx: uma biografia dialética é um estudo interessante. Possui méritos, principalmente no sentido de erudição do escritor, que dispõe em português diversos textos originalmente em alemão, porém concomitantemente preserva diversas limitações. A sua intenção dialética cumpre-se, todavia seria interessante uma realização mais aprofundada. Um debate que mediasse com maior fôlego os escritos biográficos pretéritos, a ponderar mais claramente e extensivamente as divergências, os conceitos e as opções feitas. Em suma, tencionar alocar os textos em quadros dentro do campo de estudos sobre a vida de Marx. A sua forma de organização e a sua escrita também poderiam ter sido melhor desenvolvidas. Preterir dispor os capítulos a partir dos espaços geográficos ocupados por Marx ao longo de sua vida gerou uma construção profundamente desproporcional, passagens ou muito grandes ou muito pequenas, que pode levar o leitor a perder-se.

A investida possui duas grandes virtudes: uma em si e outras além de si. A primeira refere-se à qualidade de divulgação do livro que, nolens volens, se tornou um título de introdução ao tema, um bom caminho preliminar para se confrontar o itinerário do Mouro, conquanto haja outros textos que igualmente possam fazê-lo. No entanto, não só, inclui-se também nesse sentido o seu caráter de pedra fundamental, isto é, o trabalho de Segrillo oferece as bases, mostra os caminhos, para aqueles que desejam desenvolver movimentos semelhantes. A segunda virtude encontra-se na posição que Karl Marx: uma biografia dialética ocupou nos estudos biográficos de Karl Marx. Nos últimos anos, um americano (Sperber, 2013), um inglês (Jones, 2016) e um alemão (Neffe, 2017) publicaram três importantes investigações sobre o pensador; mais recentemente, outro autor germânico anunciou que também prepara uma contribuição.[1]Configura-se, assim, uma disputa, que existe há muito mas parece estar intensificando-se nos últimos anos, sobre a vida e a memória de Karl Marx. Em certa medida, um brasileiro editar um trabalho nesse domínio mostra a presença e o posicionamento do interesse nacional diante dessa querela; contudo, não obstante o intento, há muito para ser feito ainda no sentido qualitativo.[2]

Referências bibliográficas

Bottomore, Tom (org.). Dicionário do pensamento marxista. 2º ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

Jones, Gareth Stedman. Karl Marx: Greatness and Illusion. Londres: Allen Lane, 2016.

Konder, Leandro. Karl Marx: Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1974.

Neffe, Jürgen. Marx: Der Unvollendete. München: C. Bertelsmann, 2017.

Segrillo, Angelo. Karl Marx: uma biografia dialética. Curitiba: Editora Prismas, 2018.

_____. Karl Marx e a Revolução Russa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 30, n. 61, p. 479-496, maio-agosto 2017a.

_____. Karl Marx: um balanço biográfico. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 43, n. 3, p. 601-611, setembro-dezembro 2017b.

Sperber, Jonathan. Karl Marx: A Nineteenth-Century Life. Nova York: Liveright Publishing Corporation, 2013.

Notas

[1]Trata-se de Michael Heinrich. Alemão, membro da Mega2, que promete para os próximos anos uma trilogia dedicada a Karl Marx.

[2]A sintética reflexão do último parágrafo devo fundamentalmente as missivas trocadas com Horacio Tarcus. As conclusões são de minha responsabilidade, porém, não as alcançaria sem esse diálogo. Por isso, agradeço-lhe.

[Resenha a:] MIGUEL, Luis Felipe. Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória. São Paulo: Boitempo, 2018.


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MIGUEL, Luis Felipe. Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória. São Paulo: Boitempo, 2018.

Por Alexandre Marinho Pimenta

Não seria exagero qualificar o último livro de Luis Felipe Miguel como uma obra múltipla, em diversos sentidos e dimensões. Em primeiro lugar, por abrigar um conjunto variado de artigos e comunicações apresentados pelo autor, ao menos desde 2014, nos principais e mais prestigiados espaços acadêmicos do país para sua área. Tais produções, por sua vez, contemplam uma impressionante gama de temáticas e campos teóricos, trabalhados e articulados exaustivamente pelo autor em competentes revisões de literatura junto a contribuições singulares. Hegemonia, democracia, violência, classe, gênero, formação de preferências e participação política, dentre outras categorias e conceitos, transitam na obra do autor formando um retratado multidimensional de seu objeto e preocupação central. Como em outros livros do autor[1], a sessão da bibliografia, por si só, indica-nos que não estamos diante de um produto da Ciência Política convencional: um profundo diálogo com a Filosofia Política e, sobretudo, com as Ciências Sociais como um todo se mostra um pressuposto para a produção teórica de Miguel.

Em segundo lugar, não se trata apenas de uma obra teórica, mas de um manifesto político sui generis. A intervenção de Miguel, invariavelmente, na atual conjuntura, ganha e ganhará uma conotação política. Afinal, estamos diante de um intelectual, professor emilitante, e como tal, cada vez mais exposto e perseguido pelo contexto de “desdemocratização” (p. 7) vivenciado pelo nosso país. Seus algozes vão desde patrulheiros da Escola Sem Partido que rondam as universidades e as redes sociais pelo país, até, mais recentemente, o dito Ministro da Educação, Mendonça Filho, que tentou censurar sua disciplina “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, na Universidade de Brasília. Disciplina esta, abre-se parênteses, que se multiplicou em várias de universidades pelo país e tem sofrido graus variados de perseguição política, midiática e judicial.

Todavia, não é apenas pela pessoa de Luis Felipe Miguel que o livro ganha um espectro político propriamente dito. Isso acontece pelo próprio conteúdo e pretensão da obra, cujo título expõe de maneira didática. Miguel fala e intervêm em nossa conjuntura sem fazê-lo diretamente (fora a introdução, as orelhas de Juarez Guimarães e, de certa forma, os dois últimos capítulos): é principalmente através de sua prática teórica que o autor apresenta uma colaboração ao trágico momento da “política emancipatória”. Prática esta, como dita acima, feita com muita maestria e nenhum amadorismo.

De maneira geral, Miguel, seguindo outros teóricos políticos contemporâneos de perspectiva crítica, apostana democracia. Isso quer dizer que, longe de se resumir a um engodo da burguesia para com as classes dominadas, a democracia compreende, teórica a praticamente, um território em disputa de importância significativa para as classes e grupos sociais dominados e oprimidos, resistentes aos sistemas que os subjulgam – capitalismo, patriarcado etc. Essa disputa, o autor tenta realizar através de uma crítica imanente, mobilizando o conceito radical e originário de democracia em contraponto à “democracia vigente” (p. 9) – gesto, a seu ver, semelhante ao que os dominados fizeram ao longo da história em sua resistência. E, paralelamente, privilegiando a dimensão conflituosa possibilitada pela noção de democracia, em oposição a formas políticas mais autoritárias. Dimensão esta, também “aproveitável”, eventualmente, para a resistência dos dominados [2].

Ao abrir a caixa-preta da democracia para a teoria crítica, Miguel caminha – e com razão – com muita cautela e até ceticismo em sua argumentação e comentários. Sabe muito bem que boa parte desta teoria não conseguiu equacionar de maneira coerente e eficiente o problema/paradoxo democrático. Seja por desconsiderá-lo por completo, como dito acima; ou por não enxergar os limites inerentes da institucionalidade vigente e do apego ao consenso (pensemos numa Mouffe ou num Habermas)… Ou seja, por afundar-se, em última instância, na prisão do liberalismo.

Assim, arriscaríamos dizer, um dos focos de crítica possíveis à sua proposta é o quanto o autor consegue se equilibrar nessa corda – e o quanto esta corda oferece à política emancipatória contemporânea um horizonte. Dito com palavras mais próximas as do autor, se se alcança êxito em introduzir “duplamente” (p. 10) a categoria dominação na teoria democrática: de um lado como reprodução de desigualdades e opressões, de outro como espaço de resistência e emancipação.

Ao se dirigir a uma nova teoria democrática, de característica fortemente “negativa”[3]e ainda embrionária, Miguel pretende enfrentar diretamente a desorientação e desorganização da esquerda contemporânea, marcada pela falência do socialismo real, da social-democracia e sofrendo com imensas dificuldades diante de transformações sociais e crises de representação e representatividade. Uma teoria democrática nova se faz necessária, por fim, para se escapar tanto do utopismo quanto do imediatismo, e conseguir conectar liberdade e igualdade num único projeto político (p. 222).

Bem, já dizia Kafka que a corda do caminho verdadeiro está estendida no chão, e se destina muito mais a fazer tropeçar do que servir de ponte. E a nosso ver a proposta de Miguel apresente lacunas e falhas consideráveis, sobretudo no tocante capitalismo, democracia e emancipação[4]. O autor demonstra ciência à incrível capacidade do capitalismo sobreviver e se reproduzir sob e com a democracia – só ver os capítulos 2 e 8. Mas, aparentemente, o contexto de desdemocratização neoliberal faz Miguel – assim como tantos outros – se aferrar à democracia como bandeira em si[5].

Com essa postura, por exemplo, não consegue se questionar até que ponto se chegou nessa esquina da história pelo fato da esquerda elevar a democracia como valor (no limite, “universal”) – inclusive no Brasil. Ou melhor, até que ponto os limites da social-democracia se relacionam por esta prestar tributo, centralmente, à democracia. No mesmo sentido, o contrassenso histórico de experiências históricas de democracia radical, como os soviets, terem surgidas não sob a defesa explícita da democracia, por exemplo, também é algo que não encaixa na proposta de Miguel. Há aqui algo que resiste à lógica formal e à casualidade simples.

Ao apostar na democracia para fugir do desprezo tático e do radicalismo, de um lado, e do apego à institucionalidade, de outro, ou seja, por razões justas e pertinentes, o autor, no entanto, coloca-se problemas que bloqueiam certas perspectivas emancipatórias, à primeira vista contraintuitivas[6]. Assim, as questões da tática e da estratégia não se equacionam bem: o risco é a paralisia prática ou a colonização via liberalismo, que está sempre à porta.

Junto a esse apego, há uma imensa abertura semântica do conceito de democracia, que, se serve bem à denúncia política, talvez não funcione tão bem na teórica e estrategicamente. Aliás, Miguel é o primeiro a afirmar que a democracia não é um terreno neutro: mas a plasticidade que este impõe a tal conceito, não acaba tornando-a um significante vazio? Ou ainda: recorrer à etimologia não imprime artificialmente valores à democracia, reforçando-a como uma ideologia por excelência? (Afinal, onde ela de fato existiu, na Grécia Antiga escravagista e sexista? Certamente não[7].)

Talvez uma das formas de Miguel sair do labirinto que entrou por boas razões fosse adjetivar a democracia na qual se está teorizando e lutando por, abandonando uma noção geral. Seria aquela democracia participativa? Radical? Socialista? Emancipatória?

Todavia, as palavras têm história[8]e não podemos negar que a discussão sobre superação do capitalismo e democracia, na esquerda, liga-se necessariamente a uma perspectiva oposta à noção de revolução – ver a II internacional, o kruschevismo, o eurocomunismo, etc. O termo democracia, no século XX, foi, na prática, um cavalo de Tróia do liberalismo para reforçar a esperança numa via pacífica, institucional, para fora do capitalismo. E sabemos onde isso foi parar: para ainda mais dentro do capitalismo, na sua gestão propriamente dita ou no retorno ao capitalismo, como na União Soviética e China. Hoje, na fascistização galopante[9]. Focar sobremaneira na democratização, na forma política, eclipsou a dimensão da força, necessária à desestruturação dos aparelhos de dominação e exploração capitalistas[10]. Assim como forçou nosso campo a falar sob a e na língua capitalista[11]: a democracia não foi exatamente o termo que se opôs ao socialismo na Guerra Fria? Não foi sob sua bandeira que a dominação se aprofundou e se realiza as mais brutais intervenções imperialistas? A unanimidade da democracia foi concomitante à derrota das tentativas de transição ao socialismo.

A dificuldade de dirimir confusões e contrabandos semânticos está ligada a um histórico político não tão simples de ser apagado. Ora, o marxismo possui o polêmico termo ditadura do proletariado. “A forma política[12]desta ditadura ou dominação de classe do proletariado é a ‘democracia social’ (Marx), a ‘democracia de massa’, a ‘democracia até o fim’ (Lênin)” (AlthusserapudMotta, 2014, p. 30). Ruim para a denúncia política, mas mais coerente teórica e estrategicamente? Por que a esquerda não pode retomá-lo e o atualizá-lo? Miguel já respondeu a essa pergunta de certa forma, em outra ocasião[13]. Mas achamos que a provocação vale a pena ser retomada, não de forma ingênua e nostálgica, e sim visando um balanço mais justo e coerente com nosso passado. E retomar questões já respondidas, de certa forma, é o destino daqueles que escolheram o destino difícil de não se acomodar – como o autor nos alerta na bela última página do livro.

Referências bibliográficas

Edelman, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016.

Lazagna, Angela. Lenin e a atualidade do princípio de ditadura do proletariado. Lutas Sociais, São Paulo, v. 21, p. 109-124, 2017.

Miguel,Luís Felipe.Democracia e representação:territórios em disputa. São Paulo: Unesp, 2014.

_____. Consenso e conflito na democracia contemporânea. São Paulo: Unesp, 2017.

_____. A democracia e a Rússia revolucionária. Blog da Boitempo, 28 de ago. 2017a. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/08/ 18/a-democracia-e-a-russia-revolucionaria/

Motta, Luiz Eduardo. A respeito da questão da democracia no marxismo (a polêmica entre Althusser e Poulantzas). Revista Brasileira de Ciência Políica, n. 13, p. 19-51,  2014.

Pimenta, Alexandre Marinho. Um novo esforço ou um esforço novo?Resenha do livro “Só mais um esforço” (2017), de Vladimir Safatle. Lavrapalavra, 2017. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2017/10/24/um-novo-esforco-ou-um-esforco-novo/.

Toledo, Caio Navarro de. A modernidade democrática da esquerda: adeus à revolução? Crítica Marxista, São Paulo: Brasiliense, v.1, n.1,  p.27-38, 1994.

Zizek, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.

Notas

[1]Importante lembrar que o livro ora resenhado representa, segundo o próprio autor, “o ponto – provisório – de chegada de uma agenda de pesquisa teórica consubstanciado também em outros dois livros anteriores” (Miguel,2018, p. 9. Ver Miguel, 2014 e 2017). Nesse sentido, pontos aqui criticados certamente foram mais desenvolvidos em momentos anteriores, apenas sintetizados de forma muito sumária na introdução do último elemento da “trilogia”.

[2]Nesse ponto, Miguel se aproxima das recentes reflexões de Étienne Balibar sobre a “democratização da democracia” em contraposição ao cenário de desdemocratização neoliberal. O francês, infelizmente, está ausente entre as referências, junto com outras figuras de peso que rondam a temática, como Wendy Brown e Jaques Rancière. Aliás, esse último Balibar é bem distante do Balibar da década de 1970 que defendia o conceito de ditadura do proletariado no PCF  e curiosamente esse debate setentista da teoria marxista do estado será o ponto de chegada de nossa breve polêmica com Miguel e sua aposta na democracia.

[3]“Já se sabe o que nãose quer, já se sabe contrao que se luta” (Miguel, 2018, p. 221).

[4]Ao não tratarmos da efetividade de sua aposta para combate de outras dominações, como a de gênero, nosso texto terá a aparência de defender a centralidade, única e exclusiva, da dimensão classista. Mas isso ocorre por conta do enfoque privilegiado.

[5]Inspiramo-nos aqui no trecho de Toledo: “para significativos setores da esquerda, a defesa da democracia não deve ter mais um valor tático, mas adquirir um valor estratégico, umvalor em si mesmo” (1994, p. 28).

[6]Rosa, em sua clássica polêmica contra Bernstein, dizia que a única forma de defender a democracia, mesmo a limitada e formal burguesa, era estar sob a bandeira do socialismo. A incompreensão dessa lógica não intuitiva (a democracia talvez seja apenas efeito colateral de outra cena/contradição social) une figuras um tanto díspares da esquerda nacional: Miguel e Safatle, cujo último livro também foi resenhado por mim, no site Lavrapalavra (Pimenta, 2017).

[7]Mais um curto-circuito curioso, contraintuitivo: ao tentar fugir do utopismo de noções como comunismo, não se estaria abraçando também outra utopia, sob um nome mais palatável e aparentemente mais realista? É nesse sentido que Zizek, um desafeto de Miguel, chama Piketty de utópico ao buscar que a democracia controle o capitalismo. Se ambas as palavras estão “corrompidas” (cada uma à sua maneira) porque abraçar uma e não à outra? Tentaremos uma resposta mais à frente.

[8]O mesmo poderíamos dizer sobre igualdade e liberdade (mais polêmico ainda: civilização). Ambas não estão em demasia ligadas à problemática liberal? Miguel não pretende, e aparentemente nem defende, uma “ruptura epistemológica” para sua teoria da democracia. Outra forma de criticar sua proposta seria analisar até que ponto essa postura possui efeitos deletérios à emancipação.

[9]Ou o que Badiou tem chamado de “fascismo democrático” diante de Trump.

[10]“Destruir o Estado burguês, para o substituir pelo Estado da classe operária e dos seus aliados, não é juntar o adjetivo ‘democrático’ a todos os aparelhos de Estado existentes,é mais do que uma operação formal e potencialmente reformista, é revolucionar na sua estrutura, na sua prática e ideologia os aparelhos de Estado existentes” (AlthusserapudMotta, 2014, p. 31). Diríamos também que superar os limites da social-democracia não é apenas trabalhar com um conceito mais amplo de democracia.

[11]E aprendemos com Edelman, citado por Miguel (2018, p. 41), que uma linguagem em comum nunca é apenas uma questão comunicacional, mas política. Traduzir (também) é dominar. Em A legalização da classe operária, vemos que a história jurídica dessa classe, de suas conquistas e direitos, é, no fundo, a história de uma derrota do ponto de vista estratégico. Ao impor sua linguagem à luta política operária, “a burguesia ‘apropriou-se’ da classe operária; impôs seu terreno, seu ponto de vista, seu direito” (Edelman, 2016, p. 112). Há debates, nesse sentido, em que nãose deve participar, “na medida em que essa participação, ainda que se pretenda crítica, significa que foram aceitas as coordenadas básicas da maneira como a ideologia dominante formula o problema” (Zizek, 2008, p. 346).

[12]O Balibar da década de 70, importante ressaltar, opõe-se à noção de ditadura do proletariado como forma política/de governo. Seria mais preciso falar, com Lenin, de período histórico contraditório, um novo estágio da luta de classes (Lazagna, 2018).

[13]Ver Miguel (2017),. Assim como se supõe que a posição de Miguel frente ao que estamos chamando debate setentista se aproxima muito mais ao “último” Poulantzas em seu “sofisticado” “compromisso democrático” (Miguel, 2018, p. 56) ao enfocar a internalização da luta de classes nos aparelhos de estado burguês. Um bom apanhado sobre esse debate, incluindo a posição de Poulantzas, está presente no artigo já citado de Motta (2014). E uma boa pergunta para atualizar o debate seria: após o advento do neoliberalismo, essa permeabilidade aumentou ou diminuiu?

[Resenha :] PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.


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PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral  do direito e marxismo.  São Paulo: Boitempo, 2017.

