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MIGUEL, Luis Felipe. Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória. São Paulo: Boitempo, 2018.
Por Alexandre Marinho Pimenta
Não seria exagero qualificar o último livro de Luis Felipe Miguel como uma obra múltipla, em diversos sentidos e dimensões. Em primeiro lugar, por abrigar um conjunto variado de artigos e comunicações apresentados pelo autor, ao menos desde 2014, nos principais e mais prestigiados espaços acadêmicos do país para sua área. Tais produções, por sua vez, contemplam uma impressionante gama de temáticas e campos teóricos, trabalhados e articulados exaustivamente pelo autor em competentes revisões de literatura junto a contribuições singulares. Hegemonia, democracia, violência, classe, gênero, formação de preferências e participação política, dentre outras categorias e conceitos, transitam na obra do autor formando um retratado multidimensional de seu objeto e preocupação central. Como em outros livros do autor[1], a sessão da bibliografia, por si só, indica-nos que não estamos diante de um produto da Ciência Política convencional: um profundo diálogo com a Filosofia Política e, sobretudo, com as Ciências Sociais como um todo se mostra um pressuposto para a produção teórica de Miguel.
Em segundo lugar, não se trata apenas de uma obra teórica, mas de um manifesto político sui generis. A intervenção de Miguel, invariavelmente, na atual conjuntura, ganha e ganhará uma conotação política. Afinal, estamos diante de um intelectual, professor emilitante, e como tal, cada vez mais exposto e perseguido pelo contexto de “desdemocratização” (p. 7) vivenciado pelo nosso país. Seus algozes vão desde patrulheiros da Escola Sem Partido que rondam as universidades e as redes sociais pelo país, até, mais recentemente, o dito Ministro da Educação, Mendonça Filho, que tentou censurar sua disciplina “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, na Universidade de Brasília. Disciplina esta, abre-se parênteses, que se multiplicou em várias de universidades pelo país e tem sofrido graus variados de perseguição política, midiática e judicial.
Todavia, não é apenas pela pessoa de Luis Felipe Miguel que o livro ganha um espectro político propriamente dito. Isso acontece pelo próprio conteúdo e pretensão da obra, cujo título expõe de maneira didática. Miguel fala e intervêm em nossa conjuntura sem fazê-lo diretamente (fora a introdução, as orelhas de Juarez Guimarães e, de certa forma, os dois últimos capítulos): é principalmente através de sua prática teórica que o autor apresenta uma colaboração ao trágico momento da “política emancipatória”. Prática esta, como dita acima, feita com muita maestria e nenhum amadorismo.
De maneira geral, Miguel, seguindo outros teóricos políticos contemporâneos de perspectiva crítica, apostana democracia. Isso quer dizer que, longe de se resumir a um engodo da burguesia para com as classes dominadas, a democracia compreende, teórica a praticamente, um território em disputa de importância significativa para as classes e grupos sociais dominados e oprimidos, resistentes aos sistemas que os subjulgam – capitalismo, patriarcado etc. Essa disputa, o autor tenta realizar através de uma crítica imanente, mobilizando o conceito radical e originário de democracia em contraponto à “democracia vigente” (p. 9) – gesto, a seu ver, semelhante ao que os dominados fizeram ao longo da história em sua resistência. E, paralelamente, privilegiando a dimensão conflituosa possibilitada pela noção de democracia, em oposição a formas políticas mais autoritárias. Dimensão esta, também “aproveitável”, eventualmente, para a resistência dos dominados [2].
Ao abrir a caixa-preta da democracia para a teoria crítica, Miguel caminha – e com razão – com muita cautela e até ceticismo em sua argumentação e comentários. Sabe muito bem que boa parte desta teoria não conseguiu equacionar de maneira coerente e eficiente o problema/paradoxo democrático. Seja por desconsiderá-lo por completo, como dito acima; ou por não enxergar os limites inerentes da institucionalidade vigente e do apego ao consenso (pensemos numa Mouffe ou num Habermas)… Ou seja, por afundar-se, em última instância, na prisão do liberalismo.
Assim, arriscaríamos dizer, um dos focos de crítica possíveis à sua proposta é o quanto o autor consegue se equilibrar nessa corda – e o quanto esta corda oferece à política emancipatória contemporânea um horizonte. Dito com palavras mais próximas as do autor, se se alcança êxito em introduzir “duplamente” (p. 10) a categoria dominação na teoria democrática: de um lado como reprodução de desigualdades e opressões, de outro como espaço de resistência e emancipação.
Ao se dirigir a uma nova teoria democrática, de característica fortemente “negativa”[3]e ainda embrionária, Miguel pretende enfrentar diretamente a desorientação e desorganização da esquerda contemporânea, marcada pela falência do socialismo real, da social-democracia e sofrendo com imensas dificuldades diante de transformações sociais e crises de representação e representatividade. Uma teoria democrática nova se faz necessária, por fim, para se escapar tanto do utopismo quanto do imediatismo, e conseguir conectar liberdade e igualdade num único projeto político (p. 222).
Bem, já dizia Kafka que a corda do caminho verdadeiro está estendida no chão, e se destina muito mais a fazer tropeçar do que servir de ponte. E a nosso ver a proposta de Miguel apresente lacunas e falhas consideráveis, sobretudo no tocante capitalismo, democracia e emancipação[4]. O autor demonstra ciência à incrível capacidade do capitalismo sobreviver e se reproduzir sob e com a democracia – só ver os capítulos 2 e 8. Mas, aparentemente, o contexto de desdemocratização neoliberal faz Miguel – assim como tantos outros – se aferrar à democracia como bandeira em si[5].
Com essa postura, por exemplo, não consegue se questionar até que ponto se chegou nessa esquina da história pelo fato da esquerda elevar a democracia como valor (no limite, “universal”) – inclusive no Brasil. Ou melhor, até que ponto os limites da social-democracia se relacionam por esta prestar tributo, centralmente, à democracia. No mesmo sentido, o contrassenso histórico de experiências históricas de democracia radical, como os soviets, terem surgidas não sob a defesa explícita da democracia, por exemplo, também é algo que não encaixa na proposta de Miguel. Há aqui algo que resiste à lógica formal e à casualidade simples.
Ao apostar na democracia para fugir do desprezo tático e do radicalismo, de um lado, e do apego à institucionalidade, de outro, ou seja, por razões justas e pertinentes, o autor, no entanto, coloca-se problemas que bloqueiam certas perspectivas emancipatórias, à primeira vista contraintuitivas[6]. Assim, as questões da tática e da estratégia não se equacionam bem: o risco é a paralisia prática ou a colonização via liberalismo, que está sempre à porta.
Junto a esse apego, há uma imensa abertura semântica do conceito de democracia, que, se serve bem à denúncia política, talvez não funcione tão bem na teórica e estrategicamente. Aliás, Miguel é o primeiro a afirmar que a democracia não é um terreno neutro: mas a plasticidade que este impõe a tal conceito, não acaba tornando-a um significante vazio? Ou ainda: recorrer à etimologia não imprime artificialmente valores à democracia, reforçando-a como uma ideologia por excelência? (Afinal, onde ela de fato existiu, na Grécia Antiga escravagista e sexista? Certamente não[7].)
Talvez uma das formas de Miguel sair do labirinto que entrou por boas razões fosse adjetivar a democracia na qual se está teorizando e lutando por, abandonando uma noção geral. Seria aquela democracia participativa? Radical? Socialista? Emancipatória?
Todavia, as palavras têm história[8]e não podemos negar que a discussão sobre superação do capitalismo e democracia, na esquerda, liga-se necessariamente a uma perspectiva oposta à noção de revolução – ver a II internacional, o kruschevismo, o eurocomunismo, etc. O termo democracia, no século XX, foi, na prática, um cavalo de Tróia do liberalismo para reforçar a esperança numa via pacífica, institucional, para fora do capitalismo. E sabemos onde isso foi parar: para ainda mais dentro do capitalismo, na sua gestão propriamente dita ou no retorno ao capitalismo, como na União Soviética e China. Hoje, na fascistização galopante[9]. Focar sobremaneira na democratização, na forma política, eclipsou a dimensão da força, necessária à desestruturação dos aparelhos de dominação e exploração capitalistas[10]. Assim como forçou nosso campo a falar sob a e na língua capitalista[11]: a democracia não foi exatamente o termo que se opôs ao socialismo na Guerra Fria? Não foi sob sua bandeira que a dominação se aprofundou e se realiza as mais brutais intervenções imperialistas? A unanimidade da democracia foi concomitante à derrota das tentativas de transição ao socialismo.