Por Thais Hoshika

Não há dúvidas de que Evguiéni B. Pachukanis (1891-1937) foi o filósofo que mais avançou na crítica marxista do direito, responsável por nos oferecer as bases sobre as quais o fenômeno jurídico deve ser analisado ao identificar a intrínseca relação entre forma jurídica e forma mercadoria e, portanto, a especificidade do direito no capitalismo.

Sua essencial contribuição à construção de uma teoria materialista do direito condensa-se em sua obra central, qual seja, Teoria geral do direito e marxismo, na qual o autor propõe, utilizando-se do método da economia política[1], a identificação das categorias abstratas fundamentais à compreensão do direito enquanto conjunto de relações sociais específicas.

Tal como Marx inicia a análise da economia política pela mercadoria, Pachukanis inicia o estudo do direito pela categoria do sujeito de direito que, diferente do que tratam as doutrinas jurídicas tradicionais, não é uma categoria jurídica construída arbitrariamente pela mente do jurista, mas é constitutivo não apenas à própria forma jurídica como também é essencial para a própria realização da esfera da circulação mercantil, tornando esta possível.

A identificação da forma sujeito como o átomo indivisível da forma jurídica e sua relação espelhada para com a forma mercadoria é, sem dúvidas, a maior contribuição do autor. A mercadoria tem como característica a qualidade de ser um meio de troca com relação a outra mercadoria devido ao seu substrato social em comum: o trabalho abstrato. Da mesma forma que “um produto do trabalho adquire propriedade de mercadoria e se torna o portador de um valor”, para que a esfera da circulação mercantil se realize é necessário que os homens, reificados, adquiram “um valor de sujeito de direito” (p. 120), na qual desaparecem as particularidades e relações concretas de exploração entre eles, e estes se tornam portadores de direitos, livres proprietários privados de mercadorias equivalentes, cujo exercício dessa igualdade e liberdade formal decorre dessa capacidade volitiva que todo sujeito de direito tem de dispor de sua mercadoria.

Uma das importantes implicações decorrentes da identificação da categoria do sujeito de direito e seu papel fundamental na reprodução do circuito estruturante da sociabilidade capitalista é o fato de que a forma jurídica não provém diretamente de uma relação de dominação consciente de classe ainda que, evidentemente, não se possa excluir esse fator, mas cujo substrato reside nas próprias relações jurídicas contratuais de troca de mercadorias, pertencentes a uma dinâmica de dominação abstrata que independe da vontade dos indivíduos.

Nesse sentido, a forma de dominação capitalista tem um desenvolvimento “natural” próprio, em que a subjetividade dos indivíduos é capturada e estes são constituídos como sujeitos de direito pelas suas condições reais de existência, naturalizando as formas sociais do capitalismo que, devido à sua forma de universalidade, fazem com que o caráter socialmente determinado dessas formas adquiram um caráter de eternidade (ver Edelman, 1976).

Assim, uma vez apontado que a especificidade do direito no capitalismo é determinada pela forma jurídica, é fundamental a crítica tecida por Pachukanis com relação ao conteúdo material da regulamentação jurídica. Não excluindo a importância de se analisar o conteúdo das normas jurídicas, o autor ressalta que a própria forma dessa regulamentação deve ser compreendida como uma forma historicamente determinada, posto que, apesar de não dependerem de seu conteúdo concreto, as categorias jurídicas fundamentais podem ser deduzidas logicamente das normas de direito positivo.

Caso a análise recaia apenas sobre o conteúdo das normas jurídicas, o resultado é a procura nesse conteúdo das necessidades materiais e interesses de determinada classe. Em outras palavras, é o mesmo que dizer que o direito é o direito burguês porque o conteúdo de suas normas favorece a classe capitalista, que não se trata de uma proposição falsa, mas que não alcança a especificidade do fenômeno jurídico e abarca em si a possibilidade de uma compreensão transhistórica da forma jurídica[2], além de ser insuficiente para explicar a existência de normas jurídicas cujo conteúdo (a princípio) é contrário aos interesses imediatos da classe burguesa.

Outra importante contribuição à crítica marxista do direito é a articulação que o autor tem ao tratar da relação jurídica e norma jurídica em que, ao contrário da doutrina jurídica juspositivista, que compreende a norma jurídica como a pressuposição lógica e necessária da relação jurídica, Pachukanis aponta para o verdadeiro fundamento do direito, identificando não apenas a primazia da relação jurídica como também e, essencialmente, desvelando as bases reais e a especificidade dessa relação que, em sua forma mais básica, corresponde aos próprios atos de troca da esfera da circulação mercantil. O fenômeno jurídico, portanto, não pode ser reduzido nem esgota-se na norma objetiva, pois considerada isoladamente a norma não passa de uma abstração vazia.

Mas não é apenas isso.

Devido ao seu substrato histórico real, as abstrações jurídicas fundamentais à compreensão do direito não podem ser analisadas de outra maneira senão enquanto inseridas na complexidade das relações sociais, das quais são expressão.

Daí a necessidade em se destacar especialmente as comparações que Pachukanis faz entre as categorias jurídicas e as categorias econômicas da crítica à economia política (cf. Marx, 2017) porque elas revelam a importância da relação entre norma (direito objetivo) e relação jurídica (direito subjetivo).[3]

Assim, o autor afirma que compreender o direito a partir de sua decomposição em direito objetivo e direito subjetivo é tão importante quanto a decomposição da mercadoria em valor de uso e valor de troca (duplo caráter da mercadoria). Nesse sentido, a norma jurídica considerada isoladamente não passa de uma fórmula vazia justamente por configurar uma categoria que pode pertencer a qualquer momento histórico. Entretanto, e é isso que faz com que a norma jurídica adquira determinação histórica, ela não pode ser compreendida sem a relação jurídica dos sujeitos encarnados na esfera da circulação mercantil.

Além disso, e isto é essencial para a compreensão da maneira como os juristas tradicionais apreendem o fenômeno jurídico e como o direito aparece, o autor demonstra que a convicção de que a norma jurídica engendra a relação jurídica e o sujeito é tão equivocada como afirmar que o valor apenas “se manifesta nas flutuações de preço (p. 101). Disto é possível extrair a seguinte proposição: de que, da mesma maneira que o preço é a forma como o valor aparece, a norma jurídica é a forma como a relação jurídica e o sujeito aparecem, afirmando-o e velando-o ao mesmo tempo.

A principal dificuldade no estudo do direito está no fato de que, ao passarmos das categorias abstratas para a análise da totalidade concreta, o direito aparece com todas as suas determinações, havendo uma conformação entre forma política estatal e forma jurídica, na medida em que o direito aparece como a própria norma jurídica proveniente de regulamentação estatal. Posto isso, não há como tratarmos do direito sem uma compreensão materialista do Estado e da especificidade da forma política[4]pois, não obstante o fato de que o poder político estatal confere “clareza e estabilidade à estrutura jurídica”, ela “não cria seus pressupostos” (p. 104).

Em uma sociabilidade cuja forma de mediação é a mercadoria, composta por sujeitos dotados de subjetividade jurídica para dispor livremente de si, não pode o Estado apresentar-se como aparelho pertencente a determinada classe, pois o próprio Estado é permeado por essa mesma subjetividade jurídica, se apresentando como um poder público, ou seja, “um poder que não pertence a ninguém em particular, que está acima de todos e que se endereça a todos (p. 148), o poder de uma norma objetiva imparcial” (p. 146).

Expostos os principais aspectos dos cinco primeiros capítulos, a obra conta com mais dois capítulos, a saber, “direito e moral” e “direito e violação do direito”. No primeiro, Pachukanis descreve a forma ética da sociabilidade capitalista, apresentando a ligação estreita entre sujeito moral e sujeito de direito. No último, por sua vez, o autor trata do direito e processo penal que, uma vez determinado pela forma jurídica, assume a própria forma da equivalência dos atos de troca mercantil.

De fato, a advertência inicial feita por Pachukanis na obra aqui discutida revela-se perfeitamente cabível diante do fato de que o autor não esgotou todos os problemas relacionados à teoria geral do direito[5]. Mas ele nos deixou um legado ainda mais importante, que é justamente a identificação das categorias estruturais para a compreensão do fenômeno jurídico e que, portanto, constitui a base teórica incontornável para a crítica marxista do direito.

Referências bibliográficas

Edelman, Bernard. O direito captado pela fotografia. Coimbra: Centelha, 1976.

Kashiura, Celso N. Dialética e forma jurídica. In: O discreto charme do direito burguês. Campinas: Unicamp, 2009.

Marx, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

_____. O Capital. São Paulo, Boitempo, 2017.

Mascaro, Alysson L. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.

Naves, Marcio B. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2008.

Notas

[1]Para o primeiro capítulo remete-se ao método da economia política, ver Karl Marx (2008).

[2]A respeito da relação entre forma e conteúdo, ver Celso N. Kashiura (2009).

[3]Em um plano mais concreto, o mesmo problema em se compreender o direito objetivo/ subjetivo transpõe-se para a relação entre direito público/privado.

[4]Sobre o conceito de “conformação” e para uma leitura completa da forma política estatal, ver Alysson L. Mascaro (2013).

[5]Para uma leitura indispensável da obra de Pachukanis, ver Marcio B. Naves (2008).

[Resenha a:] ROEDIGER, David. Class, Race and Marxism. London, New York: Verso Books, 2017.


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Roediger, David. Class, Race and Marxism.  London, New York: Verso Books, 2017.

Atílio Bergamini [1]

É bem conhecida a crítica ao argumento chamado por alguns “racialista”: no Brasil ele não funciona, porque dada a miscigenação, converteria um problema complexo à oposição inequívoca branco-negro, inspirada na universidade norte-americana. Tal crítica figura em livros excelentes, como Veneno remédio, de José Miguel Wisnik (2008, p. 420-429), de onde parafraseei as linhas acima, e em outros mais questionáveis, como os trabalhos do antropólogo Antonio Risério (por sua vez, citado elogiosamente por Wisnik).

A impressão que fica, às vezes, é que era melhor deixar para lá o debate sobre raça, porque nossa perspectiva colonizada tende a imitar acriticamente as ideias norte-americanas. Ao mesmo tempo, como demonstra o próprio Wisnik, a questão racial é tão estruturante de cada aspecto da vida no Brasil e tão central para a compreensão da estrutura de classes, que se furtar ao debate orça na irresponsabilidade. Diante disso, voltamos ao início: parece ser relevante, entre outras coisas, conhecer o que tem sido escrito a respeito de raça aqui e alhures, para ir, pouco a pouco, formando juízo a respeito. Será a diferença racial nos Estados Unidos mesmo inequívoca? Só é possível aproveitar o denso debate que por lá ocorre a partir da imitação e da cópia? Caso o leitor considere relevante avaliar criticamente o que se discute nos Estados Unidos ou se informar sobre o que tem sido feito nas universidades e movimentos sociais, então Class, Race, and Marxism, do historiador da Universidade do Kansas, David Roediger, é leitura recomendada.

O livro se vale de palavras-chave – no sentido que lhes deu Raymond Williams – para, entre outras coisas, analisar publicações sobre a administração de fazendas e de escravos no século XIX. Procurando me vincular a um dos métodos do pesquisador, gostaria de iniciar esta resenha com uma lista de algumas delas, o que talvez ajude leitores potenciais a ter uma noção do conjunto de preocupações que anima o livro e não deixa de ao menos esboçar os principais traços da obra de Roediger como um todo: administração de escravos, administração da terra, brancos, capitalismo, classe, classe trabalhadora, colonialismo, escravidão, fazendas de algodão, guerra civil norteamericana, imperialismo, marxismo, materialismo histórico, nacionalismo, negros, racismo, raça, solidariedade, universalismo.

O argumento que costura a coerência dessas palavras-chaves talvez possa ser parafraseado assim: os contemporâneos recuos da atividade sindical e dos movimentos por direitos civis nos Estados Unidos impõem dificuldades à compreensão das relações entre classe e raça desde uma perspectiva marxista. As dificuldades aparecem inclusive no tom das discussões a respeito, enquanto os recuos precisariam ser pensados a partir do chamado “fator-X”, formulado por Michael Lebowitz, de acordo com o qual a produção capitalista aumenta a cooperação entre trabalhadores, aumentando a separação e as diferenças entre eles, o que dificulta a solidariedade. Um dos componentes mais explícitos da separação e das diferenças seria o racial; sua história exigiria pensar a raça como um dos fundamentos do capitalismo. Isto posto, a solidariedade precisa ser enfatizada como palavra-chave na superação do fator-X, cabendo entender quais condições a tornam efetiva e sobretudo cabendo sopesar o que a torna difícil. Nesse ponto, o livro remete implicitamente ao seu início, pois o tom das discussões em torno de raça e classe passa a ser um sintoma das dificuldades para a solidariedade efetiva entre trabalhadores. A compreensão de um problema e as intervenções públicas para contorná-lo vão de par, numa dialética singular em que, se uma enfraquece, ambas enfraquecem ao mesmo tempo, criando figuras como o racismo, o nacionalismo e a falta de solidariedade entre trabalhadores.

Esses argumentos estão distribuídos em duas partes com três capítulos cada. A primeira se intitula, não por nada, “Interventions: Making Sense of Race and Class”. A segunda, “Histories: The Past and Present of Race and Class”. A estrutura do livro, portanto, remete à dialética recém referida.

Roediger antepõe às duas partes principais uma introdução, marcada sobretudo pela discussão a respeito do tom das polêmicas a respeito da dialética raça e classe: “I do stand by the idea that all of us should approach the difficulties for thinking about race and class generated by the difficult period in which we live with humility and frank admission that we cannot know where thing will go” (p. 19). Essa preocupação exigiria atenção em duas frentes de trabalho: as recentes lutas e os recentes trabalhos acadêmicos. Roediger vê nesse conjunto de lutas e trabalhos lampejos de possibilidades para a criação de vínculos efetivos de solidariedade na classe trabalhadora. Três áreas mereceriam especial atenção:

1) estudos críticos sobre a branquitude (que poderiam ajudar a entender mudanças contemporâneas na classe trabalhadora);

2) movimentos anti-polícia e antirracismo, bem como trabalhos lidando com a desigualdade social desde a perspectiva da população afro-americana;

3) críticas às ideias de intelectuais como David Harvey, de que raça não ajuda a pensar a lógica do capital, trazendo outras compreensões do processo de criação de raças, do racismo e da maneira como isso tudo se relaciona com a luta de classes.

Embora os três itens remetam a trabalhos por serem feitos, eles não deixam de se fazer presentes e, se minha leitura ainda inicial dos trabalhos de Roediger permite dizer, parecem ser um resumo válido do que o tem preocupado desde pelo menos o final da década de 1980.

Tendo em vista o que acabei de afirmar, creio ser importante, antes de expor e discutir brevemente algumas das principais ideias de Class, Race, and Marxism, lembrar que ele é o sexto livro de Roediger lançado pela editora Verso, vinculada à New Left Reviewe responsável, desde os anos 1970, por colocar em circulação reflexões de esquerda em diversas áreas. Do ponto de vista do público brasileiro, talvez seja interessante lembrar que a Verso editou e traduziu para o inglês dois conjuntos de ensaios de Roberto Schwarz, em 1992 e 2013. De Roediger, esta casa editorial lançou: Our Own Time: A History of American Labor and the Working Day(1989, com Philip S. Foner); Towards the Abolition of Whiteness: Essays on Race, Politics, and Working Class History(1994); The Wages of Whiteness: Race and the Making of the American Working Class(2007); How Race Survived US History: From Settlement and Slavery to the Obama Phenomenon(2010); Seizing Freedom: Slave Emancipation and Liberty for All(2015). Todos referidos e discutidos em Class, Race, and Marxism, que, vale a pena repetir, acaba sendo boa leitura de introdução ao pensamento do autor.

No livro recém lançado, Roediger traz dois conjuntos de dados como ponto de partida para refletir. (1) O número de greves com mais de mil trabalhadores nos Estados Unidos se reduziu de uma média de 300 por ano, para somente 5 em 2009, 11 e 12 em 2014 e 2015; (2) a frequência de prisões de pessoas negras aumentou na comparação com a prisão de brancos – em 2007, os cidadãos negros eram presos sete vezes mais do que brancos nos Estados Unidos; em 2017, a razão chegou a 16 vezes mais. Qual a relação entre essas duas séries históricas?[2]

O autor elege como tema principal dos três primeiros capítulos da primeira parte a dificuldade de falar e escrever a respeito de raça-classe. Para tal, discute “tom e substância” das polêmicas em torno da articulação entre classe e raça; bem como defende que as duas categorias são fundamentais para fazer análises históricas e possibilitar ações políticas atualmente. O autor retoma criticamente a proposta de David Harvey (2014) em 17 contradições e o fim do capitalismo, para quem a pergunta certa a ser feita seria: como as lutas antirracistas, feministas etc., podem se efetivar como práticas anticapitalistas?

Para Harvey, as contradições do capital não podem ser diretamente explicadas por questões de raça, gênero, etc. Estas categorias não seriam típicas ou próprias das contradições do capital. Estas poderiam, por outro lado, ser racializadas como acontece nos Estados Unidos, ainda que, também lá, de acordo com Harvey, movimentos antirracistas possam, ao mesmo tempo, ser pró-capitalistas. Roediger procura mostrar que Harvey encontrou uma boa maneira de discordar de seus argumentos discutindo a maneira como o capitalismo produz raças e racismo como uma das condições de sua reprodução.

A sequência de ponderações a respeito do tom e substância de estudos sobre raça e classe avança até chegar, no terceiro capítulo, em George Rawick, um “intelectual branco entre intelectuais negros”, que Roediger tem como mestre e antecessor. As barreiras raciais se tornaram, de acordo com a análise de Roediger, o espaço para a reflexão de Rawick. Aqui, os pontos de partida muitas vezes são multifacetados, contraditórios e imperfeitos, mas Rawick se tornou “um produto, um beneficiário e um produtor” de reflexões “entre intelectuais negros”. De Rawick a Harvey, parece que Roediger se preocupa em pensar as melhores maneiras de intelectuais brancos colaborarem com as discussões do eixo raça-classe.

A ênfase ao debate entre Harvey e Roediger, chegando a Rawick, pode dar a impressão de que Roediger não dialoga com pensadores negros. Isso é incorreto. W. E. B. Du Bois e C. L. R. James são duas das principais referências, costurando o livro do começo ao fim. O autor afirma (p. 25) que os estudos retém à ideia de capitalismo racial, ao invés de simplesmente capitalismo, fundamentada na obra de Cedric Robinson, Black Marxism: The Making of the Black Radical Tradition, de 1983, que, paradoxalmente, não está diretamente referida, mas aparece a partir de estudos secundários. Por fim, intelectuais como Paul Gilroy são discutidos em diversos momentos.

Aproveitando a referência a Gilroy, gostaria de trazer ainda uma anotação a respeito do primeiro capítulo, “The retreat from Race and Class”: ele, em grande medida, discute os argumentos de After Race(Darder; Torres, 2004), e Against Race(Gilroy, 2000). Para Roediger, ambos entendem que voltar atrás da noção de raça e, no limite, não mais utilizá-la, reforçaria as lutas contra hierarquias racializadas (p. 40ss.). Este passo da discussão tem especial relevância para brasileiros, já que Roediger retoma um debate sobre a questão racial no Brasil, provocado pelo artigo de Pierre Bourdieu e Loic Wacquant, de 1999, traduzido para o português em 2002 como “Sobre as artimanhas da razão imperialista”.

Os pesquisadores franceses teriam proposto que o nivelamento ou achatamento das noções de classe e raça produzia más formas de compreensão histórica e de possibilidades políticas no Brasil daquele período. Isso porque a noção de “raça” seria produzida desde o “imperialismo cultural” das universidades norte-americanas, o que levaria brasileiros a pensarem neutralizando o próprio contexto histórico. A ideia de raça discutida em universidades norte-americanas seria muito diferente das ideias que os brasileiros fazem a respeito das questões raciais, consequentemente o Brasil estaria importando ideias e deixando de prestar atenção na própria maneira de pensar o problema.

Roediger sintetiza da seguinte maneira as respostas dadas por diversos pesquisadores ao artigo de Bourdieu e Wacquant: tanto pesquisadores brasileiros quanto norte-americanos entenderam que, ao contrário do que argumentaram Bourdieu e Wacquant, a noção de raça era pouco utilizada em discussões. Ainda de acordo com as respostas tal como sintetizadas por Roediger, o imperialismo cultural norte-americano tem sido discutido nas universidades brasileiras há algum tempo. O argumento de Roediger não específica do que se trata, mas dá a entender que o acúmulo de discussão sobre imperialismo cultural se refere tanto à questão específica do termo raça quanto à presença, por exemplo, dos chamados “enlatados” na vida brasileira. As respostas ao artigo de Bourdieu e Wacquant também consideraram que brasileiros e norte-americanos produziram reflexões duradouras sobre o deslocamento dos povos indígenas, o tráfico de escravos, a escravidão e o imperialismo. Estes processos, por sua vez, produziram sociedades a um só tempo diferentes e comparáveis, com hierarquias e dilemas raciais de consideráveis consequências.

Em resumo, a primeira parte do livro diz respeito ao tom encontrado – ou desencontrado – por intelectuais para intervir nos debates sobre raça e classe.

A segunda parte é formada por três capítulos, que formam, digamos, uma história de longa duração, desde a remoção dos índios de suas terras, passando pela escravidão negra e pela administração do trabalho em fazendas de algodão, até chegar às dificuldades para uma solidariedade de classe na atualidade, que estaria, é bom lembrar, relacionada com os recuos objetivos na atividade sindical e nas condições de vida das populações afrodescendentes nos Estados Unidos.

O capítulo 4, “Removing Indians, Managing Slaves, and Justifying Slavery: The Case for Intersectionality”, analisa jornais, panfletos, almanaques e livros escritos desde a perspectiva de grandes proprietários rurais. Nele, encontramos elementos para reforçar o argumento de que uma elite agrícola branca disseminou ao longo do século XIX nos Estados Unidos práticas e ideias baseadas nas suposições de que negros não tinham inteligência para administrar fazendas, mas eram bastante hábeis no trabalho; índios, por sua vez, eram incapazes de husbanding land. Negros e índios, portanto, precisariam ser dirigidos por essa elite. Essa direção era pensada como moderna, voltada para o mercado, civilizadora. A guerra civil norte-americana – na medida em que, em determinado momento, as terras foram todas roubadas dos índios e incorporadas à lógica da propriedade – poderia ser explicada ao menos em parte por esse fenômeno. Norte e sul teriam passado a disputar o assenhoramento dos mesmos recursos: corpos e terras.

Esse capítulo prepara a discussão do próximo, escrito a quatro mãos, com Elizabeth Esch, “One Sympton of Originality. Ele parte das hipóteses de pesquisadores – especialmente Dipesh Chakrabarty e Michael A. Lebowitz – para quem o capital não apenas leva a uma cooperação decorrente da concentração de trabalhadores, como Marx descreve, mas também essa concentração induz a uma divisão de trabalhadores (“they divide workers”, p. 122) na estrutura da divisão do trabalho. Racializados e nacionalizados, os trabalhadores passam a competir entre si por um lugar ao sol da exploração e suas lógicas de reconhecimento. O seguinte trecho sintetiza muita coisa:

“As members of both a white settler and a slaveholding society, Americans developed a sense of themselves as white by casting their race as uniquely fit to manage land and labor and by judging how other races might come and go in the service of that project. Dispossession of Indians, and the ‘changes in the land’ that it entailed and celebrated, found much justification in the supposed inabilit of indigenous people to ‘husband,’ or manage, the resources at their command. Early American management decisions centered on what sort (and quickly on what ‘race’) of coerced labor was most economical, skilled, durable, efficient and tractable. […] The factory and plantation coexisted as the most spectacular sites for management of labor in the Americas with, if anything, the latter providing models for the former” (p. 123, 124).

Surgiu, de acordo com Esch e Roediger, já por volta dos anos 1830, todo um pseudocientífico debate a respeito das melhores maneiras de administrar negros e fazendas. Por mais absurdos que fossem os argumentos, ou justamente porque nessas horas o que menos importa são argumentos, a pseudociência ganhou contornos transnacionais. Explorações em outros países e “importação” de escravos chineses, além dos africanos, passaram a ser racionalizados por preconceitos raciais supostamente calcados na ciência e na observação. A raça de cada trabalhador era, já em meados do século XIX, um fator fundamental para os cálculos “racionais” do lucro. Cada raça tinha certas peculiaridades. Os brancos, reclamava um feitor, não podem ser dirigidos. Eram os anos em que apareceram certos americanismos linguísticos, como nigger work, slave like a nigger  e Irish nigger.

A questão, nesse ponto, remete outra vez para a divisão entre trabalhadores provocada pela concentração deles em fazendas, fábricas e cidades. Roediger parece sugerir que um ponto crucial nas lutas de classe contemporâneas e nas lutas dos movimentos negros contemporâneos reside em identificar, criticar e resistir à crescente perda de solidariedade entre os próprios trabalhadores e solidarização em relação ao capital como única perspectiva capaz de administrar os recursos do planeta. Roediger sugere que sejam quais forem as respostas, seria preciso que movimentos sociais ou antes deles “as lutas” as elaborassem e que as universidades as pudessem escutar atentamente.

A propriedade de terras nos Estados Unidos e a possibilidade de gerenciá-la estão ligadas, sintetiza Roediger, às seguintes ideias nucleares: índios não sabem gerir a própria terra, que sejam mortos e expulsos para dar lugar a quem pode civilizar e modernizar a agricultura; negros não sabem gerir o próprio trabalho, que sejam sequestrados e educados para o trabalho duro; mulheres não sabem gerir o próprio corpo, que sejam tuteladas a usá-lo na reprodução de mão-de-obra, de herdeiros e nos cuidados exigidos por essa reprodução. É evidente que, assim pensada, a elaboração precisa ser deslocada para fazer surgir um problema. Que o índio seja sua terra, o negro seu trabalho e a mulher seu corpo desde a perspectiva do proprietário branco, leva a superar, no sentido de aprofundar, as interrelações entre gênero, raça e classe. Está bem vista a importância que essa descrição histórica do processo atual de perda de solidariedade nos Estados Unidos.

Para concluir, retorno aos problemas de “tom” enfrentados nos primeiros capítulos do livro. Do ponto de vista da disciplina em que atuo como professor, a teoria da literatura, a raça teve e tem especial importância. Foi um dos principais conceitos operados pelos “Naturalistas”, na tentativa de romper com a retórica e a gramática como esteios da interpretação literária. Ou seja, quando a humanidade ocidental procurou historicizar a interpretação da arte, uma de suas primeiras operações foi racializar a discussão. A historicização das formas artísticas, desde Hegel, tem na reflexão sobre as raças um de seus esteios. No Brasil, Silvio Romero, no final do século XIX, se valeu da ideia de raça para tentar explicar e julgar obras literárias e até mesmo se insinuar por interpretações mais amplas: calcado na ideia de mestiçagem, procurou construir uma narrativa para o suposto atraso da cultura brasileira. Machado de Assis era péssimo escritor por fazer parte da “sub-raça cruzada brasileira”. Índios, negros, caboclos em sua incultura e falta de técnica precisariam sempre o polimento e a inteligência do branco europeu. Vê-se aí que uma retomada crítica das ideias de Roediger, pode ajudar a pensar questões brasileiras em diversos áreas do saber e em diversos campos de atuação política.

Referências bibliográficas

Braga, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012.

Darder, Antonia; Torres, Rodolfo D. After Race: Racism after Multiculturalism. New York: NYU Press, 2004

Gilroy, Paul. Against Race: Imagining Political Culture beyond the Color Line. Cambridge: Belknap Press, 2000.

Harvey, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2014.

Robinson, Cedric.  Black Marxism: The Making of the Black Radical Tradition, de 1983,

Williams, Raymond. Palavras-chave:um vocabulário da cultura e da sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007.

Wisnik, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[1]Professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Ceará.

[2]Embora os dados trazidos se refiram aos Estados Unidos, estudos recentes, como o de Ruy Braga (2012) sobre a fatia da população por ele denominada precariado, mostram tendências parecidas em diversos países.

[Resenha a:] SALLES, Severo (coord.). A diversidade das lutas sociais.Salvador: EDUFBA, 2015.


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Salles, Severo (coord.). A diversidade das lutas sociais.Salvador: EDUFBA, 2015.

Gisele de Cássia Lopes [1]

 

Severo de Albuquerque Salles, coordenador do livro, é doutor em Ciência Política e doutor de Estado em Ciências Econômicas. Atualmente, é membro do Centro de Estudos Latino Americanos da Facultad de Ciências Políticas y Sociales e do Programa de Pós-graduação da Universidade nacional Autônoma do México. A obra A diversidade das lutas sociaisé composta por sete capítulos de diferentes autores que retratam sobre as distintas formas de opressão, de manifestação e resistência dos oprimidos e explorados.

O primeiro, “Internacionalização do capital, diversidade dos movimentos populares e democracia”,de Severo Salles, o autor destaca que no capitalismo, a força de trabalho se tornou uma mercadoria e que devido a isso, enquanto a sociedade trabalha para produzir, existirá o mercado, o capitalismo e as classes sociais antagônicas que lhe são próprias. O trabalho realizado de modo independente não é reconhecido prontamente na produção mercantil como um trabalho socialmente útil. Para isto, é necessário que eles passem pela esfera do mercado para que talvez eles possam ser reconhecidos como parte do trabalho requerido pela sociedade. Em relação ao capital, o autor destaca que o mesmo se reforça na sua correlação de forças com o trabalho. E o processo de institucionalização do capital advém das lutas democráticas. Salles destaca também sobre as lutas de classes existentes. Estas atingem a plena existência quando estão em luta e são elas que constituem o impulso principal da história de uma formação social como totalidade. Elas que agem sobre as relações internas de uma realidade social histórica.

O segundo capítulo, “Reflexões sobre as tendências do capital na agricultura e os desafios do movimento camponês da América Latina”, de João Pedro Stédile, líder do Movimento dos trabalhadores Sem Terra (MST) fala da dominação do capital financeiro globalizado sobre o capitalismo, ou seja, a acumulação das riquezas e do capital está concentrada na esfera do capital financeiro. E este precisa controlar a produção das mercadorias na indústria e na agricultura para apropriar da mais valia produzida pelos trabalhadores agrícolas.

Stédile cita cinco mecanismos pelo qual o capital financeiro passou a controlar o comércio. O primeiro foi através do excedente do capital financeiro. Os bancos começaram a comprar ações de grandes firmas que tinham relação com a agricultura e em poucos anos, essas firmas obtiveram um crescimento extraordinário do capital financeiro e controlaram setores que têm relação com a agricultura. O segundo mecanismo de controle foi a dolarização da economia mundial. As firmas aproveitaram da taxa de câmbio favorável e dominaram o comércio de produtos agrícolas. O terceiro mecanismo foi os regulamentos do livre comércio impostas pela Organização Mundial do Comércio (OMC), Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) que regularizaramo comércio agrícola. O quarto mecanismo foi o crédito bancário. Para o desenvolvimento da produção agrícola, foi preciso a utilização de crédito para financiar a produção e com isso os bancos financiaram a implantação e o domínio da agricultura no mundo. O último mecanismo fala que os governos deixaram as políticas públicas de proteção do mercado agrícola e aplicaram políticas neoliberais de subsídios na grande produção agrícola capitalista.

Para finalizar seu texto, Stédile fala sobre as propostas que o movimento camponês da América Latina tem desenvolvido. As propostas são a implantação do programa agrícola e hídrico alimentar de cada país; impedir a concentração da propriedade privada da terra, da floresta e da água; adotar sistemas de produção dos alimentos baseados na diversificação da agricultura; adotar técnicas de produção que procurem o crescimento da produtividade do trabalho e da terra; Desenvolver a organização das agroindústrias em pequenas e meias escalas, na forma de cooperativas administradas pelos trabalhadores industriais que produzem sua matéria prima. Defender uma “política de deflorestação zero” preservando a natureza e utilizando recursos naturais de maneira adequada e favorecendo o povo residente no local; Implementar um projeto energético popular para o país; Garantir as políticas de segurança social para toda a população do meio rural; Proibir que qualquer firma estrangeira seja proprietária de terras em qualquer país do mundo e desenvolver políticas para melhorar as condições de vida nos povos e comunidades rurais.

No terceiro capítulo, “A participação das mulheres no Movimento dos Trabalhadores sem teto em Salvador”, Renato Macedo Filho e Ana Alice Alcântara Costa comentam sobre o movimento dos sem teto que vem despontando na cena urbana e o que ele vem trazendo, como o alto índice de desemprego, a falta de infraestrutura, saneamento, saúde e o déficit habitacional das grandes e médias cidades. Os autores mostram que neste movimento a atuação das mulheres se tornou algo recorrente. Em 1940, aconteceram as primeiras mobilizações por moradia em Salvador, constituídas por pessoas das camadas mais pobres. Essas pessoas tiveram que se desalojarem dos centros e irem para bairros mais pobres devido à ocupação dos centros pela população de classe média e alta. As mulheres estavam presentes e assumindo posições significativas desde as primeiras mobilizações por moradia em Salvador. Os autores levantam uma observação interessante sobre o movimento sem teto, ele é constituído predominantemente por mulheres e homens negros, reflexo de um processo histórico no Brasil de exclusão social e escravismo.

O quarto capítulo, “Associativismo e produção espacial em Salvador (BA): a produção espacial por novos personagens urbanos”, de Margarete Neves Oliveira, analisa o associativismo em Salvador. Esse associativismo é uma forma de discutir solidariedade, democracia e justiça social no Brasil, principalmente na Bahia. A autora mostra que em 1930, no Brasil, havia uma legislação trabalhista, que privilegiou o trabalhador urbano em detrimento do trabalhador rural. Houve também, a política praticada pelo Sistema Financeiro de Habitação (SFH), que atendeu interesses de empresários privados. Aconteceram, em 1970, movimentos sociais urbanos, como o Trabalho Conjunto, que atuava em defesa dos moradores de bairros da cidade.

O quinto capítulo, “O racismo, a desigualdade e a exclusão: O caso do Brasil”, de Mônica Velasco Molina, discute como o conceito de raça tem mudado e como tal noção teve impacto dentro das elites brasileiras. Falava-se em diferenças na sociedade e estas eram baseadas por características físicas, como a cor da pele. No Brasil houve ações para branquear a sociedade, feita pela elite política-intelectual. Os projetos de imigração discutidos no Brasil se basearam nas teorias raciais, que contava que os negros não tinham a mesma capacidade que os brancos. Aparecem, então, com o racismo, noções de discriminação e segregação racial, situação evidente com os afro-brasileiros.

O sexto capítulo, “Da agenda de outubro ao Tipnis: os pontos de ruptura entre as organizações sociais e o governo do MAS”, de Paola Martínez, apresenta dois pontos de ruptura, um sobre o governo de Evo Morales e o gasolinazoe a construção da rodovia que atravessa o Território Indígena. Sobre o gasolinazo, que é ao aumento da gasolina, foi o início de uma relação tensa entre o governo de Evo Morales. Afastaram-se organizações e sindicatos ao governo, já que as primeiras acusavam o governo de dar continuidade ao modelo neoliberal e de não escutar o povo. Em relação à construção de uma rodovia, a VillaTunari-San Ignacio de Moxos, que atravessaria o território Indígena, a mesma causou uma reação aos povos indígenas que defendiam essa área protegida. Os indígenas, baseando-se no Decreto Supremo n. 22610 – que reconhece essa zona como território indígena – não tiveram o seu pedido atendido pelo governo. Estes fizeram uma marcha para mostrarem a insatisfação, sendo barrada pelos simpatizantes do MAS. As mobilizações na contramão do gasolinazoe da construção da rodovia no Tipnis foram acontecendo e confirmando que o rumo político na Bolívia seguiria se definindo nas ruas.

No último capítulo, “Autonomia: a resistência indígena à colonialidade do poder”,Diego Zendejas mostra que a colonialidade do poder implica que a dominação social, cultural, política e econômica no capitalismo se realiza pela subsunção formal de todas as formas de relações capitalistas de produção e com base no critério de diferenciação racial, e que há uma autonomia que implica aos povos indígenas poderem decidir sobre a política, sendo esta praticada de modo contraposta às formas do capitalismo.

[1]Mestranda em Educação na Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ).

[Resenha a:] SAAD, Alfredo. O valor de Marx. Campinas: Unicamp, 2011.


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Saad Filho, Alfredo. O Valor de Marx: Economia política para o capitalismo contemporâneo. Campinas, SP: Unicamp, 2011.

Por Roberto Resende Simiqueli

O valor de Marx, de Alfredo Saad Filho, se apresenta como mais uma opção na vasta lista de introduções à crítica da economia política realizada por Karl Marx e aos debates em torno de suas teses. Fosse o livro de Saad somente uma nova tentativa de apresentação do autor, ele já teria que disputar espaço com tantos outros readersde peso, ferramenta necessária à leitura e compreensão dos argumentos do filósofo alemão, principalmente (mas não apenas) por estudantes de graduação e pós-graduação engalfinhados com as particularidades da teoria do valor ou do movimento ampliado da acumulação de capital. No entanto, a proposta desse breve trabalho é não só proporcionar ao leitor uma breve introdução aos termos fundamentais da economia política marxista, como aproximá-lo de algumas disputas teóricas decorrentes dessas formulações e da compreensão contemporânea sobre o autor e sua obra.

O primeiro dado relevante sobre O valor de Marxé sua concentração sobre as principais categorias econômicas da contribuição marxiana. Ainda que Saad adote uma postura arejada frente ao universo categorial marxista e mantenha abertas frentes oportunas de diálogo com debates sociológicos, políticos ou filosóficos sobre o autor, seu texto se destina de imediato à formação de economistas interessados nas problemáticas da economia política clássica e à atualização de pesquisadores envolvidos com esses debates. Assim, seu tratamento da obra econômica de Marx é estruturado em torno dos temas usuais: as Interpretações da Teoria Marxista do Valor ocupam o segundo capítulo, seguidas de considerações sobre Valor e Capital (cap. 3), Salários e Exploração (cap. 4), Valores, Preços e Exploração (cap. 5), A Composição do Capital (cap. 6), enquanto os espinhosos temas da teoria da transformação e dos movimentos dos capitais bancário, financeiro e fictício são objeto dos dois capítulos finais: A Transformação dos Valores em Preços (cap. 7) e Moeda, crédito e inflação (cap. 8). Se nos limitássemos somente à escolha das questões referenciadas por Saad, pouca diferença restaria entre seu livro e o material comumente empregado como referência complementar nos cursos de Economia Política ou História do Pensamento Econômico. Mas a apresentação desses temas e seu encaminhamento fazem do trabalho uma peça singular, nesse campo, e mais do que justificam uma leitura atenta.