A dificuldade de dirimir confusões e contrabandos semânticos está ligada a um histórico político não tão simples de ser apagado. Ora, o marxismo possui o polêmico termo ditadura do proletariado. “A forma política[12]desta ditadura ou dominação de classe do proletariado é a ‘democracia social’ (Marx), a ‘democracia de massa’, a ‘democracia até o fim’ (Lênin)” (AlthusserapudMotta, 2014, p. 30). Ruim para a denúncia política, mas mais coerente teórica e estrategicamente? Por que a esquerda não pode retomá-lo e o atualizá-lo? Miguel já respondeu a essa pergunta de certa forma, em outra ocasião[13]. Mas achamos que a provocação vale a pena ser retomada, não de forma ingênua e nostálgica, e sim visando um balanço mais justo e coerente com nosso passado. E retomar questões já respondidas, de certa forma, é o destino daqueles que escolheram o destino difícil de não se acomodar – como o autor nos alerta na bela última página do livro.
Referências bibliográficas
Edelman, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016.
Lazagna, Angela. Lenin e a atualidade do princípio de ditadura do proletariado. Lutas Sociais, São Paulo, v. 21, p. 109-124, 2017.
Miguel,Luís Felipe.Democracia e representação:territórios em disputa. São Paulo: Unesp, 2014.
_____. Consenso e conflito na democracia contemporânea. São Paulo: Unesp, 2017.
_____. A democracia e a Rússia revolucionária. Blog da Boitempo, 28 de ago. 2017a. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/08/ 18/a-democracia-e-a-russia-revolucionaria/
Motta, Luiz Eduardo. A respeito da questão da democracia no marxismo (a polêmica entre Althusser e Poulantzas). Revista Brasileira de Ciência Políica, n. 13, p. 19-51, 2014.
Pimenta, Alexandre Marinho. Um novo esforço ou um esforço novo?Resenha do livro “Só mais um esforço” (2017), de Vladimir Safatle. Lavrapalavra, 2017. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2017/10/24/um-novo-esforco-ou-um-esforco-novo/.
Toledo, Caio Navarro de. A modernidade democrática da esquerda: adeus à revolução? Crítica Marxista, São Paulo: Brasiliense, v.1, n.1, p.27-38, 1994.
Zizek, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.
Notas
[1]Importante lembrar que o livro ora resenhado representa, segundo o próprio autor, “o ponto – provisório – de chegada de uma agenda de pesquisa teórica consubstanciado também em outros dois livros anteriores” (Miguel,2018, p. 9. Ver Miguel, 2014 e 2017). Nesse sentido, pontos aqui criticados certamente foram mais desenvolvidos em momentos anteriores, apenas sintetizados de forma muito sumária na introdução do último elemento da “trilogia”.
[2]Nesse ponto, Miguel se aproxima das recentes reflexões de Étienne Balibar sobre a “democratização da democracia” em contraposição ao cenário de desdemocratização neoliberal. O francês, infelizmente, está ausente entre as referências, junto com outras figuras de peso que rondam a temática, como Wendy Brown e Jaques Rancière. Aliás, esse último Balibar é bem distante do Balibar da década de 1970 que defendia o conceito de ditadura do proletariado no PCF e curiosamente esse debate setentista da teoria marxista do estado será o ponto de chegada de nossa breve polêmica com Miguel e sua aposta na democracia.
[3]“Já se sabe o que nãose quer, já se sabe contrao que se luta” (Miguel, 2018, p. 221).