Saad, apesar do referencial claramente econômico, deixa clara sua simpatia pela perspectiva relacionista na compreensão do valor e das leis de acumulação, compreendendo o capital e sua valorização como uma relação social. Isso justifica o encaminhamento dado pelo autor às considerações em torno da exploração da força de trabalho, seu papel na ampliação da dinâmica de valorização do capital e a importância fulcral da expropriação capitalista na estruturação desse modo de produção. Assim, o autor demarca de forma hábil sua diferença frente a outras matrizes de interpretação d’O capital, pautadas muitas vezes pelo eclipsar das relações sociais que dão forma ao modo de produção capitalista e pela ênfase quase que exclusiva no primoroso tratamento dado por Marx à dinâmica financeira (e às possibilidades de resgate desse tratamento para a compreensão da contemporaneidade).

Um parágrafo síntese de sua posição pode ser encontrado na conclusão do capítulo dedicado às noções de valor e capital:

“A teoria do valor de Marx parte do princípio ontológico de que as sociedades humanas se reproduzem, e se modificam, através do trabalho. O trabalho e seus produtos são divididos socialmente e, no capitalismo, esses processos e seus resultados são determinados pelo monopólio dos meios de produção pela classe capitalista, a mercantilização da força de trabalho e a forma mercadoria dos produtos do trabalho. Nessas circunstâncias, os produtos do trabalho geralmente têm a forma valor, e a exploração econômica se baseia na extração de mais-valia. Em outras palavras, a relação capital inclui o monopólio dos meios de produção, o trabalho assalariado e a contínua reprodução de duas grandes classes sociais mutuamente condicionantes, os capitalistas e os trabalhadores” (p. 72).

Os ecos desse enquadramento do capital enquanto relação são sentidos de forma decisiva nos capítulos finais do livro, em que questões tidas como particularmente complexas (capital fictício, transformação de valores em preços, concorrência e queda tendencial da taxa de lucro) são explanadas com singular simplicidade, e com vistas à manutenção do eixo argumentativo central. Ao discorrer sobre a instabilidade inerente ao capitalismo Saad pontua:

“As economias capitalistas são instáveis devido aos conflitos entre as forças de extração, realização e acumulação de mais-valia em condições competitivas. Essa instabilidade é estrutural, e nem mesmo as melhores políticas econômicas podem evitá-la por completo. A concorrência obriga cada capital a encontrar formas de aumentar a produtividade do trabalho. Isso geralmente envolve mudanças técnicas que aumentam o grau de mecanização, a integração entre os processos de trabalho dentro de cada firma, e através de firmas diferentes, e a escala potencial da produção. Portanto, a concorrência socializa a produção capitalista” (p. 174).

A importância dessa abordagem, principalmente no momento em que os trabalhadores brasileiros são tomados de assalto pelas propostas das reformas trabalhista e previdenciária, não pode ser medida. Saad efetivamente desloca a ênfase, mantida por muitas análises do econômico em Marx, da movimentação autônoma do capital para a sua essencialidade, sua conformação ontológica. O capital não é explicado como valor que se valoriza no sentido da naturalização do movimento de sua valorização, mas como relação social de exploração e reprodução da exploração do trabalho.

Por sutil que a diferença possa parecer, suas implicações são vastas. Por meio desse enfoque, Saad consegue articular os termos fundadores da crítica à economia política a seus desdobramentos mais desafiadores, sem perder o fôlego ou a fluidez da narrativa. Para além do apurado trabalho conceitual, o livro é muito bem escrito e sua leitura é bastante agradável. Assim, O valor de Marxpossibilita uma apresentação convidativa aos grandes temas explorados n’O capital, ao mesmo tempo em que defende posições teóricas ousadas sobre a interpretação da obra econômica de Marx e arma o leitor de referências valiosas para a continuidade do estudo.

Lido paralelamente a outras introduções consagradas a O capital, O valor de Marxmerece certo destaque. A apresentação direta e clara faz com que seja um livro vastamente mais aproximável do que os dois volumes de David Harvey em Para entender O capital(Harvey, 2013). Por mais hábil que Harvey seja em expor suas ideias e promover uma reavaliação do arrazoado marxista no trato da economia contemporânea, Saad explora temas fulcrais desse mesmo arrazoado de forma bem mais objetiva. Seus objetivos e resultados são distintos, por outro lado, daqueles levantados por algo como o clássico Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx(Rosdolsky, 2001), de Roman Rosdolsky, mas aqui Saad cumpre a proposta declarada no subtítulo: é difícil encontrar um readerde Marx tão engajado com a compreensão do capitalismo contemporâneo. Em extensão e profundidade, o livro se aproxima de referências estabelecidas no meio acadêmico em economia, como Smith, Ricardo e Marx(Napoleoni, 1978), de Claudio Napoleoni, e Valor e capitalismo(Belluzzo, 1980), de Luís Gonzaga Belluzzo. No entanto, não só Saad atualiza as problemáticas fundamentais da economia política marxista frente aos debates atuais, como possibilita o acompanhamento desses debates de forma mais clara. E defende uma posição mais alinhada com os desenvolvimentos recentes na interpretação do legado intelectual marxiano.

Outros dois trabalhos que julgamos “complementares” a O Valor de Marxe cuja leitura parelha recomendamos são o primoroso Marx: notas sobre a teoria do capital, de Maurício Chalfin Coutinho, que apresenta uma cuidadosa leitura estrutural de passagens fundadoras das categorias econômicas de Marx, e O negativo do Capital(Grespan, 1996), de Jorge Grespan, com intuito e problemas próximos aos do trabalho de Saad, em alguns momentos. Pensando especificamente na tarefa gratificante porém desafiadora de apresentar as densas categorias d’O Capital a alunos de graduação, O valor de Marxse revela (com o perdão do trocadilho infame) uma ferramenta valiosa.

Referências bibliográficas

Belluzzo, Luiz Gonzaga de Mello. Valor e capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1980.

Coutinho, Maurício Chalfin. Marx: notas sobre a teoria do capital. São Paulo: Hucitec, 1997.

Grespan, Jorge. O negativo do capital: o conceito de crise na crítica de Marx à economia política. São Paulo: Hucitec, 1996.

Harvey, David. Os limites do capital. São Paulo: Editora Boitempo, 2013.

_____. Para entender O capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

Lévy, Dominique et alii. Uma nova fase do capitalismo?São Paulo: Xamã, 2003.

Marx, Karl. O capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. 3 v.

Napoleoni, Claudio. O valor na ciência econômica. Lisboa: Presença, 1977.

_____. Smith, Ricardo, Marx. Rio de Janeiro, Graal, 1978.

Rosdolsky, Roman. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Eduerj, Contraponto, 2001.

[Resenha a:] LOSURDO, Domenico. Guerra e Revolução: o mundo um século após Outubro de 1917. São Paulo: Boitempo, 2017.


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Demian Melo

Nesse ano do centenário da Revolução Russa, a editora Boitempo disponibilizou ao público brasileiro uma das mais importantes contribuições à crítica da historiografia revisionista das revoluções, Guerra e Revolução, do filósofo italiano Domenico Losurdo. O livro foi originalmente publicado em 1996 com o título de Il revisionismo storico: problemi e miti (Losurdo, 1996), mas recebeu em inglês uma nova edição ampliada em 2015 (Id., 2015), sendo esta a base da edição brasileira, onde constam dois novos capítulos.

Autor conhecido do público brasileiro, a contribuição de Losurdo à crítica da historiografia revisionista ainda é pouco visitada em nosso país. É verdade que o debate propriamente sobre o revisionismo não nos é inédito, como, por exemplo, as críticas demolidoras de Eric Hobsbawm e Michel Vovelle ao revisionismo de François Furet sobre a Revolução Francesa, foi publicada no Brasil em 1996 (Hobsbawm, 1996; Vovelle, 2004), ou antes a controvérsia da historiografia alemã (Historikerstreit) da década de 1980 em torno à obra de Ernst Nolte sobre o nazismo.[1] Contudo, e aí está a riqueza da crítica de Losurdo, este autor realiza a articulação dessas duas controvérsias historiográficas num grande debate, qual seja, aquele sobre a revolução socialista no século XX, permitindo identificar as enormes afinidades e circulação entre diferentes contextos revisionistas.

Além disso, Losurdo articula com desenvoltura a historiografia revisionista com o pensamento de autores neoliberais, assinalando as inúmeras semelhanças entre as proposições de Furet, Ernst Nolte, Richard Pipes e autores como Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek. No caso de Pipes, o detrator da Revolução Russa, a menção à von Mises é direta: a atração dos intelectuais pelo anticapitalismo seria um sintoma de sua pouca relevância, mas perigosamente estaria por trás de grandes barbáries no século XX. No entanto, são mais sutis as concordâncias de Furet com Hayek, por exemplo, embora possa ser observada estreita concordância quanto à responsabilização dos “sonhos de engenharia social” no que toca ao surgimento de regimes despóticos, seja no final do século XVIII na França, ou na Rússia soviética do século XX. Nesse terreno, revisionistas e neoliberais se irmanam no esteio burkeano.[2] Em certa medida, Losurdo aponta também para as diferenças entre os historiadores revisionistas e os autores neoliberais, já que estes últimos costumam ser mais extravagantes no espancamento das evidencias empíricas. Trata-se assim de uma obra em que o autor é capaz de localizar o lugar da historiografia revisionista no interior do debate intelectual contemporâneo.

Uma ideia permite-lhe articular os revisionismos: o propósito de liquidar a tradição revolucionária, ou melhor, o ciclo revolucionário que vai de 1789 a 1917. O resultado são desabamentos em cadeia, ou um “efeito dominó”,[3] em que a desqualificação de eventos como as revoluções francesa e russa colocam em xeque a compreensão de outros processos históricos e percepções políticas contemporâneos: “Sem a Revolução Francesa não se pode compreender o Risorgimento italiano, claramente influenciado pelo movimento de 1848, pela experiência napoleônica e, antes ainda, pela Revolução Napolitana de 1799.” (Losurdo, 2017. p. 14)

Em suma, como entender a via da construção do Estado moderno italiano sem a compreensão do caso clássico de revolução burguesa ocorrido na França no final do século XVIII? A mesma observação pode ser dirigida ao resultado da desqualificação da Revolução Russa de 1917 representados na historiografia por Pipes, Nolte e Furet:

“Por sua vez, a queda do ‘mito’ do Outubro bolchevique lança uma sombra inevitável sobre a Resistencia antifascista que se desenvolveu internacionalmente, no âmbito da qual exerceram papel preponderante as forças políticas e sociais explicitamente influenciadas pelo bolchevismo. E uma sombra ainda mais inquietante acaba por envolver o movimento revolucionário anticolonial, desde suas origens estimulado e fortemente condicionado pela agitação e pela presença comunista. Autores que não professam explicitamente o revisionismo, embora possam ser nele enquadrados, saúdam com ardor o ‘revival do colonialismo’: junto ao país nascido da Revolução de Outubro, desmoronaram também suas ‘crenças ideológicas’ e o seu ‘cânone sagrado’ de que fazia parte o opúsculo de Lenin dedicado à denúncia do imperialismo” (Ibid., p. 15).

Losurdo não se limita a criticar a historiografia revisionista e traz contribuições importantes no que toca à dinâmica da revolução burguesa na Inglaterra, o país pioneiro do capitalismo. Seria necessário entender o processo de transição ao capitalismo como resultando de três revoluções: a Reforma anglicana, a Revolução de 1640 e a chamada Revolução Gloriosa de 1688 (Ibid., p. 54-57). Desta, desdobra-se a tese, já conhecida e enunciada por vários autores, da revolução americana em duas etapas (p. ex. Moore Jr., 1983), o processo da Revolução Americana (1776-1783) e a Guerra Civil (1861-1865) respectivamente, seguidas pelo período da chamada Reconstrução (1865-1876), como constitutivos da ordem social capitalista. A ampliação do escopo da análise numa perspectiva mais global poderia permitir a Losurdo entender como a própria expansão colonial inglesa e constituição do sistema escravista colonial foram partes fundamentais desta dinâmica de constituição do capitalismo (p. ex. Linebaugh; Rediker, 2008; Wood, 2014), mas sua ideia de articular os três processos como constitutivos da revolução burguesa na Inglaterra já é uma contribuição importante.

Além do debate sobre o revisionismo de Furet e Nolte, os dois capítulos incluídos na edição inglesa e brasileira tratam do revisionismo do imperialismo presente na obra de Niall Ferguson e uma resposta ao Livro negro do comunismo. Essas duas inclusões enriquecem a obra, pois se no caso do Livro negro há uma evidente relação com paradigma histórico anticomunista que é o cerne da corrente revisionista, no revisionismo do imperialismo evidencia-se uma das principais consequências éticas de tal interpretação ao inscrever no horizonte a normalização da barbárie.

Vejamos os contornos gerais do revisionismo histórico.

Reproduzindo uma espécie de leitura canônica do liberalismo conservador sobre 1789, Furet já desde a década de 1960 cunhou a noção de dèrapage [derrapagem] para se referir à fase jacobina da Revolução Francesa, o chamado período do Terror. No livro que escreveu com Denis Richet em 1965, Lá Revolution française os autores apresentaram a tese da dèrapage para distinguir entre um momento autêntico da revolução, restrita ao paradigma liberal (sistema constitucional, divisão de poderes, ainda sob o reinado Bourbon), e um momento sanguinário, onde o igualitarismo rousseauneano conduziu a revolução a “sair dos trilhos”, “derrapando”. Essa tese absolutamente teleológica se conclui com a noção de que o processo de liberalização da França já havia se iniciado sob o Ancien Régime, e que a Revolução devia ser entendida mais como uma espécie de “acidente”.

Em seu livro mais conhecido, Pensando a Revolução Francesa, Furet basicamente acusa a historiografia marxista de ter produzido um “catecismo revolucionário”, interditando o estudo imanente da Revolução de 1789 e associando-a indevidamente à Rússia de 1917 (Furet, 1989 [1978]). Tal é o tom do revisionismo furetiano. Além de resgatar a própria condenação contemporânea da Revolução, do whig irlandês Edmund Burke, pai do conservadorismo, Furet incorpora a leitura de autores como Benjamin Constant para a censura interna do processo revolucionário, onde são exorcizados os propósitos igualitaristas associados a obra de Rousseau e aos jacobinos. Ora, o interlocutor de Hayek que assinaria embaixo de tal revisionismo de Furet é Jacob Talmon, que vê em Rousseau uma espécie de esquizóide totalitário[4]. O que seria a última obra de Furet, O passado de uma ilusão (1995), senão o coroamento desse catecismo liberal escrito ao longo de décadas em livros como Pensando a Revolução Francesa (1989 [1978]) e o seu coorganizado (pretensioso e falho em inúmeros aspectos) Dicionário crítico da Revolução Francesa (1989)?[5]

Quanto a Nolte, sua leitura de que o extermínio de judeus praticado pelos nazistas seria uma “cópia” da “violência asiática” dos comunistas russos (Nolte, 1989) inscreve no horizonte a reabilitação do nazismo, ou sua normalização, como assinalou Habermas (1989). Nolte parte do pressuposto de que se poderia colocar em pé de igualdade uma ideologia que prega o extermínio de um povo (“raça”) dos judeus com a que prega o fim do capitalismo. Antes de mais nada, vale assinalar que o trabalho nolteano é calcado numa perspectiva que dá às ideias um papel demiurgo do real, e ainda que deva ser observado que as ideologias que conquistam o assentimento das massas devam ser tomadas como forças materiais, uma interpretação de qualquer fenômeno histórico baseada apenas nesse terreno será sempre unilateral. Mas, vejamos alguns dos problemas e fragilidades internas da argumentação nolteana.

Em primeiro lugar por sugerir que, à maneira da crítica burkeana à Revolução Francesa, se deva derivar a violência do regime stalinista do marxismo, um procedimento notadamente idealista e ideológico. Em segundo, há um problema quanto ao mérito da comparação entre uma proposta política que defende o fim de uma relação social (e por suposto da existência das classes sociais que lhe dá suporte) de um determinado modo de produção daquela que defendeu o extermínio físico dos judeus, ciganos e a escravidão dos eslavos.

A leitura de Nolte se baseia numa falácia. Afinal, a transposição da tese nolteana para o século XIX levaria a que o movimento pela abolição da escravatura fosse tomado como “exterminacionista” tal como o nazismo, embora fosse evidente que, pretendendo abolir uma relação social como a escravidão os abolicionistas pretendessem liquidar as classes sociais que lhes são subjacentes, senhores de escravos e os próprios escravos. Comparar a proposta de abolição do capital (e da escravidão assalariada que é seu corolário) com o extermínio de judeus é sem dúvida desonesto.

A verdade é que, para Losurdo, o próprio Terceiro Reich pode ser lido como “uma pavorosa onda contrarrevolucionária em relação àquela revolução abolicionista iniciada com o decreto da Convenção jacobina que põe fim à escravatura nas colônias francesas” (Losurdo, 2017, p. 17). Numa abordagem notadamente influenciada por Lukács de A destruição da razão (1959 [1953]), Losurdo entende o regime nazista como “um Antigo Regime ou uma Vedeia de dimensões internacionais” (Ibid., p. 18). Oposta a isso, ao buscar equivalência entre revolução e contrarrevolução, comunismo e nazismo, a operação revisionista de Nolte desqualifica a própria noção de revolução, e nisso se encontra no mesmo terreno de Furet.

A desqualificação do conceito de revolução encontra lugar importante na noção de totalitarismo (Loff, 2014). Recuperando a dinâmica interna da obra da filósofa alemã Hannah Arendt, cujo livro Origens do totalitarismo (1949) é um marco importante nessa discussão, Losurdo lembra como nesse livro a autora ainda fazia questão de diferenciar a ditadura revolucionária de Lenin do regime terrorista e totalitário de Stalin, distinção que irá desaparecer em sua obra posterior, Da Revolução (1963).[6] Nesse último livro, Arendt vai juntar-se definitivamente à onda revisionista.

Losurdo lembra também como, entre as determinações históricas do fenômeno totalitário presente na obra de 1949 o tema dos massacres coloniais é fundamental. Ora, é justamente o tema colonial e especialmente das lutas anticoloniais que são esquecidas e desqualificadas na historiografia revisionista, certamente pela dificuldade de nesse terreno dá continuidade à desqualificação da tradição revolucionária de 1789-1917. Como é possível, por exemplo, descolar a única revolução de escravos vitoriosa na história da humanidade, aquela realizada em São Domingos (atual Haiti) entre o final do XVIII e início do XIX, e a tradição igualitária jacobina? Como descolar o vasto movimento anticolonialista ocorrido na Ásia e na África no século XX sem contabilizar a influência do chamado à autodeterminação dos povos presentes na obra de Lenin, no apelo para a transformação da guerra imperialista (a Primeira Guerra Mundial) numa guerra civil revolucionária, nas primeiras resoluções da Internacional Comunista a respeito da questão colonial e do próprio papel da URSS no apoio aos movimentos de libertação colonial?

Como demonstra Losurdo, a comparação da questão colonial demole o propósito revisionista de igualar a União Soviética com o Terceiro Reich. A admiração que Hitler tinha para com o modelo do Império Colonial Britânico é em geral recalcado na historiografia revisionista.

“O modelo de Hitler se baseia no império colonial da Inglaterra, cuja função e missão civilizadora ele leva em altíssima consideração: ‘desde o fim do Sacro Império Romano não houve na Europa um Estado superior ao da Inglaterra’. No momento do triunfo do Eixo [1942], Hitler se mostra bastante preocupado com o ‘estado de anarquia que persistirá na Índia quando da partida dos ingleses’; a Ucrânia é o ‘novo Império das Índias’, e seus habitantes, assim como os da Europa oriental em geral, são insistentemente definidos como ‘indígenas’; o fürher adverte até mesmo os italianos para que se atenham ao modelo colonial inglês no Egito e na África” (Losurdo, 2017, p. 120).

Em Guerra e Revolução o autor mostra como figuras como Winston Churchill e Henry Ford vinculavam a Revolução soviética a uma suposta “conspiração judaica” (Ibid., p. 222). E embora seja um truísmo mencionar que ambos viram com bons olhos à ascensão de Mussolini e Hitler para “conter o comunismo”, e que Ford tenha sido financiador do movimento nazista, tais elementos são comumente negligenciados na historiografia revisionista que prefere encontrar uma suposta “raíz jacobina no comunismo e no fascismo”, como o fazem Furet, Nolte e consortes. Em uma palavra, o que é recalcado na historiografia revisionista é a relação do capitalismo com o fascismo. E como bem disse Horkheimer, “quem não quiser falar de capitalismo deverá também calar-se no que diz respeito ao fascismo”.

Guerra e Revolução vem em boa hora no debate intelectual brasileiro e pode ajudar a iluminar outros debates importantes entre historiadores brasileiros, particularmente aquele centrado nos estudos sobre a ditadura militar. Como campo de batalha, a memória sobre o século XX encontra-se sobre forte ofensiva no front revisionista. E como esse “inimigo não cessa de vencer”, será necessário “atiçar no passado a centelha da esperança”, pois “nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer” (Benjamin, 2012. p. 12).

Referências bibliográficas

Benjamin, W. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

Cardoso, C. F. História e poder: uma nova história política? In,: Cardoso, C. F.; Vainfas, R. (orgs.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

Furet, F. Pensando a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989 [1978].

_____. O passado de uma ilusão. São Paulo: Siciliano, 1995.

Furet, F.; Ozouf, M. (org.). Dicionário crítico da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

Habermas, J. Tendências apologéticas. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 25, p. 16-27, 1989..

Hobsbawm, E. Dois séculos reveem a Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Merquior, J. G. Rousseau e Weber. Rio de Janeiro: Guanabara, 1990.

Linebaugh, P.; Rediker, M. A hidra de muitas cabeças. Marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Loff, M. Depois da Revolução?… Revisionismo histórico e anatemização da Revolução. In: Melo, D. B. (org.). A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014.

Losurdo, D. Il revisionismo storico: problemi e miti. Roma-Bari: Laterza, 1996.

_____. Stálin: história crítica de uma lenda negra. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

_____. War and Revolution: Rethinking the 20th Century. Londres: Verso, 2015.

_____. Guerra e Revolução: o mundo um século após Outubro de 1917. São Paulo: Boitempo, 2017.

Lukacs, G. El asalto a la Razón. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1959.

Nolte, E. O passado que não quer passar. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 25, p. 10-15, 1989.

_____. La Guerra Civil Europea 1917-1945. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1994.

Traverso, E. Interpretar el fascismo. Notas sobre George L. Mosse, Zeev Sternhell y Emilio Gentile. Ayer, n. 60, p. 227-258, 2005.

Vovelle, M. Combates pela Revolução Francesa. Bauru: Edusc, 2004.

Wolfreys. J. Twilight Revolution: François Furet and the Manufacturing of Consensus. In: Wolfreys, J.; Haynes, M. (orgs.). History and Revolution: Refuting Revisionism. Londres: Verso, 2007.

Wood, E. M. O império do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.

[1] Os dois artigos que iniciaram essa controvérsia, de Ernst Nolte e Jürgen Habermas, foram publicados no Brasil em Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 25, 1989.

[2] E não por acaso no início da década de 1982 Furet ajudou a fundar e foi presidente do think tank Foundation Saint-Simon, dedicado à defesa da economia de mercado, da crítica ao “totalitarismo” e defesa da democracia representativa.

[3] Como na tradução brasileira.

[4] Para uma crítica interessante por parte de um sofisticado autor liberal, ver Merquior (1990: 38).

[5] Outras críticas ao revisionismo de Furet que confluem nesse mesmo sentido pode ser lidas em Hobsbawm (1996), Vovelle (2004) e Wolfreys (2007). Sobre os problemas do Dicionário, o saudoso Ciro Flamarion Cardoso escreveu que Furet teve a “audácia de ignorar de todo a obra de Albert Soboul, um historiador marxista que, pelo contrário e sem dúvida alguma, era um especialista da Revolução Francesa com abundante pesquisa baseada em fontes primárias” (Cardoso, 2012. p. 48).

[6] Esse ponto é emblemático da fase da obra de Losurdo quando escreveu o livro aqui comentado, já que na década de 1990, no contexto de crise e tentativa de refundar o comunismo italiano, tinha uma lavra mais ecumênica em relação à tradição marxista, mencionando, por exemplo, a figura de Leon Trotsky em chave positiva, e pouca disposição de defender Stálin. Uma postura muito distante dessa encontra-se na obra posterior de Losurdo, culminando na hagiografia que escreveu sobre o ex-dirigente soviético. Nesta a liquidação do antigo grupo dirigente do partido bolchevique, entre os quais Trotsky e Bukharin, é referida como uma “terceira guerra civil”. Como bem disse um amigo virtuoso, uma “estranha guerra civil onde só um lado morre”. (Losurdo, 2010).

[Resenha a:] MARANHÃO, Carlos. Roberto Civita. O dono da banca. A vida e as ideias do editor da Veja e da Abril. SP, Companhia das Letras, 2016.


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Carla Luciana Silva

Uma pessoa que escreve na sua agenda “coitus interruptus: FHC phone call” tem a certeza de que esse registro vai figurar em sua biografia. Tem também um ego inflado, e uma grande satisfação na vida, aquela de quem tem certeza de que é influente e que, portanto, seus objetivos de vida foram atingidos. Ajudou a eleger o presidente. Recebe suas ligações e atende em qualquer momento, mesmo que isso interrompa seu ato sexual, afinal, as ligações sempre vêm atrás de um conselho. É isso que se depreende no livro: “os políticos e o presidente da República vivem me chamando” (Maranhão, 2016, p. 406).

À historiadora couberam páginas e páginas tentando mostrar essa simbiose entre o presidente e o editor, sempre com cuidados e senões (Silva, 2009), para agora, em poucas linhas, aparecer essa síntese brilhante: Roberto Civita amava FHC e tudo que ele representava no Brasil. Mas dito por um historiador, pode ser acusado de teoria da conspiração. Contado como uma bela biografia, talvez seja levado mais a sério como indício das relações entre imprensa e poder no Brasil.

A biografia de Roberto Civita nas suas primeiras dezenas de páginas parece que não vai passar de uma hagiografia. Elogios e admiração transparecem a todo momento. Mas o texto surpreende. Não que passe a ser crítico, mas por ser um trabalho bem feito, muito rico, de grande valor para qualquer pesquisador da história da imprensa brasileira recente. É uma leitura envolvente, sobretudo para quem conhece um pouco do universo sobre o qual a trajetória do biografado vai se desenvolver, a história da revista Veja, seus bastidores, suas relações de outra forma apenas suspeitas, são desvendadas na biografia. A relação de fundo é com a editora Abril. Mas a menina dos olhos, o centro de tudo, era a revista Veja. Civita recebia seu exemplar e rabiscava-o totalmente, apontando erros e discordâncias aos editores. O autor da biografia nos jura que ele não interferia nas matérias antes de serem publicadas, a não ser em situações excepcionais narradas no livro. Em todo caso, atesta que a linha editorial era acertada por Civita previamente, e era conferida sempre: “eu não mudo capa. Eu mudo diretor!” (Maranhão, 2016, p. 414) Essa frase de Civita é comprovada ao longo da obra.

Além disso, Civita não deixava lugar a dúvidas: “em termos de opinião, seguimos uma linha. Do contrário, faremos uma revista anódina, sem cor, sem posição. Os leitores sabem o que pensamos. Não preciso agradar a todo mundo” (Ibid., p. 420). É uma frase ambígua. Para quem se coloca sempre ao lado “dos fatos”, a questão de uma revista não é agradar, e sim, estar correta diante dos fatos. Mas, mais fundo que isso, aqui é a negação de ser portadora de um programa de ação, o que é contraditório ao indicar que a revista deve “ter posição”, e isso não é uma questão de gosto, e sim de identidade política.

Biografia oficial, cronológica, previa 37 entrevistas com a finalidade de formular uma autobiografia. Oito foram realizadas, veio a morte do biografado. O autor, que fora funcionário da Abril por mais de quarenta anos, teve que usar a sua experiência jornalística e contatos que só ele (como escolhido pelo biografado) teria para sair atrás da história. Sorte dos leitores que não vão ler o relato de alguém que se achava o melhor em tudo que fazia, e sim, o relato que está longe de ser imparcial, mas que permite na leitura o exercício da reflexão histórica.

Como alertara Bourdieu (2006), uma biografia não é uma história de vida, mas uma trajetória, relacionada com uma história. A primeira reflexão dessa história, que salta aos olhos, é que o mundo que envolveu na constituição da editora Abril foi um mundo de ricos. Milionários. Que não hesitavam em gastar milhões em férias com amigos no Caribe, ou mais de 200 mil em um jantar no restaurante Fasano. Riqueza inatingível para os mortais leitores, mas parcialmente compartilhada com seus executivos, diretores, sócios. Seria eventualmente jogada em pílulas através de matérias que mostravam e exaltavam a riqueza nas páginas das revistas do Grupo Abril. Tudo isso era necessário para criar um campo de proximidade e unidade entre eles. Uma unidade que pegava a todos, especialmente aqueles jornalistas que tinham uma origem de esquerda, mas que se renderiam ao pensamento da revista. Eurípedes Alcântara, um dos diretores da revista, diria que ele mesmo fora no passado militante de esquerda (chegou a editar a revista Teoria e Debate do PT), mas que era “a UDN dos trotskistas (…) já era conservador quando era de esquerda” (Maranhão, 2016. p. 416).

O autor não tem qualquer problema em identificar “um pensamento” de Veja, um conjunto restrito de ideias, a defesa do capitalismo inconteste, o anticomunismo, o “livre mercado” formavam a essência dessas ideias. Nas palavras de Civita, tudo isso se somava a um desejo de “fazer algo para o Brasil”. Diante disso, a tese da criação de um “sujeito Veja” (Silva, 2009) fica confirmada e atestada. Esse sujeito era o porta-voz das posições da grande empresa que se tornou a Editora Abril. O autor insiste ao longo da obra em uma autonomia editorial, mas absolutamente amarrada aos princípios do capitalismo. O anticomunismo não é um simples discurso, mas uma prática sistemática. Entretanto, há uma falta, provavelmente proposital, que é o silenciamento absoluto sobre as relações de classe, as relações de outros centros formuladores de políticas e pensamento por parte da editora Abril. Está certo que Roberto centralizava, mas é equívoco fazer supor que isso vem apenas de sua cabeça. O livro silencia sobre isso, mencionando a formação que ele teve ainda na década de 1950 no Estados Unidos. Isso pode ajudar a explicar um sentido de posição, mas não as alterações que vão sendo feitas ao longo das décadas para se readequar às mudanças do capitalismo no Brasil.

As relações sociais burguesas são amplas: Banco Safra, Banco Itaú, editora Abril, presidente FHC, sentados à mesa ou conversando ao telefone. Uma simbiose de quem sabe o que é gastar dinheiro. O espírito empreendedor, a criação do impossível arriscando o que não tinha, o homem que se faz, não sozinho, mas com seus parceiros de fé. Mas como formulam “o que fazer”? Sobre isso não há nada dito. Além disso, há, em profusão, conflitos intraclasse. São vários os conflitos com a Globo e com o Grupo Folha apontados na obra e que merecem maior estudos. Algumas dessas questões são sempre passıveis de desconfiança para os pesquisadores, mas podem ser facilmente atestadas por quem está lá, degustando seu uísque e seu iate no Mediterrâneo. Reuniões em Nova York ou Londres aparecem a todo momento, sempre que algo muito importante precise ser decidido. Qual o contexto das reuniões e quem é consultado? Não sabemos.

Faz sentido mostrar Roberto Civita como um norte de sua empresa. Ele agia como uma espécie de manual de redação, embora não houvesse um oficialmente. Definia princípios para os jornalistas, muito reverberados desde os cursos Abril de jornalismo, até a criação de um MBA na área.[1] Há uma passagem em destaque sobre “como se lidera o mercado de revista”, atribuída a Civita. Dentre os itens em destaque, ressalta-se “localize sua empresa em São Paulo, de preferência na década de 1950”, o que explicita que a Abril era um caso único, e também “conheça seu mercado”. Essa tecla é rebatida como a chave do sucesso, tanto que o subtítulo do livro é “o homem da banca”. Isso se deve ao fato de que ele dizia sempre que é necessário “conhecer o leitor”, saber o que ele queria, conversar com os jornaleiros, fazer pesquisas. Uma fórmula nova. Mas uma fórmula muito questionável, na medida em que nos parece que a segmentação sempre foi uma forma de ajudar a formar o próprio leitor (Silva, 2008), atingindo todos os aspectos da sua vida.

O livro mostra bem os momentos de crise da editora Abril. Inicialmente a crise gerada pela criação da revista Veja, que já era conhecida, mas é bem esmiuçada na obra. E posteriormente, nos anos 2000, quando o Grupo Abril investe na televisão, com a TVA, que quase levou a empresa à falência. No primeiro caso, insistência e perseverança; no segundo, choque de gestão, enxugamentos, remodelação estrutural, mantém-se o grupo. A narrativa nos permite perceber que os caminhos diante da reestruturação produtiva que se construía nos anos 1990 também atingiram em cheio o Grupo Abril. Há detalhes desse processo que tem a ver com o alto custo da tecnologia para a instalação de televisão paga, o que levou a uma dívida que beirava um bilhão de reais! (Maranhão, 2016, p. 377) A saída foi a venda de capital para grupos estrangeiros, processo esse que foi facilitado no final do Governo de Fernando Henrique Cardoso.

Um dos elementos bastante tocados na obra é a “troca de guarda” de Veja. Chave do sucesso da editora, sempre foi difícil lidar com o nome à frente da revista. Inicialmente, o problema se relaciona a Mino Carta, há uma vasta discussão sobre ele, uma espécie de história passada a limpo para responder ofensas que Mino teria feito ao longo da vida contra Roberto. Mas o mais interessante são os conflitos nos anos 1990. Primeiro o conflito envolvendo Mario Sergio Conti, que foi o diretor da época de maior alavanca da revista, aquela do impeachment de Fernando Collor. Conti em sua obra (Conti, 2012) insinua que a Veja recebia dinheiro para publicar matérias, o que evidentemente foi imperdoável para a imagem da editora. Entretanto, a troca de favores entre revista e anunciantes não é uma relação direta, ela mereceria um estudo mais aprofundado, com acesso a informações de bastidores que são difíceis ao historiador. Houve momento de discordância editorial, por exemplo, na Exame, quando foi dirigida por Rui Falcão, que viria a ser presidente do PT. Há um reconhecimento da existência de profissionais de esquerda. Alguns deles mudam de posição (seria o caso, mais à frente de Reinaldo Azevedo). Ao mudarem de posição, eles têm necessariamente que se adequar à linha editorial. Se não o fizerem, estão fora do projeto como ocorreria com Falcão. Se o fizerem, mostram como as ideias de direita seriam superiores. As revistas não são em nenhuma medida um “terreno em disputa”.

Algo curioso, que já fora percebido, mas que não tínhamos certeza das motivações, foi a opção durante o período de Tales Alvarenga à frente da revista por uma linha editorial mais “de serviço”, de comportamento, de “sociedade”: “a revista passou a publicar reportagens sobre problemas conjugais, o poder do cérebro, viagens à Disney, dietas, o crescimento dos carismáticos na Igreja católica e perfis de personagens como o apresentador Ratinho e o escritor Paulo Coelho” (Maranhão, 2016, p. 360). Foi um período apenas, logo substituído pela volta à política na capa da revista. Essa postura seria sempre necessária para manter o poder de Roberto Civita já que Veja era “um corpo à parte da empresa. A república da Veja”, (Ibid., p. 361) E por isso precisa “ter dentes”: “não pode ser um leão desdentado”, nas palavras do diretor que substituíra Tales, Eurípedes Alcântara. Mesmo assim, o livro atestava a fidelidade de Tales: “na redação era de conhecimento geral que ele, simpático ao liberalismo e ao sistema capitalista, não gostava da esquerda, defendia as privatizações do governo Fernando Henrique e se opunha à presença do Estado na economia” (Ibid., p. 359).

Do ponto de vista político, há um conflito claramente colocado. Já havíamos percebido que no primeiro momento do governo Lula a revista não fez oposição direta. Pelo contrário, apoiou as medidas econômicas que estavam sendo seguidas pelo PT da “Carta aos Brasileiros” (Silva, 2006). Maranhão mostra que “naquele primeiro ano, não foi dada nenhuma capa contra o presidente em início de mandato” (Maranhão, 2016, p. 412). É preciso que nos debrucemos mais sobre esse período mais recente, mas o livro aponta um caminho frutífero.

A ojeriza ao PT e seu projeto seria corporificada em uma figura, José Dirceu. A admiração teria levado a uma tentativa de acordo mais explícito? Maranhão relata que “em pelo menos uma ocasião, Roberto se impressionou com o que José Dirceu lhe expôs. ‘Ele fala como se fosse um de nós’, disse”. E em seguida o autor explicita as palavras do novo Presidente do Grupo, Maurizio Mauro: “José Dirceu, não Lula, é que deveria ser o alvo de suas preocupações. ‘Se ele for o sucessor, estamos fritos’” (Ibid., p. 394). São enigmáticas essas palavras, mas há uma admiração e uma tentativa de transformá-lo em seu interlocutor? Ou há um medo que justificaria acabar com seu possível crescimento?

De qualquer forma, há aqui uma sinalização importante para a cristalização do antipetismo que se aprofunda após o Mensalão. Não é à toa que José Dirceu seria alvo de campanhas que ‘permitiram punição contra ele no processo do Mensalão. É um tema a ser aprofundado.

Roberto Civita morreu em 2013. A Abril seguiu o processo de reestruturação imposta às empresas de comunicação nos anos 2010. Mas, contra prognósticos, Veja segue existindo.

Claro que esse livro vai servir, em grande medida, como uma espécie de autoajuda para empresários, que irão admirar o homem que do nada criou um quase império. Muito criativo, muito corajoso, pronto para os grandes desafios que ele mesmo criava. De outro lado, para historiadores que se preocupam com as formas da dominação burguesa no Brasil, sem querer ter sido isso, o livro é uma grande leitura.