[4]Ao não tratarmos da efetividade de sua aposta para combate de outras dominações, como a de gênero, nosso texto terá a aparência de defender a centralidade, única e exclusiva, da dimensão classista. Mas isso ocorre por conta do enfoque privilegiado.
[5]Inspiramo-nos aqui no trecho de Toledo: “para significativos setores da esquerda, a defesa da democracia não deve ter mais um valor tático, mas adquirir um valor estratégico, umvalor em si mesmo” (1994, p. 28).
[6]Rosa, em sua clássica polêmica contra Bernstein, dizia que a única forma de defender a democracia, mesmo a limitada e formal burguesa, era estar sob a bandeira do socialismo. A incompreensão dessa lógica não intuitiva (a democracia talvez seja apenas efeito colateral de outra cena/contradição social) une figuras um tanto díspares da esquerda nacional: Miguel e Safatle, cujo último livro também foi resenhado por mim, no site Lavrapalavra (Pimenta, 2017).
[7]Mais um curto-circuito curioso, contraintuitivo: ao tentar fugir do utopismo de noções como comunismo, não se estaria abraçando também outra utopia, sob um nome mais palatável e aparentemente mais realista? É nesse sentido que Zizek, um desafeto de Miguel, chama Piketty de utópico ao buscar que a democracia controle o capitalismo. Se ambas as palavras estão “corrompidas” (cada uma à sua maneira) porque abraçar uma e não à outra? Tentaremos uma resposta mais à frente.
[8]O mesmo poderíamos dizer sobre igualdade e liberdade (mais polêmico ainda: civilização). Ambas não estão em demasia ligadas à problemática liberal? Miguel não pretende, e aparentemente nem defende, uma “ruptura epistemológica” para sua teoria da democracia. Outra forma de criticar sua proposta seria analisar até que ponto essa postura possui efeitos deletérios à emancipação.
[9]Ou o que Badiou tem chamado de “fascismo democrático” diante de Trump.
[10]“Destruir o Estado burguês, para o substituir pelo Estado da classe operária e dos seus aliados, não é juntar o adjetivo ‘democrático’ a todos os aparelhos de Estado existentes,é mais do que uma operação formal e potencialmente reformista, é revolucionar na sua estrutura, na sua prática e ideologia os aparelhos de Estado existentes” (AlthusserapudMotta, 2014, p. 31). Diríamos também que superar os limites da social-democracia não é apenas trabalhar com um conceito mais amplo de democracia.
[11]E aprendemos com Edelman, citado por Miguel (2018, p. 41), que uma linguagem em comum nunca é apenas uma questão comunicacional, mas política. Traduzir (também) é dominar. Em A legalização da classe operária, vemos que a história jurídica dessa classe, de suas conquistas e direitos, é, no fundo, a história de uma derrota do ponto de vista estratégico. Ao impor sua linguagem à luta política operária, “a burguesia ‘apropriou-se’ da classe operária; impôs seu terreno, seu ponto de vista, seu direito” (Edelman, 2016, p. 112). Há debates, nesse sentido, em que nãose deve participar, “na medida em que essa participação, ainda que se pretenda crítica, significa que foram aceitas as coordenadas básicas da maneira como a ideologia dominante formula o problema” (Zizek, 2008, p. 346).
[12]O Balibar da década de 70, importante ressaltar, opõe-se à noção de ditadura do proletariado como forma política/de governo. Seria mais preciso falar, com Lenin, de período histórico contraditório, um novo estágio da luta de classes (Lazagna, 2018).
[13]Ver Miguel (2017),. Assim como se supõe que a posição de Miguel frente ao que estamos chamando debate setentista se aproxima muito mais ao “último” Poulantzas em seu “sofisticado” “compromisso democrático” (Miguel, 2018, p. 56) ao enfocar a internalização da luta de classes nos aparelhos de estado burguês. Um bom apanhado sobre esse debate, incluindo a posição de Poulantzas, está presente no artigo já citado de Motta (2014). E uma boa pergunta para atualizar o debate seria: após o advento do neoliberalismo, essa permeabilidade aumentou ou diminuiu?