Referências bibliográficas

Bourdieu, P. A ilusão biográfica”. In.: Figueiredo, J.; Ferreira, M. (orgs.) Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

Conti, M. S. Notícias do Planalto. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Maranhão, Ca Roberto Civita. O dono da banda. A vida e as ideias do editor da Veja e da Abril. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

Silva, C. L. O “admirável mundo” de Veja: influências sociais de uma revista de informação”. Historia Actual On Line, n. 15, p. 89-105, 2008.

_____. A Carta ao Leitor de Veja: um estudo histórico sobre editoriais. Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v. 32, n. 1, p. 89-107, jan.-jun. 2009.

_____. Veja e o PT: do “risco Lula” ao “Lula light”. Lutas Sociais, n. 15-16, 2006.

_____. VEJA: o indispensável partido neoliberal. Cascavel: Edunioeste, 2009.

[1] Dirigido por Eugenio Bucci, o curso formou 79 alunos (Maranhão, 2016, p. 431).

[Resenha a:] SENA JR., Carlos Zacarias (org.). Capítulos de história dos comunistas no Brasil. Salvador: UFBA, 2016.


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Lucas de Oliveira

A publicação, no atual contexto, de um livro sobre história dos comunistas no Brasil é importante em muitos sentidos. Em primeiro lugar, porque nesta obra a diversidade de temas se ajusta a uma multiplicidade de perspectivas que permite iluminar as transformações porque passou, em sua longa trajetória, o objeto a que estão dedicados os textos dos autores e autoras aqui reunidos: o PCB. Além disso, estes capítulos – que são plurais – fazem parte de um esforço combatente contra o esquecimento e a desagregação que busca, a todo tempo, avançar contra a história das experiências de lutas e organizações populares.

Organizada por Carlos Zacarias de Sena Júnior, professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia, a coletânea reúne uma série de onze artigos produzidos nos marcos do Seminário sobre os Comunistas no Brasil realizado na Bahia em junho de 2012, recordando o cumprimento dos 90 anos do PCB. Os textos aparecem agrupados em três partes definidas cronologicamente: I – “Das origens à Aliança Nacional”; II – “Resistência e legalidade”; e por último III – “Do manifesto de Janeiro de 1948 à Declaração de Março de 1958 e além”. A amplitude cronológica abarcada por estes Capítulos torna possível a realização de uma apreciação crítica a respeito da trajetória dos comunistas no país, fundamental para o aprendizado político a que Marcos Del Roio faz referência no prefácio: “Não só para saber dos erros, das derrotas, mas também dos momentos de glória e luta heroica contra a exploração capitalista e a opressão colonial”.

Na Introdução, a pena de Carlos Zacarias ergue-se uma vez mais contra as armadilhas das leituras ideologicamente seletivas sobre o passado, já bem designadas algures como revisionistas. Partindo de uma reflexão a respeito das distintas interpretações sobre a Revolução Russa e seus desdobramentos, o autor chama a atenção para as importantes ausências, no mercado editorial brasileiro, de bibliografia sobre o tema. Em seguida, analisa a trajetória da historiografia sobre o PCB, avaliando suas principais tendências desde os anos 1960. Aludindo à distopia teórica lançada sobre parte historiografia a partir da debacle do chamado “socialismo real”, o autor demonstra como nas últimas duas décadas assistiu-se a um giro conservador em algumas publicações sobre o tema. Por isso, o questionamento que dá título a seu texto “Por que uma história dos comunistas brasileiros?”, soa também como um manifesto, um demarcador de posições que serão exploradas ao longo do livro. Inserindo estes Capítulos nos debates intelectuais vigentes, Carlos Zacarias de Sena Júnior lembra que “não podemos conceder essa história tão cara aos militantes e à própria historiografia brasileira (…) a uma abordagem que inspire, nem de longe, algum tipo de anticomunismo”.

A primeira parte do livro, “Das origens à Aliança Nacional Libertadora (ANL)”, é inaugurada por um texto de Marly de Almeida Gomes Vianna intitulado “Observações sobre ideias socialistas, anarquistas e comunistas na imprensa (1902-1924)”. Conhecedora do tema e autora de obras importantes sobre o assunto, Vianna analisa os veículos de imprensa vinculados a essas distintas vertentes do incipiente movimento operário brasileiro buscando entender como aqueles trabalhadores compreendiam sua situação e que tipo de política buscaram levar a cabo no enfrentamento da dominação capitalista. Assim, através da leitura de panfletos, volantes, revistas como Movimento Comunista e de jornais de grande tiragem como A Guerra Social, Na Barricada, Guerra Sociale, A Lanterna e A Voz do Trabalhador, Marly Vianna consegue identificar importantes diferenças nas análises conjunturais, nas estratégias de construção orgânica e na elaboração de projetos políticos por cada uma dessas correntes. Aponta também para aspectos em comum: o esforço árduo para constituir-se enquanto vanguarda política de uma classe em formação.

No capítulo seguinte, “Notas sobre as primeiras movimentações comunistas na Bahia e na Região Cacaueira”, Marcelo da Silva Lins, professor da UESC, procura acompanhar os primeiros passos do PCB na Bahia, apontando para a dificuldade em definir uma “certidão de nascimento” para a organização no estado. Nesse sentido, lançando mão de livros de memórias de antigos militantes e de pesquisa documental nos arquivos da repressão, o autor procura reconstruir a trajetória inicial dos comunistas na Bahia desde meados de 1925, quando das primeiras filiações formais, até as conflituosas relações estabelecidas com a ANL dez anos mais tarde.

A trajetória de Antônio Maciel Bonfim é abordada no artigo de Raimundo Nonato Pereira Moreira em perspectiva biográfica. Investigando a formação política e o percurso intelectual de seu personagem, o autor procura operar uma reavaliação “do itinerário de um indivíduo transformado em farrapo humano pelo aparelho repressivo” e, além disso, “submetido a um impiedoso processo de liquidação política pelos companheiros de partido”. Assim, é lançando mão de fontes documentais memorialísticas e jornalísticas que Moreira escreve o seu “Antônio Maciel Bonfim ou ‘o celebre Miranda’: entre a história e a memória”.

A primeira parte do livro se encerra com o texto “1935: A Manhã e a ‘Campanha dos 50” de Dainis Karepovs a respeito da chamada “Campanha dos 50%”. Tomando como fonte principal o jornal carioca A Manhã, cuja linha editorial esteve fortemente influenciada pela atuação dos comunistas no período analisado, o autor se aproxima das formas de construção do movimento de estudantes na luta por “abatimentos nos meios de locomoção e diversão”. Deslindando as formas específicas de vinculação entre o movimento e a ANL, Karepovs acompanha a trajetória da Campanha entre agosto e novembro de 1935, quando começa a se desarticular, em partes por conta das férias escolares, em partes pela utilização crescente do “tacão da repressão política”.

“O território do tornar-se: pelas ruas e esquinas o intelectual baiano se fez comunista”, escrito por Rafael Fontes, inaugura a segunda parte do livro, enfrentando reflexões a respeito da conformação urbana da cidade de Salvador na primeira metade do século XX, acerca dos intelectuais em geral e dos intelectuais comunistas e do rol por eles ocupado naquele cenário.

Carlos Zacarias de Sena Júnior colabora, nesta segunda parte do livro, com o artigo intitulado “O esteio da ordem: comunistas, greves e sindicatos no Brasil (1945-1948)”. Desde o título, o artigo aponta para os conflitos enfrentados pelo PCB a partir de sua aposta na perspectiva de coexistência pacífica adotada pelos Partidos Comunistas vinculados a Moscou, associada à tentativa de aliança com setores tidos como progressistas da burguesia em nome do desenvolvimento nacional. Nesse sentido, ao longo do texto, Zacarias demonstra como a defesa de soluções políticas e econômicas “dentro da ordem e do respeito mútuo entre as classes” por parte da organização coincidia com sua política de colaboração de classes e de defesa irrestrita do que entendia ser a “paz democrática”.

Em seguida, Raquel Oliveira Silva analisa a implantação, em Salvador, dos Comitês Populares Democráticos (CPD) a partir de 1945 em artigo intitulado “O PCB e os Comitês Populares Democráticos em Salvador (1945-1947)”. Utilizando periódicos publicados no período, inclusive O Momento, vinculado ao Partido, Silva discute a forma como esses Comitês constituíram um esforço por parte do PCB em se aproximar de setores populares não pertencentes aos espaços sindicais.

“Insubordinação das bases do PCB frente às orientações dos Manifestos de Janeiro de 1948 e Agosto de 1950”, escrito por Ede Ricardo de Assis Soares, já faz parte da terceira parte do livro. Nesse texto, o autor discute as discordâncias surgidas no PCB de Alagoinhas, cidade do interior baiano, com relação às alterações dos Manifestos de Janeiro de 1948 e Agosto de 1950, demonstrando peculiaridades interessantes no que diz respeito à atuação dos comunistas em pequenos núcleos e cidades do interior.

Na sequência, o texto assinado por Frederico José Falcão, “A declaração de Março de 1958 na história do PCB”, se debruça sobre o horizonte político adotado pela organização a partir de finais da década de 1950. Analisando documentação interna do Partido e utilizando entrevistas realizadas a seus antigos membros, o autor procura compreender a repercussão dos debates ao redor da famosa Declaração no interior do partido, atentando para as transformações que ela provocou.

Em “A contradição principal: PCB e outros comunistas entre a ‘classe’ e a ‘nação’ (1956-1959)”, o professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, Eurelino Coelho, analisa as formulações em torno da chamada “Questão Nacional” entre marxistas brasileiros. Acompanhando os debates entre os marxistas do PCB e “os outros” (vinculados à Polop e, principalmente, à Liga Socialista Independente), o autor busca demonstrar – refutando afirmações em contrário – que essa além de ter sido uma questão frontalmente enfrentada pelo marxismo brasileiro, na prática, significou muito para a definição da estratégia revolucionária adequada à situação brasileira.

Por fim, o artigo de Muniz Gonçalves Ferreira “Um capítulo não escrito da história do comunismo brasileiro: a trajetória e as funções da Revista Internacional (Problemas da Paz e do Socialismo) no período: 1958-1990” encerra o livro com uma interessante análise sobre o papel cumprido, ao longo de uma extensa trajetória, pela Revista Internacional (Problemas da paz e do Socialismo) avaliando as relações entre o que ali circulava e as políticas e concepções adotadas localmente pelo PCB, destacando o papel formador e organizador da revista..

Pela diversidade dos temas que aborda e das questões que contêm, não é hiperbólico dizer: este é um livro importante. Lançado num contexto em que amplos setores da sociedade flertam com visões de mundo apoiadas no anticomunismo mais recalcitrante, o panorama que a obra oferece demarca posições políticas. No oceano da história dos comunistas, aqui aparecem textos em diferentes níveis de profundidade, de alcance, de horizonte. Todos eles, no entanto, a recordar que “o mar da história é agitado” e a contribuir no resgate de experiência dos trabalhadores em sua luta por emancipação.

[Resenha a:] DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016


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Rafaela Cyrino

O livro de Angela Davis “Mulheres, raça e classe” nos fornece um rico material de análise e reflexão, fundamental para a construção de um projeto político comprometido com uma transformação revolucionária que nos conduza a uma sociedade livre de qualquer tipo de opressão. O entrelaçamento realizado pela autora entre os componentes econômico, político e ideológico do modo de produção escravista e capitalista, nos permite enxergar como as diversas opressões se combinam e se entrecruzam na sustentação de projetos de dominação de classe. Além disto, Davis discute, a partir de realidades históricas concretas, como estas opressões criam, de maneira recorrente, ideologias de suporte, práticas de exploração e estratégias políticas de coerção, dominação e controle dos grupos dominados, as quais interferem, de maneiras contraditórias, na história dos diversos movimentos de luta e resistência, como o movimento abolicionista, o movimento antiescravagista, o movimento sufragista, o movimento de mulheres, o movimento associacionista, a luta pelos direitos reprodutivos, entre outros.

Angela Davis inicia o seu rico percurso histórico resgatando as bases do sistema escravagista, em que os negros, tratados como coisas, eram vistos apenas como unidades de trabalho lucrativo e não como seres humanos (p. 17). No sistema escravagista o povo negro, definido como propriedade, foi submetido a formas violentas de coerção, domínio e controle, em um sistema caracterizado por uma desumanização cotidiana materializada em atos cotidianos de tortura, estupro, espancamento, chicotada, entre outros. Apesar da crueldade e da insanidade do sistema escravista e do intenso processo de dominação do povo negro, minimizada, segundo Angela Davis, pela literatura da escravidão, a autora pontua as estratégias de resistência e de luta do povo negro, consubstanciadas em revoltas, fugas e sabotagens, resgatando personagens importantes na história de resistência do povo negro, como a abolicionista Sojourner Truth.

A autora discute, de maneira magistral, de que maneira, com a abolição da escravatura e a ascensão do chamado “trabalho livre”, ocorre uma reconfiguração das diversas opressões (de classe, sexo e raça). Este processo, abordado por Heleieth Saffioti em A mulher na sociedade de classes, significa a seleção de caracteres sexuais, raciais e de classe para operarem como marcas sociais que permitem hierarquizar os membros da sociedade de acordo com “as necessidades e conveniências do sistema produtivo de bens e serviços (SAFFIOTI, 2013. p. 60). Angela Davis, ao abordar a reconfiguração que visa legitimar e consolidar a dominação de classe capitalista, discorre sobre as diferentes tarefas, trabalhos e ideologias que são destinadas aos diversos grupos oprimidos. Assim, enquanto foram destinados às mulheres negras, em um primeiro momento, no período pós-abolição, o trabalho na agricultura e no serviço doméstico, sujeito a condições de exploração extremas e perpetuador de práticas de violência (como o abuso sexual por parte dos patrões), para as mulheres brancas pobres foi destinado o extenuante trabalho na fábricas, enquanto para as mulheres burguesas de classe média foi destinado a tarefa de cumprirem com dedicação a “nobre missão” de “ser mãe e dona de casa”, missão esta sustentada pela ideologia da maternidade, com forte viés racial e de classe.

Davis, ao historicizar a ascensão do culto à maternidade e à feminilidade no século XIX, como um subproduto da industrialização, discute como este culto legitimou a clivagem provocada pelo capitalismo industrial entre economia doméstica e economia pública, ao enfatizar o papel das mulheres como mães, protetoras e donas de casa, circunscritas a um espaço doméstico, definido doravante como não produtivo. Entretanto, Davis, além de discutir, do ponto de vista capitalista, a funcionalidade desta ideologia, ressalva o seu viés racista e classista, pois a ideia de mulher veiculada pelo mito da feminilidade não incluia nem as escravas do regime escravagista, que, “aos olhos de seus proprietários, não eram realmente mães” (p. 19), mas apenas reprodutoras e nem as traballhadoras superexploradas nas fábricas, que não se adequavam bem ao modelo burguês de “dona de casa”.

Ao mostrar como as ideologias são marcadas pelas hierarquias e clivagens que constituem a sociedade de classes, Davis discute como as opressões anteriores são ressignificadas de maneira a legitimar a dominação de classe tipicamente capitalista. Entretanto, e este me parece ser um ponto fundamental do seu livro, o estabelecimento dos nexos causais entre capitalismo, sexismo e racismo traz à tona uma história não linear, repleta de contradições, entre diversos movimentos e lutas de resistência das mulheres, dos negros e da classe trabalhadora.

Nesta história, a autora destaca, para cada período analisado, a configuração econômica, política e ideológica, em que sobressaem interesses e prioridades diversas, revelando como, em uma sociedade hierarquizada, aquilo que é definido como uma demanda política das “mulheres“ pode se configurar de maneira a defender interesses particulares, de uma determinada classe ou grupo social. Davis observa que, no interior do movimento das mulheres, em seus primeiros anos, constituído principalmente por mulheres brancas e de classe média, pouco se discutia as condições sociais da população branca trabalhadora, as quais constituíam a maioria do proletariado. Entretanto, mesmo que as líderes do movimento das mulheres lutassem prioritariamente pela concessão do voto às mulheres, enquanto a massa das trabalhadoras estivesse mais preocupada com os seus problemas imediatos (salários, jornadas, condições de trabalho), houve, mesmo com um viés de classe, um maior envolvimento do movimento de mulheres nas lutas operárias das mulheres no período pós-guerra.

Por intermédio de uma análise histórica consistente, Davis, ao mesmo tempo em que aborda o “profundo vínculo ideológico, entre racismo, viés de classe e supremacia masculina” (p. 81), discute o racismo presente no movimento sufragista feminino. A autora mostra, a partir de relatos históricos, como a disputa política pelo direito ao voto para as mulheres, motor do movimento sufragista, significou, em determinados contextos, como no período pós-Guerra Civil, uma estratégia de exclusão das demandas das mulheres negras por este mesmo direito, sob o argumento da conveniência (de que a defesa do voto das mulheres negras poderia dificultar a conquista do voto feminino). O argumento da conveniência evocado assinala uma mudança na correlação de forças no interior mesmo do movimento de mulheres, o qual se afasta da causa antiescravista que havia anteriormente abraçado com entusiasmo. Davis não omite desta história como a Nawsa (Associação Nacional pelo Sufrágio das Mulheres Americanas), caracterizada por Shulamith Firestone (1976) como altamente conservadora, além de reproduzir a ideologia da maternidade, adota o argumento da supremacia racial para negar o direito de voto às mulheres negras. (p. 130). Como observa Davis, neste caso específico, nenhum tipo de sororidade entre as mulheres brancas e negras foi possível. Que a evocação desta história nos sirva de lição contra o divisionismo e como fomento para o desenvolvimento de uma consciência política ampliada que busque combater os diversos sistemas de opressão que configuram esta sociedade.

Como a história evocada por Angela Davis não é uma história linear e única, mas repleta de contradições, a autora e militante nos dá diversos exemplos de alianças solidárias e sinceras entre mulheres brancas, negras, trabalhadoras e burguesas, as quais estiveram, em muitos contextos, fortemente unidas em defesa, por exemplo, do direto à educação para a população negra. Davis evoca como um exemplo marcante de sororidade que as mulheres brancas tinham em relação às mulheres negras, o engajamento político de mulheres como Myrtilla Miner e Prudence Crandall, as quais “sacrificaram a própria vida ao tentar transmitir conhecimentos às jovens negras” (p. 110). Como nos lembra a autora, “A união e a solidariedade entre (as mulheres negras e brancas) ratificaram a eternizaram uma das promessas mais férteis da nossa história.” (p. 116), indicando que a “sororidade entre as mulheres brancas e negras era de fato possível e, “desde que erguida sob uma base firme poderia levar ao nascimento de realizações transformadoras” (p. 112).

Ao recuperar a trágica história de segregação racial nos Estados Unidos, Davis demonstra como os movimentos antiestupro e antilinchamento de negros foram enfraquecidos por ideologias racistas, como o mito que representa o homem negro como estuprador e a mulher negra como promíscua. Tais mitos, ao operarem imprimindo as marcas de animalidade e bestialidade na população negra, tanto incitaram agressões racistas quanto foram uteis à superexploração da população negra pelo sistema capitalista. Se é verdade, afirma Davis, que, no movimento feminista houve quem se deixou cair na armadilha destas ideologias racistas, entre elas a feminista radical Shulamith Firestone, a autora não deixa de apontar o papel de “corajosas mulheres brancas que sofreram oposição, hostilidade e até ameaças de morte (p. 197) pela cruzada que empenharam contra os linchamentos da população negra.

Prosseguindo com o seu compromisso de mostrar as contradições históricas e as diversas maneiras de se relacionar com as clivagens constitutivas do sistema, Angela Davis denuncia a prática eugenista e racista que impôs a parcelas importantes da população negra e pobre norte-americana (sobretudo as mulheres porto-riquenhas, negras, de origem mexicana e indígena) uma esterilização compulsória. Davis procura compreender, a partir desta realidade histórica, uma clivagem importante que ocorreu na luta das mulheres pelos direitos reprodutivos. A autora observa, novamente, como o viés de classe e o racismo se infiltraram no movimento pelo controle de natalidade desde a sua infância, distanciando as feministas que lutavam pela “maternidade voluntária”, vista como um caminho para o acesso a uma carreira profissional , e a classe trabalhadora e pobre, engajada na luta pela sobrevivência econômica e submetida ao “dever” de restringir o tamanho de sua família.

Angela Davis, militante negra, feminista e marxista, através de uma análise teórica crítica e consistente das múltiplas contradições que se expressam nas sociedades de classes, indica que uma política feminista verdadeiramente radical deve lutar contra todas as opressões, estabelecendo os nexos causais entre capitalismo, sexismo e racismo e combatendo toda forma de divisonismo que a desvie do seu caráter revolucionário.

Referências bibliográficas

Saffioti, Heleieth. A mulher na sociedade de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

Shulamith, Firestone. A dialética do sexo. São Paulo: Labor do Brasil, 1976.

[Resenha a:] RUBBO, Deni Irineu Alfaro. Párias da Terra: o MST e a mundialização da luta camponesa. São Paulo: Alameda, 2016.


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Joana Salém Vasconcelos

O livro Párias da Terra: o MST e a mundialização da luta camponesa, do sociólogo Deni Rubbo, merece a atenção de todos aqueles que se interessam pela questão agrária brasileira e pela luta social latino-americana. Resultado de sua dissertação de mestrado em sociologia na Universidade de São Paulo, a pesquisa analisa a história das relações internacionais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no olhar de seus dirigentes, contextualizada, por um lado, dentro das dinâmicas da agricultura capitalista mundial entre as décadas de 1980 e 2000 e, por outro, no interior das polêmicas dos marxismos latino-americanos. Com um enfoque original, o estudo do internacionalismo do MST foi usado como chave-mestra para abrir uma série de problemas teóricos e políticos não resolvidos na realidade do capitalismo dependente, no âmbito da luta camponesa brasileira e dos dilemas das esquerdas latino-americanas. Nesse sentido, a pesquisa cumpriu um desafio crucial ao estabelecer um recorte metodologicamente bem definido, ao mesmo tempo capaz de acionar “grandes perguntas”, apresentando um horizonte histórico totalizante.

Diante da delicadeza política do tema “MST”, não é desimportante que Rubbo exponha, logo na Introdução, sua ressalva a trabalhos anteriores que incorreram em “panfletarismos”, seja aqueles que atacam sistematicamente o movimento, tanto quanto aqueles que são “enviesados pela instrumentalização política” (p. 39), tornando-se peças de autoproclamação militante. Reivindicando a máxima de Lukács segundo a qual “nenhuma ideologia é inocente”, Rubbo anuncia a intenção de produzir uma pesquisa com qualidade crítica, sem que para isso precisasse ocultar sua simpatia política com os sujeitos da luta camponesa. Ao recusar o mito da “imparcialidade” das ciências sociais, buscou equacionar o necessário distanciamento crítico com a inevitável tomada de posição, o que em si mesmo já configura outro mérito do trabalho.

Para cumprir seus objetivos, Rubbo realizou uma articulada problematização bibliográfica, além de debruçar-se sobre documentos e jornais do movimento e entrevistar nove de seus dirigentes. A trajetória internacionalista do MST é parte fundamental da história da questão agrária brasileira. Os laços de solidariedade internacional tecidos pelo movimento, cujos valores humanistas e as místicas herdaram da Teologia da Libertação, formaram uma rede orgânica de aliados, muitos dos quais estão atrelados à Via Campesina e à Coordenação Latino-Americana de Organizações do Campo (Cloc), cujas ações ainda incomodam o establishment do capitalismo agrário mundial. Sendo assim, o processo de internacionalização do MST apresenta-se, na voz das suas direções, como uma antítese da mundialização do agronegócio e da “revolução verde”. Nessa luta, Rubbo mostra que a “soberania alimentar” se tornou uma nova síntese programática em face do sequestro do termo “reforma agrária” pelo mercado de créditos rurais do Banco Mundial.[1]

O livro também é fundamental para compreensão do lugar do MST na história dos marxismos latino-americanos, clivados, segundo a análise de Michael Löwy reivindicada pelo autor, em pelo menos três correntes rivais (p. 58). A primeira, o “marxismo eurocêntrico”, predominou nos partidos comunistas de corte stalinista, que importaram acriticamente os modelos europeus da revolução, desconsiderando as peculiaridades do continente latino-americano. A segunda, face reversa do mesmo procedimento, seria o “excepcionalismo indo-americano”, que embora tenha nascido de setores anticapitalistas, rompem com o marxismo e enfatizam de maneira excessiva as particularidades locais, desprezando a importância da dinâmica mundial do capitalismo. Por fim, o autor identifica o “marxismo crítico”, cujo expoente seria José Carlos Mariátegui, adotado como referencial teórico prioritário. Mariátegui propõe um olhar dialético entre os problemas nacionais e a dinâmica do capitalismo internacional, engatados um ao outro de maneira indissociável e irredutível.

Nesse sentido, o livro apresenta um exercício bem costurado de identidade entre a opção teórico-metodológica do autor (o marxismo crítico de Mariátegui) e a trajetória internacionalista narrada pela direção do MST. Ou seja, se no plano teórico-metodológico o autor explica a história deste movimento social a partir dos nexos entre a questão agrária nacional e as tendências do capitalismo mundial, o discurso da direção do MST, por sua vez, aponta que a legitimidade mundial por eles conquistada se deve inescapavelmente à capacidade de leitura e intervenção sobre as idiossincrasias agrárias brasileiras. Segundo o autor, então, o MST teria realizado a experiência de articular dialeticamente os problemas locais dos “párias da terra” ao horizonte internacional da emancipação.

Como resultado deste “internacionalismo dialético” e de um momento histórico marcado pelo colapso da União Soviética, Rubbo mostra que o MST forjou-se na crítica do socialismo real e contribuiu para a emergência de novas narrativas e novos sujeitos protagonistas no seio da luta pela reforma agrária. Nesse sentido, o MST teria combatido, por um lado, a crença etapista na “revolução burguesa” brasileira e, por outro, o otimismo classista em relação à “revolução operária” latino-americana, inserindo, junto à Via Campesina, a prioridade da “resistência indígena, negra e popular” na campanha contra os 500 anos de dominação, em 1992. A ênfase na diversidade da cultura popular também explicaria a força conquistada perante suas bases e em escala internacional.

Em seu livro, Rubbo destaca que, ao contrário da lógica de obediência que hierarquizava os partidos comunistas das Internacionais, a Via Campesina e a CLOC se sustentariam pelo princípio da autonomia, pelo respeito às instâncias de decisão dos aliados e pela administração democrática das diferenças políticas (p. 234). Os documentos do MST indicam a valorização do aprendizado com as experiências dos povos amigos, componente importante na formação política e educação popular das suas bases, por meio das místicas, palestras, cursos, intercâmbios e nomes de assentamentos que enaltecem, sobretudo, a identidade latino-americana no contexto brasileiro[2].

Por fim, considerando que pesquisas relevantes são aquelas que suscitam novas perguntas, apontaremos quatro questões que, embora tenham sido tangenciadas pelo autor, nos parece que não receberam a devida atenção – talvez porque fragilizassem a hipótese central do “internacionalismo dialético” do MST. Em primeiro lugar, o autor concentra em três páginas (p. 266-269) a crítica de militantes que participaram da missão de solidariedade internacional no Haiti, iniciada em janeiro de 2009. Dois deles foram entrevistados e subscrevem a “Carta de Saída” assinada por 51 militantes em 2011. Entre as divergências se destaca o método hierarquizado da missão, pautado por ordens externas e pelo esvaziamento do poder de decisão in loco pelos militantes em campo – “a linha política já estava dada (…), nós éramos só tarefeiros”, alegou Vanderley, um dos dissidentes entrevistados (p. 267). Contudo qual seria o conteúdo político do que se apresentou, na narrativa de Rubbo, como uma “divergência de método”?

Apesar de parecer circunstancial e específica, essa polêmica nos parece tocar no desconfortável território de contradições ao qual o MST se lançou na sua relação com os governos petistas. O autor classifica como “internacionalismo bifronte” a prática do MST a partir de 2003, constatando que, às suas políticas internacionais de movimento, se agregou uma relação especial com o Estado brasileiro. Teria o conteúdo da querela no Haiti alguma relação com o comando brasileiro da controversa operação Minustah? Seria um momento em que o “internacionalismo dialético” foi substituído pela relação prioritária e acrítica do MST com o Estado? Teria o “internacionalismo bifronte” se concretizado como linha auxiliar de uma missão oficial? O livro nos deixa estas dúvidas.

A segunda questão é decorrente da primeira e permanece também dentro do escopo de objetivos do autor: como se organizou o financiamento do internacionalismo do MST? Para além das doações dos comitês de amigos do MST ao redor do mundo, das campanhas de cotização e trabalho militante, dos convênios com os governos de Cuba e Venezuela, quais outros recursos financeiros auxiliaram a construção das relações internacionais do MST? Qual seria, enfim, sua base material? O autor não se dedicou sistematicamente a esse problema, que nos parece decisivo para identificar as margens de independência política do movimento em relação ao Estado.

Um terceiro ponto seria a problematização dos limites da escolha metodológica em relação à “voz das direções”. Se por um lado a escolha delimitou um recorte consciente e representativo, por outro, deixou lacunas que poderiam ser desenvolvidas com uma abertura para a “escuta das bases”. Entre eles, o mapeamento empírico da diversidade e complexidade de posicionamentos políticos no interior do movimento, que poderia enriquecer a análise das suas contradições. Um quarto e último ponto seria a ausência de uma explicação sobre o funcionamento do grupo político Consulta Popular, que efetivamente compõe a maioria da direção do MST. Embora mencione o debate sobre a ambivalência de um movimento social que por vezes se comporta como partido (p. 87), ao omitir o papel da Consulta Popular nessa caracterização, a identificação dos sujeitos políticos do “internacionalismo bifronte” torna-se nebulosa. Isto é, ao escutar a “voz da direção”, talvez fosse interessante tornar mais minucioso o desenho dos agrupamentos da vanguarda.

Por fim, ao contrário de diminuir a relevância e profundidade do livro de Rubbo, as quatro problematizações levantadas indicam que se trata de uma “pesquisa viva”, tornando-se leitura indispensável para quem pretende conhecer a história do MST e atuar qualificadamente na luta social brasileira.

Referências bibliográficas

Bethel, L. O Brasil e a “ideia” de América Latina em perspectiva histórica. Estudos Históricos, v. 2, n. 44, p. 289-321, jul.-dez. 2009.

Boff, L. Brasil: a memória é subversiva. In: Nepomuceno, E. A memória de todos nós. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2015.

OEA. Carta de Punta del Este. Reunión Extraordinaria del Consejo Interamericano Económico y Social al Nivel Ministerial. Documentos Oficiales. Punta del Este, Uruguay, 5 -17 de ago. 1961.

Petras, J.; Laporte Jr., R. Cultivating Revolution. The United States and Agrarian Reform in Latin America. New York: Random House, 1971.

 

[1] Cabe uma ressalva: a captura do termo “reforma agrária” pelo mercado ocorreu ainda antes dos anos 1990. Em 1961, a Aliança Para o Progresso, comandada por órgãos de inteligência dos Estados Unidos, mimetizou o discurso das “reformas estruturais” na Carta de Punta del Este (oea, 1961). Era uma resposta dos Estados Unidos à revolução cubana, utilizando a CEPAL como “trampolim”. Desde então, o termo “reforma agrária” foi sendo recheado com os imperativos da modernização capitalista e encomendada pelos Estados Unidos para seus governos aliados na América Latina (Petras; Laporte Jr., 1971).

[2] Para explicar esse “latino-americanismo de esquerda”, seria interessante que o autor recorresse à hipótese de Leslie Bethel (2009) sobre as origens da distância identitária entre Brasil e América Latina, que remetem ao século XIX; tanto quanto ao amálgama mais recente, forjado no calor da resistência contra as ditaduras de segurança nacional e na memória comum de seus traumas (cf. Boff, 2015).

[Resenha a:] BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe (orgs.). Aborto e democracia. São Paulo: Alameda, 2016.


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Daniela  Mussi

Aborto e democracia é produto de uma boa Ciência Política que se desenvolve no Brasil contemporâneo: é feito de resultados pesquisas empíricas, reflexões teóricas e engajamento político (p. 14). Juntos, seus capítulos compõem as faces de um prisma a partir do qual a questão do aborto e dos direitos reprodutivos é pensada como problema permanente das instituições políticas brasileiras nas últimas décadas.

Apesar de composto por contribuições de diferentes intelectuais, dois pressupostos unificam esta coletânea: a separação entre Igreja e Estado e a concepção do aborto como um direito democrático e inclusivo (p. 24). São pressupostos que se erguem, aliás, na contramão dos sensos comuns conservadores que investiga na vida parlamentar e institucional brasileira dos últimos 30 anos.

Composto e publicado pouco antes do golpe legislativo que culminou na deposição da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, o livro reconstrói os aspectos do comportamento francamente conservador e autoritário da ampla maioria dos congressistas brasileiros. Os capítulos trazem pesquisas que evidenciam a atuação direta e persistente dos políticos brasileiros contra as liberdades e direitos das mulheres ao longo do ciclo democrático que antecede 2016.

Nas investigações relatadas, desfilam os discursos, projetos de lei, articulações partidárias e de lideranças permanentemente preocupadas em espoliar as conquistas das mulheres e em fazer recuar os avanços culturais e ideológicos que permitiram o país progredir, ainda que timidamente, no sentido de uma concepção laica e inclusiva de Estado. A coletânea, neste sentido, contribui para compreender melhor a natureza essencialmente misógina do ambiente legislativo e judiciário no Brasil e que ganhou repercussão em diversos episódios do processo do impeachment de Dilma Rousseff.

O enfoque institucional das pesquisas reunidas no livro evidencia como as questões ligadas ao aborto e direitos reprodutivos femininos se inserem naquilo que Antonio Gramsci (1975, p. 59) chamou de “exercício normal da hegemonia no terreno do regime parlamentar”, na dinâmica de equilíbrio entre força, consenso e fraude que permeia a vida institucional brasileira no pós-1988 (p. 127 e ss.). Este exercício hegemonia, porém, dificilmente pode ser considerada a favor das mulheres desde 1988.

As pesquisas mostram a difícil correlação de forças enfrentada pela agenda feminista na nova democracia brasileira. Evidencia como, mesmo depois de 2003 e a chegada de movimentos e bandeiras feministas históricas ao governo com a eleição do Partido dos Trabalhadores para o poder executivo federal, o conservadorismo antifeminista foi capaz de encontrar formas de se fortalecer, especialmente no poder legislativo – envolto em uma ideologia de contornos patriarcais e confessionais. Evidenciam as dificuldades da agenda feminista em avançar num ambiente institucional mesclado de fisiologismo e pragmatismo parlamentar para compor um ethos político absorvente. Nos cenários estudados, o tratamento oferecido aos direitos das mulheres revela este ethos comum a todos os grandes partidos e a dinâmica específica de alternância entre pequenas concessões e grandes ataques às conquistas sociais e aos valores feministas.

O descompasso é evidente quando se pensa a comparação entre as bandeiras e elaborações dos distintos movimentos feministas ao longo dos últimos 30 anos e o funcionamento efetivo da maioria das instituições políticas brasileiras. Inicialmente, um abismo foi formado, desde a redemocratização, entre o que se passava no âmbito da sociedade civil organizada (movimentos sociais, partidos, universidades, etc.) e a sociedade política (parlamentares, juízes, alta burocracia estatal, etc.). Com o tempo, porém, as discrepâncias entre a pressão realizada por movimentos de mulheres e as decisões parlamentares passam por mudanças importantes, resultantes de processos mais recentes: 1) a ampliação e diversificação do poder de pressão de lideranças e grupos de interesse religiosos e conservadores nos últimos anos dado seu crescimento extraparlamentar; e, ao mesmo tempo, o enfraquecimento da capacidade de pressão das lideranças e grupos de interesse feministas em virtude da crescente disposição política no campo laico e progressista em substituir pontos importantes da agenda feminista para angariar apoio eleitoral e partidário dos setores conservadores (p. 127 e ss.).

Entre as pesquisas da coletânea aponta, chama atenção a análise do papel ocupado pelo judiciário – em especial pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – na interpretação e julgamento de matérias relativas aos direitos reprodutivos das mulheres (p. 155). O STF, nos anos mais recentes, foi responsável por algumas das “concessões” aos direitos das mulheres no último período, como na interpretação mais flexível das leis que regulam as “exceções” em que o aborto é permitido. Isto abriu brechas para o movimento feminista ampliar sua margem de pressão e defender os direitos das mulheres como parte dos valores constitucionais democráticos e inclusivos. No geral, contudo, as expectativas com relação a esta arena não permitem muito otimismo se pensadas no quadro histórico mais geral das prerrogativas que movem atuação deste tribunal, especialmente sua trajetória de “continuidade jurisprudencial e doutrinária” com o passado autoritário brasileiro (Koerner, 2014, p. 53; cf. Koerner; Freitas, 2015).

Aborto e Democracia, neste sentido, realiza o exercício de uma hipotética “Constituinte” dos direitos reprodutivos das mulheres. Faz, inicialmente, incursões de natureza teórica no tema do aborto e direitos reprodutivos femininos, visando avançar na elaboração deste como um direito democrático básico em um Estado laico e inclusivo. Em seguida, examina o trágico percurso deste tema nas instituições, evidenciando os limites drásticos da realização da democracia no Brasil a serem ultrapassados. Sinaliza, ainda, a surpreendente e acelerada degradação da agenda feminista nos anos que sucedem a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao governo, o que retoma de maneira sutil o lugar insubstituível da participação e pressão da “sociedade civil” na produção e proteção de leis democráticas para as mulheres.

Por fim, tomando em termos concretos o direito ao aborto como chave para interpretação da democracia brasileira, a atenção se volta não apenas para os acontecimentos do biênio 2014-2016, mas para a corrida eleitoral pela presidência da república de 2010 (p. 195). Embora a ênfase apareça colocada no papel do jornalismo em construir um discurso capaz de direcionar a opinião pública em um sentido conservador, é impossível não pensar este como um contexto no qual a disposição em negociar a defesa dos direitos reprodutivos feminismo contribuiu para o processo de enfraquecimento profundo dos movimentos sociais populares e democráticos.

Ao longo desta coletânea, portanto, a relação entre aborto e democracia se desenha como teórica, empírica, trágica e utópica, sendo que cada uma destas dimensões ajuda a compor um ambiente problemático no qual pensar é também agir.

Referências bibliográficas

Gramsci, A. Quaderni del Carcere. Torino: Einaudi, 1975. 4v

Koerner, A. Os tempos no processo judicial na instauração da ordem constitucional brasileira de 1988: uma análise da ADI n. 2. Fontes, n. 1, p. 41-54, 2014.

Koerner, A.; Freitas, L. B. O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo. Lua Nova, n. 88, p. 141-184, 2013.

 

[Resenha a:] SINGER, André; LOUREIRO, Isabel. As contradições do Lulismo: a que ponto chegamos? São Paulo: Boitempo, 2016.


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Camila Góes

O livro organizado por André Singer e Isabel Loureiro, que condensa os resultados de um ciclo de pesquisas realizado pelo Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, se propõe a uma dupla empreitada. Ao mesmo tempo em que coloca no centro da discussão um problema – as contradições do lulismo – propõe ainda delinear hipóteses que nos permitam entender – a que ponto chegamos? A coletânea chega às nossas mãos em 2016, quando a conjuntura crítica brasileira culmina em um golpe parlamentar que leva ao impeachment de Dilma Rousseff. À medida em que apresenta o objetivo de levantar aspectos relevantes a respeito de que tipo de sociedade, de economia e de política se configurou ao final de doze anos de percurso lulista (Singer; Loureiro, 2016, p. 13), é difícil não esperar que o livro traga bons argumentos que nos ajudem a compreender o que levou a este desfecho traumático. A leitura do conjunto dos textos dá a impressão que o verdadeiro desafio encarado pelos autores, de fato, está enunciado na tese que, desde 2009, Singer se ocupa – “o lulismo existe sob o signo da contradição” (Singer, 2012, p. 9). Embora pareça haver um consenso sobre a formulação que, afinal, está enunciada no título, os argumentos se desdobram em proporções e ênfases diversas, que aqui propomos entender a partir de dois polos – de um lado, avanço e retrocesso; de outro, ruptura e continuidade. A depender do peso dado a cada um destes extremos, os sentidos atribuídos ao lulismo podem resultar em sinais opostos e, no extremo, relegar a contradição ao status de aparência.

Um dos elementos que pode nos ajudar a entender estas tensões no projeto encabeçado pelos pesquisadores do Cenedic parece estar na presença marcante de Francisco de Oliveira, para quem o livro é dedicado. Em suas análises sobre o lulismo, o sociólogo enfatizou, de modo geral, a “convergência programática” entre o os governos do PT e do PSDB (2013 [2003], p. 147). Apesar de não deixar de sublinhar seu acento social, é possível afirmar que, na visão de Oliveira, o lulismo se localiza nos extremos dos polos, entre a continuidade e o retrocesso. A contradição, nesse sentido, se daria com relação a um aparente sentido progressista. Já na visão de Singer, de modo distinto,[1] o lulismo seria um fenômeno contraditório por combinar efetivamente elementos progressistas e conservadores. A partir de 2008, em especial, o seu “caráter progressista” teria sido acentuado por Lula, “o que foi seguido e acelerado por Dilma Rousseff em seu primeiro mandato (2011-2014)” (p. 10). Nas palavras de Singer (p. 23), o percurso lulista colocara mesmo “a possibilidade de apertar o passo e ‘desfazer o imenso hiato de desigualdade’”, o problema político fundamental do país. Mas, porque, após promover alterações significativas |na vida daqueles que conformam sua base social, o lulismo acabou por dar lugar à orientação oposta? Este é o problema sobre o qual o cientista político se ocupa e, em grande medida, os demais autores da coletânea.

Seu capítulo, intitulado “A (falta de) base política para o ensaio desenvolvimentista” permite vislumbrar uma interpretação geral sobre o país. Orgânico às suas preocupações, o cientista político dá mais um passo em sua demonstração do lulismo, acentuando o seu sentido progressista geral. Movimentando-se com destreza em bases maquiavelianas, entre a realidade efetiva e o dever ser, é na política que Singer encontra saídas para o enigma brasileiro. É nesse sentido que interpreta o primeiro mandato de Dilma e, na sequência, a crise que a levou ao impeachment. A “nova matriz econômica” colocada em prática no “ensaio desenvolvimentista”,[2] mediante diversas medidas amplamente discutidas no capítulo, pretendiam acelerar o crescimento do PIB para que as reformas do lulismo fossem mantidas. Com “ousadia intervencionista”, as escolhas de Dilma buscaram acelerar um processo que, até então, se caracterizara por ser gradual e, por isso, implicaram brigas inéditas (p. 32-33). Embora suas opções se dessem de modo a levar em frente a condução lulista ao país, a presidenta se distinguiu de seu antecessor do ponto de vista político, o que é crucial. Enquanto o primeiro foi conciliador, Dilma – “com varas curtas” – decidiu não só entrar em combate com frações de classe poderosas e resistentes – “as onças” – como tornou o conflito público[3] (p. 33-34; cf. Singer, 2015).

Singer opta por abordar o problema desde a perspectiva das classes dominantes, em especial da camada industrial, o que é próprio desta fase de elaboração de seu argumento, primeiramente desenhado desde o ponto de vista dos de baixo. O plano ousado da presidenta contava com o apoio deste setor que, no entanto, acabou deixando-se levar pela orientação neoliberal antidesenvolvimentista do conjunto maior da burguesia. Por que Dilma não conseguiu sustentar seu projeto original? Em suma, a ideia fundamental é que se a presidenta queria levar seu plano às últimas consequências, deveria ter mobilizado as classes populares, sua base social, o que não fez. O desequilíbrio da fórmula lulista em face de uma postura de confronto ao capital implicava necessariamente ir de encontro também com seu aspecto desmobilizador. Faltou à presidenta fazer política. E como a política aqui é concebida como o terreno do conflito, por excelência, o que o cientista político parece reforçar é que a experiência lulista não necessariamente levava a este desfecho e, enquanto projeto político, não necessariamente chegou ao fim.

Ruy Braga, em seguida, dialoga criticamente com as visões do lulismo. Embora incorpore a contradição como problema, o que no seu caso se explicita na desconcentração de renda somada à precarização do trabalho, o sociólogo parece enfatizar, como Oliveira, o fenômeno lulista como coroamento de um movimento iniciado nos governos FHC. Segundo argumenta Braga, nos Governos Lula, de modo especial, as lideranças sindicais teriam se transformado em “verdadeiros administradores do investimento capitalista no país”, se afastando das demandas do ativismo das bases formadas pelo proletariado precarizado, que se viu obrigado a mobilizar-se politicamente, ainda que à revelia dos sindicatos (p. 59). O foco aqui está voltado às possibilidades políticas abertas, com atenção ao protagonismo readquirido pelo movimento sindical desde 2008.

Sabe-se que esta retomada é resultado em parte da ampliação da formalização da força de trabalho, em parte da precarização que acompanha o processo de terceirização das atividades produtivas, o que parece confirmar a contradição lulista. Ou seja, a incorporação via trabalho precário levou à intensificação das lutas sociais, que se sobrepuseram à orientação conciliatória. Isto significa um avanço ou retrocesso do lulismo? Embora não deixe de chamar a atenção para a recente “reorganização dos setores direitistas da sociedade brasileira” – reativamente organizados frente a este processo político iniciado em 2002 – o autor parece sustentar expectativas otimistas com o “colapso do lulismo”, que encontra em Junho de 2013 sua inflexão principal.

Se Braga é otimista em relação aos movimentos que podem se dar fora dos sindicatos ou à sua revelia, Mello e Silva, no texto seguinte, parece não antever outra saída para a efetivação da luta dos trabalhadores. Único a enfatizar sistematicamente uma temática internacional, o capítulo se situa entre os que não buscam interlocução direta com as interpretações do lulismo. O sociólogo trata predominantemente da questão das redes sindicais, as quais ganham importância com a globalização e seu movimento de descentralização produtiva combinada à centralização do capital. No Brasil, apesar da fragmentação e corporativismo que caracterizam o ambiente sindical, as redes parecem ter sido bem sucedidas – e aqui estão as inovações do sindicalismo brasileiro. Coerente ao raciocínio empregado no texto, o autor sugere que a resistência só pode se dar no campo global.

Embora contribua ao conjunto do livro com um tema caro ao capitalismo contemporâneo, Mello e Silva passa de forma sutil pela especificidade do lulismo e suas contradições, o que o forçaria uma análise mais detida no país. De modo oposto, o capítulo seguinte trata de um problema político nacional por excelência e vem se somar ao capítulo de Braga no diálogo crítico com as formulações do lulismo. Isabel Loureiro se ocupa da questão agrária e das transformações ocorridas no MST durante os governos do PT. Parece não haver assunto mais pertinente para iluminar o pacto conservador indicado na fórmula cabal de Singer (2012). Pouco ou nada foi feito no sentido de avançar a reforma agrária, além da amplitude alcançada pela “economia do agronegócio”, cuja hegemonia foi consolidada a partir de 2003 (p. 128).

Para a autora, o programa “democrático-popular de cunho (neo) desenvolvimentista” foi “aparentemente bem-sucedido no segundo Governo Lula/primeiro Governo Dilma, dando a impressão de que finalmente o Brasil começava a realizar o desejo de emparelhar com a metrópole e que viria a ser um país que se encaminhava para uma integração social civilizada” (p. 142, grifos meus). Para Loureiro, o limite deste projeto está em que “é impossível a redistribuição de renda no interior de um sistema que parou de crescer” (p. 142). Ao questionar o sucesso do lulismo e negar veementemente a ideia de ensaio desenvolvimentista, a autora joga todo o peso da possibilidade nas condições objetivas. Ao contrário de Singer e Braga que, diferentemente, apostam na política, Loureiro oferece uma visada bastante pessimista. Com uma abordagem sofisticada, a autora se afasta de visões simplistas sobre as opções tomadas pelo MST neste percurso. Contrária à ideia de oportunismo, ela mostra com requinte o processo complexo que interliga fatores subjetivos e objetivos e explica a adaptação do movimento aos novos tempos. É no capítulo de Loureiro que a antítese lulista encontra sua máxima intensidade.

Em seguida, Carlos Bello aborda o programa Bolsa Família (BF) e a questão da pobreza, com o esforço de organizar os estudos sobre o tema e suas distintas interpretações. Embora elenque alguns parâmetros que colocam em discussão se o BF foi ou não bem sucedido em seu objetivo de amenizar ou superar a pobreza, o sociólogo parte do pressuposto que, se considerado junto a outras políticas promovidas pelo lulismo, o seu saldo é positivo (p. 159). A contradição parece estar firmada no fato de, mesmo sob “um novo horizonte de expectativas”, o efeito do BF entre os seus favorecidos ter sido “bastante limitado” no sentido da expansão da cidadania (p. 159-163). Para o sociólogo, isto se comprova nas falas das beneficiárias, em que a noção de direitos se encontra mal formulada ou ausente, bem como pela associação do programa à ideia de “favor”, “ajuda” ou “contrapartida”. Aqui expressa-se uma contradição lulista fundamental – “os beneficiários do BF foram objeto de processos de inclusão no consumo desprovidos de politização”, o que os dificultou ver o programa como um direito (p. 183).

Ecoando preocupações similares, Cibele Rizek busca interpretar as políticas de cultura e as transformações do cotidiano na periferia de São Paulo sob o lulismo. Na verdade, no texto da autora não há propriamente uma elaboração sobre o lulismo – presente nas análises de Braga e Loureiro a partir de uma abordagem crítica –, o que parece afastá-la do foco na contradição. O centro do problema está nos vínculos estabelecidos entre o Estado e o capital privado que, no âmbito da cultura, indicam uma continuidade dos Governos PT em relação aos governos anteriores. Na situação específica à periferia paulistana, em que se mistura às gestões municipais e estaduais, o problema se estende ao cruzamento de práticas privatizantes nos campos da cultura e da saúde, um achado da pesquisa de Rizek. Os efeitos destas práticas são abordados a partir de incursões etnográficas – momento privilegiado de seu argumento, em que podemos observar a contradição lulista ganhar força.

Em sua interpretação, Rizek reforça a “face” do lulismo que confirma a continuidade a uma orientação neoliberal, marcada pela precarização do trabalho, privatização de políticas e despolitização dos sujeitos. A contradição se encerra, entretanto, com Lísias – agente de cultura, beneficiário do ProUni e do Minha Casa Minha Vida – cuja trajetória a autora opta por abordar com profundidade. Em seu discurso afirma encontrar “indícios de politização”, “um grau de domínio reflexivo sobre a própria trajetória, consciência dos momentos ‘de vacilo’” e “clareza de um projeto que – com idas e vindas, altos e baixos – parecia ter viabilidade” (p. 205). Na dinâmica da periferia, como bem mostra a autora, marcada pela fragmentação e instabilidade, somado à onipresença do crime, estes aspectos não são menores. Ao seu lado, coexistem dramaticamente as dimensões despolitizantes e o esvaecimento do horizonte dos direitos que, de modo pessimista, Rizek conclui questionando se “já foi definitivamente enterrado” (p. 218, grifos meus). O que, em caso afirmativo, poderá acarretar em “destituições mais severas de conquistas que mal chegaram a se efetivar” (p. 218).

O processo de privatização das estruturas estatais permanece como problema na abordagem de Wolfgang Leo Maar, ao qual soma o “distanciamento da realidade social” promovido pelo fato da “opinião pública” “ser gerada no plano de iniciativas privadas oligopolizadas em uma esfera pública midiática e de redes” (p. 222). Em suma, o filósofo aborda a privatização da esfera pública no Brasil a partir do enfoque nas “formas sociais assumidas pelo Estado e pelas políticas públicas como dinâmica de configuração da sociedade brasileira” (p. 224). A questão central gira em torno do caráter público dessas políticas – ou seja, em que medida o percurso lulista teria conseguido conter ou reverter “a hegemonia da privatização no caráter público do Estado”? (p. 225-227). Para Maar, não conseguiu nem um, nem outro. Na verdade, o autor argumenta que os Governos do PT deram seguimento à “privatização dos interesses de classes”, em que “tanto o privado quanto o público se formam e se reproduzem a partir do próprio cotidiano da acumulação (…) seja na continuidade, seja na transformação social” (p. 235).

A transformação promovida pela “plêiade” de políticas públicas teria se dado segundo os critérios da racionalidade dominante, para a qual a mera adesão ao processo de crescimento e acumulação autoriza a inclusão e garante a participação no cenário atual da reprodução da sociedade. Ou seja, a despeito da diminuição contínua da desigualdade de renda, promovida pelos governos lulistas, Maar ressalta a permanência “em nível intolerável” das “condições impostas pelas classes dominantes, seja por meio do Estado privatizado, seja mediante a esfera pública tecnológica, que reforçam a socialização capitalista e se contrapõem à efetivação plena do citado potencial de cidadania” (p. 249). O potencial de cidadania criado pelas políticas lulistas foi limitado pelo predomínio da globalização neoliberal, tanto no plano da inserção produtiva quanto no plano ideológico. Consequentemente, não houve a construção de uma contraesfera pública de cunho popular. Também em tom pessimista, Maar conclui, com isso, não haver “uma narrativa apta a expressar a construção de uma socialização alternativa” (p. 250).

No último capítulo, Cevasco aborda o problema do desaparecimento de um projeto de país integrado e com justiça social a partir da crítica cultural. O lulismo não aparece formulado no capítulo da autora, bem como nos dois textos anteriores. Rizek, Maar e Cevasco parecem concordar que não há propriamente um projeto político lulista, tendo em vista que os Governos PT, a despeito da maior ênfase social, comprovaram de fato a “vitória avassaladora do capital”. Não surpreende, portanto, certo ceticismo presente no texto da autora, que busca delinear a crônica do “desaparecimento de uma ideia de futuro mais inclusivo” desde os anos 1970, acompanhando as intervenções de Antonio Candido e Roberto Schwarz. A ênfase se coloca sobre a continuidade e as permanências, em que se delineia o problema “central da possibilidade da fundação de um país de civilidade em meio à herança da exploração e sua atualização turbinada no capitalismo contemporâneo” (p. 266). Cevasco se vale da reflexão de Schwarz sobre a Verdade tropical de Caetano Veloso para pensar a “novíssima esquerda ocidental”. O artista ao clamar a morte do populismo como uma possibilidade ilustra bem, para ela, o conformismo da esquerda “que já não se pauta mais pela mudança do regime econômico” e que deixou para trás “a aspiração de integração social com liberdade para todos” (p. 277).

Mas também este conformismo da esquerda não está livre das contradições e sobressaltos, alerta otimistamente Cevasco, para quem os eventos de junho de 2013 podem expressar “a contradição entre o capitalismo efetivamente existente e o desejo de construção de um país mais igualitário” (p. 277). A indignação presente nas movimentações desta ocasião pode ter a ver, segundo a autora, com a perda do projeto de nação, mapeada na produção crítica de Schwarz e muito bem exposta em seu capítulo (p. 278). Resta para Cevasco, como para os outros autores, respostas para muitas perguntas. Será Junho de 2013 uma inflexão progressista no país? Ou será que deu em “resultados decepcionantes”, como alertou ser possível Schwarz no calor do momento? A caída de Dilma resulta das contradições do lulismo em seu sentido progressista ou regressivo? Em sua falta de radicalidade ou em sua excessiva conciliação? Há ainda vida para o lulismo?

Está certo que, apesar de apontar respostas diversas, os pesquisadores do Cenedic possuem o mérito de colocar em debate questões centrais que, certamente, nos acompanharão ainda muito tempo. O livro registra, por um lado, o esforço admirável de produzir coletivamente e “a quente” um panorama explicativo em torno dos problemas fundamentais que o Brasil enfrenta. Por outro, explicita também os conflitos enfrentados pelos próprios críticos, e da melhor forma possível: com bons argumentos e demonstrações empíricas. Em frente ao cenário crítico que vivemos, a condução plural que o trabalho do Cenedic exemplifica traz esperança e aponta um sentindo. O conflito e a diferença constroem sólidos e belos edifícios quando cimentados no compromisso com a verdade e com os valores democráticos. Que esta unidade possível no plano das ideias possa iluminar também os caminhos da ação prática.

 

Referências bibliográficas

Góes, C.; Brito, L. B. O. Crise da política contemporânea no Brasil: notas de um debate sobre o lulismo. Revista Eletrônica de Ciência Política, v. 6, p. 180-199, 2015.

Oliveira, F. Crítica à razão dualista. In: Oliveira, F. Crítica à razão dualista o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, [2003] 2013b.

Singer, A. Raízes sociais e ideológicas do lulismo. Novos estudos, n. 85, 2009.

__________. Os sentidos do Lulismo. Reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

__________. Cutucando onças com varas curtas. O ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff. Novos Estudos, n. 102, 2015.

 

[1] Apesar das visões contrastantes sobre o lulismo, Singer e Oliveira compartilham, em grande medida, de uma mesma tradição e vislumbram preocupações comuns sobre a sociedade e política brasileiras. Para saber mais a respeito, cf. Góes, Belinelli, 2015.

[2] O recurso à expressão, muito polêmica entre os economistas, busca denotar, por um lado, o seu “caráter efêmero” e “contorno vago” e ao mesmo tempo enfatizar o seu “viés antiliberal” (p. 26).

[3] Singer chama a atenção a sua fala no Primeiro de Maio de 2012, ano em que o ensaio desenvolvimentista atingia seu auge. Na ocasião, Dilma afirmou que os bancos seguiam “lógica perversa”.